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  • Compra de ouro por bancos centrais e investidores privados.*

    Rolando Astarita Tradução: Lucas Rodrigues Fonte: © Thinkstock   Talvez o ponto mais controverso da teoria monetária de Marx gira em torno do papel monetário do ouro. A ideia dominante, inclusive entre os marxistas, é que a teoria de Marx havia sido válida quando a libra esterlina, o dólar estadunidense e outras moedas eram oficialmente convertidas ao ouro, mas haveria ficado desatualizada com a inconversibilidade oficial (no caso do dólar as cédulas não foram resgatáveis  ("redimibles")  em ouro desde Janeiro de 1934). Em vários links anteriores ( veja aqui , aqui , aqui ) sinalizamos as principais críticas a esse enfoque. Dentre os argumentos, sustentamos que, segundo a teoria de Marx, o dinheiro surge da necessidade de expressar o valor das mercadorias a través de um equivalente que encarna valor (tempo de trabalho social, objetivado). Por isso, segundo este enfoque, o valor do dinheiro não pode se fundar simplesmente no respaldo dos governos, nem é mera criação estatal. Mais ainda, como sinalizou Marx, om respeito a regimes monetários sem convertibilidade oficial (Prússia, Inglatérra durante períodos prolongados no século XIX) a relação entre a cédula com o ouro se estabeleceu através do mercado (o valor da cédula pode ser considerado o inverso do preço do ouro). No entanto,  ("pero además") , e isso é chave, é um dado da realidade que o ouro continua sendo um ativo de reserva dos bancos centrais das principais potências. Nos finais de 2022 representava 77% das reservas oficiais dos EUA (8.133 toneladas de ouro); 73,5% das de Alemanha (3.366 toneladas); 68,3% da Itália e 63,2% de França. São cifras não desprezíveis em termos de riqueza imóvil. Por exemplo, as reservas oficiais de ouro dos EUA, ao preço (julho 2023) de 1.957 à onça equivalem a uns 560.000 milhões ( o valor livro registrado no FED é muito menor, US$ 42,22 a onça).Para que se mantém a tesourada essa massa de valor? Uma teoria monetária coerente deve poder explicar esta permanência do ouro nos sistemas monetários. Aumentos recentes de compras de ouro por bancos centrais A fim de atualizar nosso argumento, destacamos que nos últimos anos, vários bancos centrais aumentaram significativamente as compras do metal amarelo. Segundo o World Gold Council, no ano passado os bancos centrais agregaram às suas reservas 1.136 toneladas; um aumento de 152% com relação ao ano anterior. Foi o 13º ano consecutivo de compras líquidas; E foi a demanda anual mais elevada desde que se mantém registros, 1950. A tendência parece continuar esse ano. )No  primeiro trimestre de 2023 os bancos centrais junto a outras instituições oficiais incrementaram suas tendências de ouro 228 toneladas, um aumento de 176% com respeito a 2022. Também é mantida a demanda de ouro (moedas e barras de ouro, principalmente) com motivos de entesouramento: em 2022 foram 1.107 toneladas. Se houve uma queda na demanda por ouro para ETF, as tendências destes ao final de 2022 totalizaram 3.473 toneladas. (ETF, sigla em inglês para Exchange Traded Fund; é um ativo que cotiza na bolsa e está respaldado por um subjacente, no caso o ouro). Voltando as reservas de ouro dos bancos centrais, o maior comprador nos últimos meses é o Banco Popular da China (BPC). Depois de um período em que havia diminuído suas compras, em novembro de 2022 anunciou a compra de 62 toneladas. Com ela, as reservas oficiais de ouro superaram pela primeira vez 2.000 toneladas. As compras continuaram na primeira metade de 2023; Hoje (princípios de Julho) o stock [preservamos o anglicanismo do original] de ouro do BPC alcança as 2.330 toneladas. A motivação por detrás da compra do ouro. Cada vez mais analistas de mercado do ouro e funcionários dos bancos centrais reconhecem que com suas compras de ouro muitos bancos centrais procuram respaldar suas moedas em um ativo que não é passivo de outro governo ou banco central. Em particular, se trata de reduzir a dependência com respeito ao dólar como moeda de reserva (operou-se uma desdolarização  de reservas internacionais nos últimos 20 anos; voltamos sobre esse tema em um próximo artigo.) Em particular, a diminuição da exposição ao dólar estaria no primeiro plano das preocupações da China. As sanções da OTAN à