Voto nulo: o cretinismo parlamentar e a mistificação eleitoral em Belo Horizonte.
- Murphy Stay
- 21 de out. de 2024
- 11 min de leitura
Atualizado: 3 de nov. de 2024
Por Rafael Jácome
João Leite (PSDB), Fuad Noman (PSD) e Paulo Abi-Ackel (PSDB) bateram o martelo sobre o apoio tucano na campanha de reeleição do prefeito
crédito: Tiago Pena/Divulgação
1/2
"Pelo que esperam?
Que os surdos se deixem convencer
E que os insaciáveis
Lhes devolvam algo?"
O cretinismo parlamentar e a mistificação eleitoral.
Rosa Luxemburgo, em seu texto “Social-democracia e parlamentarismo”, define o “cretinismo parlamentar” como uma postura típica do parlamento burguês que, confiante do papel histórico do Estado como único meio possível para resolução de conflitos sociais, busca impor “a ilusão de que o seu parlamento seja o eixo central da vida social, a força motriz da história universal” (Luxemburgo, 1904) ¹. Essa ilusão é mais que uma mera concepção conceitual descolada do papel que o Estado cumpre na sociedade burguesa, muito embora se expresse desta forma ilusória na cabeça dos engravatados do parlamento ou dos radicais românticos, ela se trata também do dispositivo ideológico que a sociedade burguesa busca universalizar a fim de garantir que o estado realize sua função “organizadora” das relações sociais no capitalismo em favor da burguesia.
Em suma, tal mecanismo aponta para a consolidação de uma dinâmica que parte do princípio de que todos os conflitos entre as classes sociais (quando reconhece tais conflitos) encontra no Estado seu ponto máximo de resolução, como se o processo de identificação entre o Estado e as classes se desse de maneira imanente à própria existência do Estado. Também ignora (premeditadamente ou não) “as gigantescas forças históricas em ação do lado de fora, no âmbito do desenvolvimento social, totalmente despreocupado com a fábrica parlamentar de leis.”.
Apesar de tal constatação remeter a questões mais amplas (em termos históricos), podemos deduzir que seu desdobramento alcança até mesmo situações bem pontuais e particulares, como eleições restritas ao âmbito municipal. E mesmo neste campo pouco definidor da luta de classes nacional e mundial, uma das consequências lógicas e práticas dessa concepção é de que não importa em qual situação for, todas as organizações da classe trabalhadora, em maior ou menor grau de força, deveriam, supostamente, obedecer ao imperativo categórico de ter que escolher invariavelmente entre as possibilidades eleitorais que estão dispostas na bandeja oferecida pelo garçom da burguesia na “festa da democracia” (o Estado), mesmo que nada ganhassem em termos substanciais para suas lutas.
Pelos motivos elencados acima, essa consequência lógica e prática mistificadora diviniza a escolha eleitoral e desconsidera a construção cotidiana dos organismos da classe trabalhadora. Desconsidera, por exemplo, que o esforço da luta de classes e das organizações de trabalhadores que daí surgem não se trata tão somente de “coroar” de quatro em quatro anos os anseios de uma classe cotidianamente oprimida pelo trabalho e as variantes que disso surgem. Não é capaz de enxergar que a esquina histórica que nos encontramos aponta para a decadência cada vez mais crescente desses processos, visto a incapacidade até mesmo de um governo social-democrata de garantir seus pactos de migalhas aos trabalhadores. Portanto, esquece-se de priorizar o trabalho cotidiano dessas mesmas organizações e entender que em algumas conjunturas se posicionar validando as opções colocadas única e exclusivamente pela força de um processo viciado é diluir tal trabalho em favor de uma aposta cega nos desígnios de quem trata os assassinatos perpetrados pelas mineradoras em Minas Gerais como mero cálculo financeiro (tal como Zema, Engler, Fuad e os burgueses do minério).
Aos mais afetivamente apegados ao ato de votar ou de mostrar virtude ao escolher o “menos pior”, independentemente do quão pior seja esse “menos”, é preciso dizer que não estou fazendo a defesa do abstencionismo eleitoral e engessando a questão com uma postura que Lênin chamaria de “esquerdista”. Tal postura abstencionista vai de encontro até mesmo à concepção marxista mais elementar sobre o processo eleitoral burguês ². O ponto é que o processo eleitoral burguês não é o centro de construção de uma organização de classe e nem mesmo o altar de realização dos anseios dos trabalhadores quando estes romperem as correntes do cretinismo, mas sim um meio transitório de SUBMETER elementos da dinâmica da sociedade burguesa aos objetivos táticos e estratégicos as pautas históricas dos trabalhadores em luta. Não cabe aos organismos marxistas, serem propagadores do misticismo parlamentar inerente ao processo eleitoral burguês, sacrificando por desespero as finalidades e ações gestadas na construção da sua inserção na classe trabalhadora cotidianamente.
