Uma questão de tática - Rosa Luxemburgo
- Barravento Revista
- 24 de abr.
- 5 min de leitura

Tradução de Gabriel Vezeiro-Sueiras
gentilmente cedida pelo portal Ollaparo
e revisada por Igor Dias Domingues de Souza*
A entrada de Millerand [1] no gabinete do governo de Waldeck-Rousseau merece ser estudada em termos de tática e princípios, tanto pelos socialistas franceses quanto pelos socialistas de outros países. A participação ativa dos socialistas num governo burguês é, em todo caso, um fenômeno que vai além da atividade usual do socialismo. Temos aqui uma forma de servir à causa proletária tão legítima e oportuna quanto, por exemplo, a atuação no Parlamento, nas câmaras municipais? Ou, ao contrário, isso seria uma ruptura com os princípios e táticas socialistas? Ou, enfim, a participação dos socialistas no governo burguês não passa de um caso excepcional, admissível e necessário em certas condições, mas condenável e desastroso em outras?
Do ponto de vista da concepção oportunista do socialismo tal como se manifestou recentemente no nosso partido e particularmente nas teorias de Bernstein – isto é, do ponto de vista da introdução gradual do socialismo na sociedade burguesa – a entrada de elementos socialistas no governo deve aparecer como algo tão desejável quanto natural. Se, por um lado, o socialismo pode ser introduzido gradualmente, em pequenas doses, na sociedade capitalista e se, por outro, o Estado capitalista se transforma gradualmente num Estado socialista, a admissão cada vez mais ampla de socialistas dentro do governo burguês é, na verdade, uma consequência natural do desenvolvimento progressivo dos Estados burgueses, o que corresponderia plenamente à sua pretensa evolução para uma maioria socialista nos órgãos legislativos. Se o caso é correspondente à teoria oportunista, ele não pode corresponder menos à prática oportunista. Como a obtenção de resultados imediatos e tangíveis, por qualquer meio, constitui o leitmotiv desta prática, a entrada de um socialista no governo burguês deve parecer aos “políticos práticos” um sucesso inestimável. Um ministro socialista não poderia fazer mais do que remendar pequenas melhorias, adoçamentos e arranjos sociais de todos os tipos!
Se, ao contrário, partirmos do ponto de vista de que a introdução do socialismo só pode ser pensada após a destruição do sistema capitalista, e que a atividade socialista se reduz agora à preparação objetiva e subjetiva a partir deste momento da luta de classes, a questão é colocada de outra maneira. É claro que a social-democracia, para realizar uma ação efetiva, deve ocupar todos os cargos disponíveis no atual Estado e deve ganhar terreno em todos os lugares. A única condição é que essas posições devem permitir que se trave a luta de classes, a luta contra a burguesia e seu Estado.
No entanto, para este ponto de vista, há uma diferença essencial entre as legislaturas e o governo de um Estado burguês. Enquanto no Parlamento os eleitos pelos trabalhadores não conseguem fazer valer suas reivindicações, eles poderiam pelo menos continuar na luta, persistindo numa atitude de oposição. O governo, por outro lado, que executa as leis, que toma medidas, não tem lugar em seu quadro para uma oposição de princípios; deve atuar em todos os seus membros e em todos os momentos; portanto, mesmo que seja composto por diferentes representantes partidários, como tem acontecido na França há vários anos nos ministérios mistos, sempre tem sob seus pés um terreno fundamentalmente comum, que lhes permite agir, o terreno do existente, em uma palavra, o terreno do Estado burguês. O representante mais extremo do radicalismo burguês, de fato, pode governar ao lado dos conservadores mais reacionários. Por outro lado, um adversário radical do sistema atual, se depara com a seguinte alternativa: ou se opor à maioria burguesa no governo a qualquer momento, ou seja, não ser um membro ativo do governo – o que criaria uma situação aparentemente insustentável, obrigando ao afastamento do membro socialista do governo – ou então teria de colaborar, desempenhando as funções cotidianas necessárias à manutenção e funcionamento da máquina estatal, ou seja, de fato, não ser um socialista, pelo menos não no contexto de suas funções governamentais.