Rússia depois da invasão à Ucrânia foram um alerta. Com respaldo dos aliados europeus, os EUA congelou reservas oficiais russas; excluiu a Russia do sistema de comunicação SWIFT para as compras de ouro por parte dos bancos centrais, e o caso da China, em primeiro lugar , se explica nesse contexto de tensões geopolíticas crescentes. Lembremos que as reservas da China, avaliadas em uns US$ 3,2 Bilhões, estão majoritariamente em dólares e bônus do tesouro dos EUA. As compras de ouro reduzem a exposição a represálias financeiras e monetárias; e fortalecem o respaldo das moedas nacionais. Em uma perspectiva histórica , se calcula que ao redor de 208.874 toneladas de ouro foram minadas ao longo da história (WGC, fevereiro 2023) das quais aproximadamente dois terços foram entre 1950 e o presente. Sempre segundo o WGC, todo o ouro extraído da terra entraria em um cubo de 22 metros de lado (No seu Ouro e moeda na história 1450-1920 Pierre Vilar diz que todo o ouro disponível na Europa em 1500 poderia ser contido em um cubo de 2 metros de lado). Dado para os defensores da teoria quantitativa do dinheiro: A massa de moeda-ouro nunca pode ser comparada com a quantidade de mercadorias multiplicadas pelos seus preços (inclusive quando regia o padrão ouro). Destacamos por sua vez que se mantém o papel do metal amarelo com reserva de valor: Aos finais de 2022 o ouro em barras e moedas, incluindo o que respaldava ETFs, totalizava 46.517 toneladas (22% do total). O stock de ouro em forma de joalheria alcançava 95.547 toneladas (46%). Uma parte deste ouro é empregada em joalheria barata, já que o objetivo é o entesouramento (por exemplo, na índia). Por sua vez, os bancos centrais reuniam 35.715 toneladas (17%) e “outros” stocks 31.096 toneladas (15%). O ouro como “existência da riqueza Abstrata” Os dados anteriores encaixam mal com a conhecida afirmação de Keynes de que o ouro em sua função monetária seria “uma bárbara relíquia”, em vias de extinção, ou pouco menos. Passam-se os anos e as décadas e os Stocks da “bárbara relíquia” sustenta-se e inclusive se incrementam, na medida em que cresce a riqueza burguesa. A teoria de Marx, ao contrário, sugere uma explicação do fenômeno que parte de reconhecer que o ouro representa uma relação social (O Capital, Cap1,livro 1). De maneira que seu entesouramento deve poder se explicar pela mesma natureza do modo de produção capitalista. A esse respeito, Marx resgata o elemento de verdade contido no ideal mercantilista de acumular ouro e prata: É manifestação, diz, da “vocação da sociedade burguesa, fazer dinheiro”. Acumular ouro e prata é incrementar “a existência da riqueza abstrata” (Contribuição para a crítica da Economia Política). é “abstrata” porque o valor de uso do ouro passa a ser expressão do seu contrário, do valor, algo que é puramente social, por fora do conteúdo material da riqueza (questão teoricamente irresoluta para os que explicam o valor do dinheiro-ouro por sua utilidade). O qual subjaz a aspiração de “ correr atrás do tesouro eterno que não pode ser corroído nem pelas formigas, nem pela ferrugem” (Contribuição..). Em definitivo, tudo indicaria que o ouro segue sendo “a forma sempre pronta, absolutamente social da riqueza” (O Capital), não só para investidores privados, senão também para os Estados capitalistas e seus bancos centrais: Daí também o fetiche do ouro. A crítica marxista  não deveria ignorar estas questões, que estão no seio das contradições da mercadoria (e em consequência, do capital). Referências bibliográficas: MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política . Tradução e introdução de Florestan Fernandes. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008. Notas do tradutor: *Texto originalmente publicado no blog Economia e Marxismo no dia 27 de Julho de 2023 ** Na tradução usamos  a edição da Contribuição à crítica da Economia Política da Expressão Popular para não  traduzir a passagem de Marx para uma terceira língua: Do alemão-espanhol-português. No  texto original de Astarita, a citação ao texto de Marx usa polilla onde a Expressão Popular  usou formiga. Pollila é literalmente Mariposa, o que é contra intuitivo para o leitor brasileiro  já que na passagem Marx se refere a algum animal capaz de “perfurar” as cédulas, como as  formigas fazem com as folhas das árvores. *** No original: “y el de China”  expressão coloquial comum no espanhol rioplatense para se referir “ao caso de..” ou “na  situação de...”.