A inversão do cretinismo parlamentar está tão consolidada que as liberdades coletivas disruptivas (hoje tão necessárias, mas que foram ganhando espaço “na unha” através da negação organizada, coletiva e proletária do status quo capitalista e cristão) são apresentadas aos trabalhadores belo-horizontinos neste processo eleitoral como garantidas somente se um ex-militar (que chama o golpe de 64 de “revolução”) ganhar as eleições e se assim ele o quiser. Se apaga a necessidade de que, de fora do Estado, surjam novamente a força propulsora de permanência e avanço dessas liberdades, elegendo parlamentares realmente combativos e ligados organicamente aos nossos anseios. Parlamentares que tenham seu eixo central de atuação uma força histórica que extrapola os acordos de gabinetes.
Se esconde por trás dessa ilusão algo que as organizações marxistas sabem muito bem: o Estado não nos representa e não nos abre as portas. As pessoas negras, LGBTs, mulheres combatentes e todo o conjunto da classe trabalhadora, geralmente tem que entrar no Estado aos ponta pés ou pular a janela através de algum acordo fisiológico que dilui o caráter transformador de nossas ações. Quando conseguem não abdicar de seus princípios na totalidade, precisam dançar conforme a música do cretinismo parlamentar: “todas as opções levam as neo liberalismo!”.
Enquanto isso, por meio da ilusão democrática burguesa, “democraticamente” se pavimenta reformas de caráter eleitoral que cada vez mais filtram nossas possibilidades de usar o Estado e as eleições como ferramenta da classe. A tentativa permanente de cassação do mandato do combativo Glauber Braga é um exemplo dos mais básicos, mas também podemos elencar a distribuição dos recursos através da cláusula de barreiras que favorece os grandes e já consolidados partidos da ordem, reforma sindical que enfraqueceu uma instância de luta fundamental (sindicatos), o aumento da burocracia eleitoral para acesso a recursos tão necessário para atuação eleitoral dos partidos menos fisiológicos e por aí vai. Todas elas tidas como naturais e democráticas ou, no máximo, um acidente de percurso da necessidade do Estado enquanto regulador de um jogo político inquestionável de nossas lutas.
Vocês não se incomodam com o que essa sacralização do voto, aliada ao estreitamento do funil eleitoral, está pavimentando, principalmente num contexto em que até uma guerra mundial e o ápice de uma crise climática são ventilados como o futuro do capitalismo? Se não estão, deveriam.
O voto nulo em BH.
2/2
“Sonham sim com isto:
Os lobos os alimentarão, em vez de devorá-los!
E que por amizade
Os tigres os convidarão
A lhes arrancarem os dentes!
É por isso que esperam!”
Os Esperançosos - Bertold Brecht
Ainda no primeiro turno, o jornalista e pesquisador em filosofia Raony Salvador (um militante formulador de noções bem perspicazes, mesmo que passível de possíveis discordâncias) publicou um vídeo em suas redes sociais, com a temática de “Como tornar o voto em Fuad menos inútil?”. Raony, apesar de buscar fazer uma reflexão que de um ponto de vista marxista coerente busque relativizar demais o papel que Fuad cumpre, trouxe alguns elementos aproveitáveis em sua argumentação.
Após o fim do primeiro turno, ficou evidente que a tentativa de Rogério Correia e Bella Gonçalves de construir uma frente ampla fracassou em articular qualquer aliança significativa, muito menos uma aliança realmente ampla. O que se viu, na verdade, foi uma tentativa desesperada do PT de garantir sua hegemonia, seguindo a lógica de que mais importante do que o apoio à figura apresentada é a necessidade de que essa figura pertença ao partido. No entanto, devido à conjuntura política, essa estratégia resultou em uma agonia evidente, deixando claro que o apelo de tal empreitada entre os setores trabalhadores era insignificante.
A situação se torna ainda mais dramática quando lembramos que, no primeiro turno, uma fase em que qualquer movimento organizado entende como o momento de afirmar seus princípios ideológicos, especialmente para os movimentos políticos que ainda têm valores históricos a defender, vimos algumas lideranças do próprio PT se aliarem ao grupo fisiológico de centro-direita em Belo Horizonte. No entanto, há algo de “único” a se reconhecer nessa empreitada para a prefeitura: foi a primeira vez, em anos, que uma tentativa de frente ampla rachou de maneira risível e escancarada, antes mesmo de nascer. Um drama digno de eleição de síndicos.