Embora o programa da social-democracia contenha muitas reinvindicações que poderiam – abstratamente falando – ser aceitas por um governo ou um parlamento burguês, pode-se imaginar à primeira vista que um socialista, tanto no governo quanto no parlamento, pode servir à causa do proletariado, esforçando-se para arrancar a seu favor tudo o que for possível obter no campo das reformas sociais. No entanto, mais uma vez, aparece um fato que a política oportunista sempre ignora: o fato de que na luta da social-democracia o que importa principalmente não é o quê, mas o como. Se os representantes da social-democracia estão tentando realizar reformas sociais nos órgãos legislativos, eles têm todas as oportunidades, por intermédio de sua oposição simultânea à legislação e ao governo burguês como um todo – o que encontra sua expressão manifesta na rejeição do orçamento, por exemplo –, para dar à sua luta pelas reformas burguesas um caráter socialista, o caráter de uma luta de classes proletária. Porém, um social-democrata que está tentando introduzir as mesmas reformas sociais como membro do governo, ou seja, apoiando ao mesmo tempo o Estado burguês, na realidade está reduzindo seu socialismo, na melhor das hipóteses, à democracia burguesa ou à política operária burguesa. Assim, enquanto a ascensão dos social-democratas nas representações populares permitir o fortalecimento da luta de classes, sua penetração no governo só pode trazer corrupção e desordem nas fileiras da social-democracia. Os representantes da classe trabalhadora podem, sem negar sua razão de ser, entrar no governo burguês em apenas um caso: para tomá-lo e transformá-lo num governo da classe trabalhadora dominante.
Sem dúvida, pode haver na evolução, ou melhor, na decadência da sociedade burguesa, os momentos finais em que a posse de poder por parte dos representantes do proletariado ainda não é possível, e onde, no entanto, sua participação no governo burguês aparece como necessária, especialmente quando a liberdade do país ou conquistas democráticas, como a República, estão em jogo, enquanto o governo burguês já está muito comprometido e muito desorganizado para convencer o povo a segui-lo sem o apoio dos representantes dos trabalhadores. Nesses casos, é claro, os representantes dos trabalhadores não têm o direito, por amor a princípios abstratos, de se recusar a defender a causa comum. Mesmo assim, a participação dos social-democratas deve ser exercida de forma a não deixar à burguesia ou ao povo a menor dúvida sobre o caráter temporário e o objetivo exclusivo de sua ação. Em outras palavras, a participação dos socialistas no governo não seria equivalente à solidariedade com suas atividades e sua existência como um todo. Parece duvidoso que a situação acima tenha sido criada na França, porque os partidos socialistas, desde o início e sem pensar em sua participação no governo, se declaram prontos para apoiar qualquer governo republicano sincero, enquanto, inversamente, foram parcialmente dissuadidos desse apoio pela entrada de Millerand no ministério, que, em todo caso, ocorreu sem qualquer autorização de seus colegas. De qualquer jeito, nossa preocupação não era julgar o caso específico do gabinete Waldeck-Rousseau, mas sim derivar uma orientação geral de nossos princípios. Desse ponto de vista, a participação socialista nos governos burgueses parece ser uma experiência que só pode ser prejudicial à luta de classes.
Na sociedade burguesa, a social-democracia está essencialmente destinada a desempenhar o papel de um partido de oposição; como partido governante, só pode se manifestar sobre as ruínas do estado burguês.
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* A partir do texto original, disponível em: https://www.marxists.org/deutsch/archiv/luxemburg/1899/07/taktisch.html
1.Alexandre-Étienne Millerand, que representou uma tendência oportunista no movimento socialista francês, foi Ministro do Comércio de 22 de junho de 1899 a 28 de maio de 1902 no gabinete burguês reacionário Waldeck-Rousseau. Este primeiro passo prático dado polo oportunismo para integrar o movimento operário francês no estado burguês levou a discussões acaloradas entre as forças revolucionárias e os oportunistas da Segunda Internacional.




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