  • O caricaturista e sua arte: Elias Jabbour, o marxismo contra Marx e o socialismo com capital.

    Fonte: https://jornalggn.com.br/wp-content/uploads/2021/02/jornalggn.com.br-china-1024x576-1.jpg por Frederico Lambertucci  Em 2021, Elias Jabbour publicou um artigo no portal GGN , apontando brevemente sua concepção sobre a China e a definição dela como o que se consolidou nominalmente como "socialismo de mercado" ou "socialismo real". De lá para cá não somente tal concepção não mudou, mas ganhou mais projeção, tendo Jabbour como principal expoente e resultou na ascenção de diversos divulgadores online, do reformismo ao suposto campo radicalizado do marxismo brasileiro. Estes últimos parecem amaciar em suas referências a Jabbour as defesas dele do programa petista eleitoral de 2022, como "programa máximo", ainda que o que vimos foi o menos que o mínimo deste "máximo" que nunca existiu para além da retórica reformista. Como o texto contém, de maneira geral, um sumário resumido de suas ideias, achamos que uma crítica conseguiria pegar pontos interessantes de sua construção teórica, se é possível chamar assim o que o apologista chinês faz. Elias Jabbour, talvez, seja o melhor exemplo da decadência intelectual da Universidade Burguesa e de que forma a decadência ideológica da burguesia encontrou uma via específica nos ditos "intelectuais" progressistas e nos autointitulados "marxistas", que na realidade não passam de reformistas pagos a soldo. Sim, o reformismo, desde Bernstein, também produz seus próprios espadachins, que funcionam como salvaguarda do capital, mas pelo “lado oposto”. No caso em tela, o “intelectual”, que só pode ser chamado assim em tempos da mais profunda miséria teórica e prática no movimento comunista, é um apologista do capital chinês. Peguemos alguns argumentos de Elias Jabbour dos porquês a China seria "socialista". No pequeno texto indicado no início deste texto, ele resume seus argumentos, que são, no mínimo, risíveis, do ponto de vista de qualquer marxista sério e rigoroso. O primeiro argumento encontra-se já no primeiro parágrafo, segundo o propagandista chinês É uma caricatura afirmar que os defensores do caminho socialista na China baseiam-se no fato da China ter estatais. É muito conhecida a noção marxiana para quem a forma de propriedade dominante é o que define uma formação econômico-social. A existência de estatais é um ponto de partida fundamental para as transformações que a China tem conseguido empreender. (Jabbour, 2021)   O argumento utilizado procura, paradoxalmente, se defender da “caricatura” afirmando que a questão não é a China ter “estatais”, ao mesmo tempo que é central na argumentação sobre o caráter da “formação econômico-social” que a China tenha estatais, como “forma de propriedade dominante”. Desse modo, que, no mínimo deveria ofender qualquer leitor por subestimar sua inteligência, Elias Jabbour busca se amparar na categoria marxiana, a tal "noção" marxiana de formação econômico-social para defender que a propriedade estatal, e lembremos que estamos falando de propriedade jurídica, é a forma dominante de propriedade e que, portanto, a China seria socialista, ou no mínimo estaria seguindo esse caminho. Comecemos, portanto, com a categoria de formação econômico-social de Marx. Ao discutir como uma nova forma de relação social de produção só pode se desenvolver a partir de certo grau de forças produtivas, as quais também correspondiam certas relações sociais de produção, Marx, nos Grundrisse, discute a peculiaridade da forma como na “formação econômico-social” burguesa, os elementos de relações sociais de produção passados, inclusive formas jurídicas de propriedade são assimilados, transformados segundo a relação social dominante da sociedade burguesa, por isso, diz ele que: É preciso considerar que as novas forças produtivas e relações de produção não se desenvolvem do nada, nem do ar nem do ventre da ideia que se põe a si mesma; mas o fazem no interior do desenvolvimento da produção existente e das relações de produção tradicionais herdadas, e em contradição com elas. Se no sistema burguês acabado cada relação econômica pressupõe a outra sob a forma econômico-burguesa e, desse