Contrapondo a lógica de pragmatismo que o campo petista historicamente utiliza como um dos principais eixos de sua atuação política, tanto em Belo Horizonte quanto no cenário nacional, ficou evidente algo que há tempos está claro para as organizações da classe: esse campo se apoia no "pragmatismo da vitória" para neutralizar outras alternativas que possam surgir dentro dos movimentos sociais. Embora Duda represente uma variação desse progressismo fisiológico — algo que Zema certamente agradece ao PDT mineiro —, o fato de o PT não ter apoiado sua candidatura, independentemente dos critérios apresentados, apenas reforça que, mais do que qualquer compromisso com o combate ao "fascismo", o campo hegemônico da centro-esquerda brasileira está, na verdade, mais preocupado em manter uma constante aridez no solo fértil da luta de classes. Isso garante que seu hegemonismo não seja ameaçado pelas lutas que diz representar.
Sabemos bem que esse drama todo não se resultou somente em perdas. A vereança do campo progressista em BH ampliou suas cadeiras, em comparação com a última eleição. Mesmo que a nível estadual e nacional tal ampliação possa ser considerada pouca, qualquer mandato em solo nacional pode se tornar uma vitrine útil para os anos seguinte, justamente por mobilizar símbolos e aspirações dos setores da classe que almejam derrotar o neo liberalismo do centrão (que Fuad representa) e sua consequência direta: o crescimento do bolsonarismo intra Estado e na classe. O que esse apoio romântico democrata de tais cadeiras demonstra é uma insegurança se tais mandatos belo horizontinos terão uma necessária, explicita e contundente postura contra os desdobramentos da capitulação que o PT tem consolidado nacionalmente, postura contundente que Sâmia Bonfim e Glauber Braga corretamente tem tido por se colocarem abertamente críticos e sem meios termos a projetos com Teto de Gastos (que certamente tem impactos municipais ou minimamente fortalece a sanha privatista do centrão e da direita no âmbito dos municípios). Caso não assumam tal postura, apostarão na coalizão sempre rebaixada ao centrão político, em um momento que rebaixamentos tem nos tirado as possibilidades de favorecer nossa classe numa disputa institucionalmente desigual. Acompanharemos!
Indo para o finalmente...
Ora, camaradas belo-horizontinos! São os mesmos militantes e apoiadores orgânicos desse campo em frangalhos que hoje lotam os perfis da UP, CST, PSTU, MRT e provavelmente lotarão os perfis do PCBR e do PCB (caso este último preze pelo balanço eleitoral feito na última live nacional), comentando que tais organizações estão sendo "irresponsáveis" em puxar voto nulo. Esse mesmo campo que não foi capaz nem de fazer suas cúpulas se entenderem para costurar o que historicamente defendem (a frente ampla), demonstrando uma incoerência moral aliada com um pragmatismo que hoje demonstra falhas nacionalmente e municipalmente, exige dos combatentes da esquerda marxista e revolucionária uma diluição tática nessa bagunça burguesa. Não se dão conta nem mesmo da necessidade de corrigir as próprias falhas do campo, ainda por cima querem nos convencer que numa eventual reoxigenação do bolsonarismo (que se desenha no horizonte por culpa das próprias medidas do governo Lula, como teto de gastos e falta de combate ao agronegócio), supostamente serão capazes de tensionar para que a corda dos interesses de um ex-militar da época da “revolução” de 1964 tenda para os interesses da classe trabalhadora.
Tais comentadores da luta de classes belo-horizontina (ao qual não se enquadra Raony, visto que conhece as lutas populares muito bem), se esquecem que as organizações que hoje tendem ao voto nulo, são organizações que, mesmo com números muito baixo, são a linha de frente dos combates e estão capilarizadas em ocupações, atuam em sindicatos de professores da rede municipal, constroem os movimentos feministas no histórico 8 de março belo-horizontino e a luta universitária, atuando cotidianamente em diversas frentes necessárias para a luta de nossa classe.
São organizações que além de se pautarem por linhas históricas que não mistificam as eleições e por isso não transformam ela na finalidade última de suas ações, estão compromissados cotidianamente com o combate que devemos fazer a partir dos interesses da classe trabalhadora belo-horizontina. Dito isto, diante da crescente expectativa agoniante do desenvolver da conjuntura em solo nacional, nada mais coerente e fortalecedor de nossos meios de luta enquanto trabalhadores, que essas organizações não se pautem por diluir-se num momento tão delicado em promessas ilusórias de uma candidatura que nem mesmo o histórico PT e seu pragmatismo de frente ampla conseguiu superar. Apagar aspectos problemáticos como o fato de que Álvaro Damião (União Brasil), membro de um partido alinhado com o bolsonarismo, esta como vice de Fuad, para querer dar um revestimento de virtude ao desespero do campo progressista e dos trabalhadores conscientes de sua condição de maneira geral, é querer mascarar o fato de que o problema da conjuntura belo-horizontina se resolve em lutas muito maiores, em que devemos estar preparados e fortes.