modo, cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto, o mesmo sucede em todo sistema orgânico . Como totalidade, esse próprio sistema orgânico tem seus pressupostos, e seu desenvolvimento na totalidade consiste precisamente em subordinar a si todos os elementos da sociedade, ou em extrair dela os órgãos que ainda lhe faltam . É assim que devém uma totalidade historicamente. O vir a ser tal totalidade constitui um momento de seu processo, de seu desenvolvimento (Marx, 2011, p. 283) Como o leitor pode ver, na formação econômico-social da sociedade burguesa, o seu processo de tornar-se uma totalidade para-si, consistiu precisamente em subordinar todos os elementos da sociedade, ou em criar os novos. Por exemplo, a propriedade da terra, deve, necessariamente ser subordinada a forma de produção do capital, de modo a produzir a condição de sua reprodução própria, através do trabalho assalariado, como seu fundamento. A peculiaridade da “formação econômico-social” da sociedade burguesa, é que o capital, exatamente pela sua universalidade fundada no trabalho assalariado, só pode continuar existindo como processo de contínua expansão, e, deve, subordinar e transformar todas as relações sociais na direção da sua própria estrutura produtiva. Isto é, para produzir o capital enquanto tal, tem que, necessariamente, transformar o trabalho em trabalho assalariado, por isto, Marx diz que “no sistema burguês acabado, cada relação econômica pressupõe a outra sob a forma econômico-burguesa e, desse modo, cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto”. Ou seja, o que Marx está dizendo é que a constituição da sociedade burguesa enquanto uma totalidade, tem que necessariamente, tal como todo sistema orgânico, produzir todas as partes enquanto totalidades reciprocamente determinadas que se sustentam reflexivamente. Isto é, todas as partes são postas sob a forma econômico-burguesa, como pressupostos de outras relações da mesma sociedade burguesa. O trabalho assalariado, por exemplo, é pressuposto do capital, mas quando o capital se torna posto, a própria reprodução da força de trabalho enquanto elemento do trabalho assalariado, se torna reposta pelo capital, a determinação de reflexão significa partes que não são mais cindíveis, assim que o sistema orgânico do capital é uma totalidade concreta, como síntese real. O que significa que, qualquer parte, para que continue existindo sob “a forma econômico-burguesa” deve necessariamente integrar elementos de formas passadas de sociedade, como pressupostos das relações do capital. Isto é, elementos preservados só sobrevivem na totalidade da sociedade burguesa, caso constituam-se como partes do processo de reprodução dessa formação econômico-social em que domina o capital como relação social fundamental.   É isso que Marx tem em mente, na análise da sociedade burguesa, quando nos Grundrisse discute a peculiaridade dessa forma social e sua relação com as formas de propriedade passada, diz ele que A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo como resíduos não superados, parte [que] nela se desenvolvem de meros indícios em significações plenas etc. [...]. Do mesmo modo, a economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc. Mas de modo algum à moda dos economistas, que apagam todas as diferenças históricas e veem a sociedade burguesa em todas as formas de sociedade. Pode-se compreender o tributo, a dízima etc. quando se conhece a renda da terra. Porém, não se deve identificá-los. Como, ademais, a própria sociedade burguesa é só uma forma antagônica do desenvolvimento, nela são encontradas com frequência relações de formas precedentes inteiramente atrofiadas ou mesmo dissimuladas . Por exemplo, a propriedade comunal . Por conseguinte, se é verdade que as categorias da economia burguesa têm uma verdade para todas as outras formas de sociedade, isso deve ser tomado cum grano salis[e]. Elas podem conter tais categorias de modo desenvolvido, atrofiado, caricato etc., mas sempre com diferença essencial.  [...]. Em todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações que estabelecem a posição e a influência das demais produções e suas respectivas relações. É uma iluminação universal em que todas as demais cores estão imersas e que as modifica em sua particularidade. É um éter particular que determina o peso específico de toda existência que nele se manifesta . [...]. [...]. O capital é a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina. Tem de constituir tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada, e tem de ser desenvolvido antes da renda da terra. Após o exame particular de cada um, é necessário examinar sua relação recíproca. (Ibid. , p . 76-78)   Parece-nos que é evidente que, dado que o “capital é a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina”, e depois de dizer que em “todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações que estabelecem a posição e a influência das demais produções e suas respectivas relações” que Marx tem clareza do fato de que, ainda que relações não inteiramente superadas possam sobreviver no interior de uma “formação econômico-social”, elas só continuam existindo subordinadas a relação social que é predominante na reprodução social. No caso da sociedade burguesa, subordinadas ao próprio capital, enquanto “potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina”. Dessa forma, é completamente compreensível que formas de trabalho escravo, ou mesmo na China, de trabalho “comunal” convivam com o trabalho assalariado. A questão fundamental é que, posto o trabalho assalariado como forma fundamental de relação social de produção, o capital pode tornar formas de propriedade e de trabalho, que não são assalariadas, em vantagem produtiva para sua própria reprodução. O que é o trabalho familiar, praticamente artesanal, que produz jeans em fundo de quintal no México, ou a pequena propriedade familiar que produz seda no Brasil, ou mesmo o trabalho camponês do chinês que tem a permissão de uso da terra pelo Estado chinês, se não isso? No primeiro e no segundo caso não temos propriamente trabalho assalariado, mas temos trabalho abstrato que é apropriado, através do mercado mundial, pelos monopólios imensamente mais produtivos, e não há possibilidade de produção para o consumo, antes de tudo, se produzem mercadorias. No segundo caso, pela via política, o Estado chinês ao determinar o preço dos grãos e pela proibição do camponês da venda no mercado mundial dos grãos produzidos, ele impõe o preço e consequentemente determina o nível da apropriação de riqueza pelo Estado. Ao pagar abaixo do preço do mercado mundial pelo grão, tal forma de produção possui um caráter fundamental na reprodução do capital, pois rebaixa o valor da força de trabalho do trabalhador assalariado chinês através dessa apropriação. Em suma, transforma o que incautos chamariam de formas de “não-propriedade”, quando o verdadeiramente o são, em vantagem produtiva para o conjunto do capital na China. Há ainda que ressaltar, que nessa “formação econômico-social”, o momento predominante é sempre o capital, pela sua própria natureza universalizadora e seus critérios reprodutivos, que, necessariamente subordinam todos os elementos para si e em última análise, permanecem sempre como formas da relação-capital. Atente-se ainda o leitor, que nos nossos três exemplos, o trabalho assalariado é facilmente combinável com as formas existentes trabalho, no exemplo do México e do Brasil, se pode, facilmente, contratar um trabalhador de fora da família na base de um contrato de trabalho, e no caso da propriedade estatal, ao qual é outorgado direito de uso ao camponês, o camponês pode simplesmente arrendar a terra ou mesmo contratar força de trabalho, passando com isso ao trabalho assalariado na produção agrária chinesa. Nenhuma das relações sociais está em contradição com o modo de produção do capital de forma antagônica, são formas de propriedade constitutivas da relação capital, ainda que, se possa, em termos gerais, falar que são constitutivas da formação econômico-social. Não obstante, ainda precisamos falar da propriedade estatal dos meios de produção pelo Estado, seria essa forma jurídica de propriedade antagônica ao capital e produziria uma “formação econômico-social” em que formas de propriedade concorrem entre si, como quer o apologista do capital chinês? Vejamos o que diz Engels sobre a propriedade estatal Enquanto as crises revelaram a incapacidade da burguesia de continuar administrando as modernas forças produtivas, a metamorfose das grandes instituições de produção e intercâmbio em sociedades por ações e propriedades do Estado mostraram a dispensabilidade da burguesia para esse fim. Todas as funções sociais do capitalista passam a ser exercidas por funcionários remunerados . [...]