Nem mesmo passa pela práxis do campo progressista que a necessidade de se formar novas organizações, que hoje surge na oratória de tal campo por força do drama objetivo, deve sair da fraseologia e ir para a ação de fato. As organizações marxistas já pautavam isto, enquanto acordos dos mais diversos (acordos estes que nos trouxeram até Fuad X Engler) eram costurados sobre o ainda tão explicito problemático pacto de classes. Não cabe que os campos marxistas que, certamente estarão num futuro presente, nas fileiras da luta contra todas as variações burguesas de nossa tragédia atual, sacrificar seu trabalho árduo, seus princípios e sua luta continua contra todo o atraso que trouxe o Brasil até este patamar. Trabalho este que nunca cessou (nem mesmo em eleições!) e não merece ser sacrificado para “contribuir” com seus 0,65% de votos municipais indo para Fuad, agitando a bandeira de uma “revolução” (golpe de 64) que não é a nossa!
Seguimos, camaradas. Num momento oportuno votaremos, mas não pelo desespero. Pela sobriedade de nossas fraquezas e nossas possibilidades dadas pela situação objetiva e pelo nosso compromisso junto a classe, superando nossas debilidades partidárias e rearticulando nosso campo para os imensos desafios que os anos seguintes tratarão de agravar.
Fontes Bibliográficas:
1. “Trata-se de uma ilusão, não apenas explicável em termos históricos, como também necessária, da burguesia em luta, ainda mais de uma burguesia que chegou ao poder: a ilusão de que o seu parlamento seja o eixo central da vida social, a força motriz da história universal. Essa é uma concepção, cuja florescência natural é o famoso “cretinismo parlamentar”, o qual, face à peroração autocomplacente de algumas centenas de parlamentares em uma câmara legislativa burguesa, não enxerga as gigantescas forças históricas em ação do lado de fora, no âmbito do desenvolvimento social, totalmente despreocupado com a fábrica de leis parlamentar. Mas é precisamente esse jogo das forças elementares cegas do desenvolvimento social do qual as classes burguesas participam, sem saber ou querer, que mina incessantemente não apenas o significado imaginado, mas qualquer significado do parlamentarismo burguês.”
LUXEMBURGO, Rosa. Social-democracia e parlamentarismo. Primeira edição: Sächsische Arbeiter-Zeitung (Dresden), I, nº 282, 5 dez. 1904. Publicado em: Gesammelte Werke, Berlim: Dietz, 1979. p. 447-451. Tradução: Kristina Michahelles. Disponível em Social-democracia e parlamentarismo (marxists.org) . Acesso em 19/10/2024.
2. II. Por toda a parte, ao lado dos candidatos democráticos burgueses, sejam propostos candidatos operários, na medida do possível de entre os membros da Liga e para cuja eleição se devem accionar todos os meios possíveis. Mesmo onde não existe esperança de sucesso, devem os operários apresentar os seus próprios candidatos, para manterem a sua democracia, para manterem a sua autonomia, contarem as suas forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido. Não devem, neste processo, deixar-se subornar pelas frases dos democratas, como por exemplo que assim se divide o partido democrático e se dá à reacção a possibilidade da vitória. Com todas essas frases, o que se visa é que o proletariado seja mistificado. Os progressos que o partido proletário tem de fazer, surgindo assim como força independente, são infinitamente mais importantes do que o prejuízo que poderia trazer a presença de alguns reaccionários na Representação. Surja a democracia, desde o princípio, decidida e terrorista contra a reacção, e a influência desta nas eleições será antecipadamente aniquilada.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Mensagem da Direcção Central à Liga dos Comunistas. Março de 1850. Primeira edição: Distribuído sob forma de panfleto em 1850. Publicado pela primeira vez por F. Engels na 3ª edição de: K. Marx, Enthüllungen über den Kommunisten-Prozess zu Köln, Hottingen-Zürich, 1885. Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!". Tradução: Eduardo Chitas. Transcrição: José Braz e Maria de Jesus Coutinho, junho 2006. Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/03/mensagem-liga.htm. Acesso em 19/10/2024.
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