. Tendo o modo de produção capitalista alijado primeiramente os trabalhadores, ele passa agora a alijar os capitalistas e os remete, a exemplo do que ocorreu com os trabalhadores, à população supérflua, embora num primeiro momento não os atire ao exército industrial de reserva. Porém, nem a metamorfose em sociedades por ações nem a metamorfose em propriedades do Estado retiram das forças produtivas sua qualidade de capital . No caso das sociedades por ações, isso é evidente. E o Estado moderno, por sua vez, é apenas a organização que a sociedade burguesa monta para sustentar as condições exteriores gerais do modo de produção capitalista contra ataques tanto dos trabalhadores como de capitalistas individuais. O Estado moderno, qualquer que seja sua forma, é, portanto, uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, é o capitalista global ideal. Quanto maior é o número de forças produtivas que ele assume como sua propriedade, mais ele se torna um capitalista global real, maior é o número de cidadãos do Estado que ele espolia. Os trabalhadores permanecem trabalhadores assalariados, proletários. A relação com o capital não é revogada; ao contrário, é levada ao extremo. (Engels, 2015, p. 390) Assim Engels ensina ao nosso apologista do capital chinês que a verdadeira propriedade privada capitalista é o capital, e não a propriedade jurídica, que permanece sempre formal, deste. O fato do Estado controlar uma massa maior de capital ou menor sob a posse dos meios de produção, só comprova o fato de que o Estado é, antes de tudo, pertencente a estrutura social do capital, não como “superestrutura” jurídico-política apenas, mas enquanto instrumento produtivo a serviço da reprodução do capital. Desse modo, se a relação capital-trabalho é preservada, seja sob a posse de um punhado de capitalistas, seja sob posse estatal, nada se altera na relação real de subordinação objetiva do trabalho ao capital, pela qual O caráter social da atividade, assim como a forma social do produto e a participação do indivíduo na produção, aparece aqui diante dos indivíduos como algo alheio, como coisa; não como sua conduta recíproca, mas como sua subordinação a relações que existem independentemente deles e que nascem do entrechoque de indivíduos indiferentes entre si. A troca universal de atividades e produtos, que deveio condição vital para todo indivíduo singular, sua conexão recíproca, aparece para eles mesmos como algo alheio, autônomo, como uma coisa. No valor de troca, a conexão social entre as pessoas é transformada em um comportamento social das coisas; o poder [Vermögen] pessoal, em poder coisificado. (Marx, 2011, p. 137)   Ora, na sociedade chinesa o caráter social da atividade, bem como a forma social do produto não comparecem como “algo alheio”, exatamente na medida em que todas as determinações e relações do capital permanecem controlando todo o metabolismo social? Não é o trabalho assalariado o que produz toda a riqueza social chinesa, apropriada sob a forma de mais-valia? Não é a completa separação dos indivíduos do controle real, determinado, o que existe na China? Pois, se existe capital, não pode haver nenhum tipo de controle real pelos produtores associados, na medida em que 1) o trabalho associado é completamente antagônico ao trabalho assalariado, ele só pode se pôr contra e superando a forma assalariada de trabalho 2) o capital é em-si mesmo a alienação do controle, na medida em que ele mesmo é trabalho objetivado alienado, a sua substância é isto, ele não pode conviver com nenhum tipo de controle real, pois sua existência permanece inteiramente condicionada a reprodução da separação entre produção e controle. Isto é, a própria existência do capital é constitutiva dessa separação, o que exige que um grupo de indivíduos personifique o trabalho e outra as exigências objetivas de sua reprodução ampliada, as personificações do capital, que podem ser os capitalistas, ou burocratas do partido, comandando o capital na forma de propriedade estatal chinesa. É assim que a condição alienada da produção e seu caráter fetichista continuam determinantes na produção e no caráter da atividade e de vida do indivíduo. A estrutura geral da sociedade burguesa, suas determinações fundamentais permanecem completamente intocadas no processo reprodutivo da sociedade burguesa chinesa. Contudo, para o apologista chinês, tais constitutivos da sociedade burguesa, são unicamente "noções positivistas e neopositivistas”, como afirma no texto Por outro lado noções positivistas e neopositivistas afirmam relação direta entre a dinâmica chinesa, os países desenvolvimentistas asiáticos e outras formas de Estado Industrial. Nesse caso as “teorias anteriores” são suficientes para explicar a China. Trata-se de uma meia verdade, a começar pelo regime de propriedade e a inauguração de formas superiores nas relações do ser-humano e a natureza. (Jabbour, 2021) Abstraindo-se o completo relaxo quanto à forma do texto de Jabbour, convém indagar ao Jabbour se ele considera Marx e Engels “neopositivistas” avant la lettre  ou se considera enquadrados no que ele menciona serem as “teorias anteriores”, que por algum motivo místico, excetuando-se a passagem do tempo, perderam a sua validade teórica, ainda que o objeto sob o qual sua teoria se constituiu, não foram formas singulares e efêmeras do desenvolvimento capitalista, mas sobretudo os fundamentos causais da sociedade burguesa, principalmente, as condições sociais de produção do capital enquanto tal, em relação às quais, os elementos singulares e as formas concretas são mutáveis, mas que conservam aquele caráter dialético da continuidade na descontinuidade e vice-versa. Convém perguntar se apesar da casca “marxista” que Jabbour pretende atribuir a si mesmo, além desse formalismo tosco e rude, ao qual designaríamos o termo “neokantiano” caso não fosse sujar o nome dos já péssimos neokantianos, se o que Marx designa abaixo, não permanece como verdade teórica geral para a sociedade burguesa, incluindo a China: O pressuposto elementar da sociedade burguesa é que o trabalho produz imediatamente valor de troca, por conseguinte, dinheiro; e então, igualmente, que o dinheiro compra imediatamente o trabalho e, por isso, o trabalhador tão somente na medida em que ele próprio aliena sua atividade na troca. Portanto, trabalho assalariado, por um lado, e capital, por outro, são apenas outras formas do valor de troca desenvolvido e do dinheiro enquanto sua encarnação. Com isso, o dinheiro é, ao mesmo tempo, imediatamente a comunidade real, uma vez que é a substância universal da existência para todos e o produto coletivo de todos. (Marx, 2011, p. 212)   Na China o trabalho não produz imediatamente valor de troca, e por conseguinte dinheiro? O dinheiro não compra força de trabalho, abstraída enquanto potência alienável, vendável? E enquanto vendável, o capital que a compra, seja estatal, seja privado, não controla o conjunto do processo de produção, inclusive a própria atividade do trabalho? Não continuam existindo, portanto, capital de um lado e trabalho assalariado, de outro? O dinheiro não permanece sendo a “comunidade real” enquanto vínculo social dos indivíduos com a totalidade social na China? Ou é alguma forma mística de sensação de pertencimento vinculada a “cultura” ou ao “confucionismo”, enquanto conteúdos ideológicos completamente dissociados das relações sociais reais de produção e distribuição e formas etéreas de consciência social. E por conseguinte, qual seria essa “forma superior de relação do ser-humano e a natureza” quando o conjunto de alienações de que trata Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos permanece existindo? E principalmente, quando a atividade do trabalho e o produto do trabalho permanecem alheios, tornando o gênero humano, a relação do trabalho com a totalidade da sociedade, como um meio para a existência física do trabalhador. Esta produção é a sua vida genérica operativa. Por ela, a natureza aparece como obra sua e sua realidade. O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida genérica do homem, na medida em que ele se duplica não só intelectualmente, como na consciência, mas também operativamente (werktätig), realmente, e contempla-se por isso num mundo criado por ele. Por isso, na medida em que arranca ao homem o objeto da sua produção, o trabalho alienado arranca-lhe a sua vida genérica, a sua real objetividade genérica, e transforma sua vantagem sobre o animal na desvantagem de lhe ser retirado o seu corpo inorgânico, a natureza. (Marx, 2015, p. 313)   Então, do mesmo modo, na medida em que reduz a autoatividade, a atividade livre, a um meio, o trabalho alienado faz da vida genérica do homem um meio para a sua existência física. A consciência que o homem tem do seu gênero transforma-se, portanto, pela alienação, de modo que a vida genérica se torna um meio para ele. Assim, o trabalho alienado faz: 3) do ser genérico do homem – tanto a natureza quanto a sua capacidade espiritual genérica (Gattungsvermögen) – uma essência alienada a ele, num meio da sua existência individual. Ele aliena do homem o seu corpo próprio, bem como a natureza fora dele, bem como a sua essência espiritual, a sua essência humana. (Marx, 2015, p. 313-314)   Não estão, na China, alienadas dos reais produtores, dos trabalhadores chineses, tanto o produto do seu trabalho, sob a forma de mercadorias, quanto a sua atividade, enquanto força de trabalho vendável e pertencente aos empregadores (sejam capitalistas, sejam burocratas do partido), e, portanto, não está a própria vida genérica, a qual o trabalho produz necessariamente enquanto gênero humano objetivamente constituído a partir da transformação da natureza? O gênero humano não se tornou, desse modo, meio para a existência do indivíduo sob mediação determinante deste com aquela, isto é, o trabalho assalariado? E assim, sob a égide da reprodução do capital, enquanto invólucro do gênero humano, não está a natureza alienada, igualmente, dos indivíduos? Não é ela mesma, a natureza, um meio para a reprodução ampliada do capital, o qual está, necessariamente subordinado aos critérios do aumento da produtividade social do trabalho? O que implica em um critério unicamente quantitativo, abstrato, da relação entre homem e natureza, em que essa só conta enquanto menor tempo de trabalho socialmente necessário para sua exploração, como massa de trabalho alienado objetivado. Talvez essas questões sejam muito “positivistas” ou “neopositivistas”. Ou será que já podemos dizer que essas qualificações são fugas fáceis para obstaculizar o debate? Comentemos, por último, todo o restante do texto de Jabbour e tornemos ainda mais explícita sua miséria intelectual. Diz ele que: Existem novas regularidades geradas e a necessidade de novos marcos teóricos, conceituais e categorias à apreensão daquela totalidade. Definitivamente a chamada “Economia do Desenvolvimento” já demonstra fadiga à compreensão de realidades disruptivas. Minha diferença com os economistas do desenvolvimento heterodoxos não é se a China é socialista ou capitalista. Nossas diferenças residem na profunda opção conservadora deles em matéria de ciência e teoria do conhecimento. O positivismo deles os tornam grandes economistas para entender economias “estáveis” e sem grandes novidades no nível das relações dos seres humanos e a natureza. Enfim, são formados e modelados para entender um modo de produção específico. A China é socialista? Esta pergunta não é da tradição marxista. Quem levanta esta questão é fiel ao figurino intelectual que tratei mais acima. Marx nos ensinou a buscar a compreender a natureza e a síntese de determinadas combinações entre fenômenos “subterrâneos” de diferentes idades históricas. (Jabbour, 2021)   O apologista tem razão sobre o fato de que novas regularidades exigem, de fato, novos marcos teóricos, ainda que nem sempre esses marcos teóricos necessitem de fundamentos ontometodológicos distintos, mas isto não vem ao caso aqui. A questão, fundamental, é que na medida em que é o capital a relação social fundamental da produção na sociedade chinesa, e na medida em que está se liga a partir do mesmo conjunto categorial ao mercado mundial, a mera existência de uma burocracia “comunista” não significa alteração alguma nas leis sociais de produção. Por essa razão, na China encontramos as mesmas categorias que Marx, em O Capital, apreendeu as determinações mais profundas e gerais do modo de produção capitalista. Na China a produção tem por objetivo a mais-valia, a separação entre produção e controle é determinante da existência do capital enquanto relação social de produção, e como Engels bem explicou, mesmo a propriedade estatal não altera em nada as leis que regem a produção e a distribuição sob a lógica do capital. É evidente que tais categorias se expressam em formas fenomênicas em tudo distintas, o capitalismo americano apresenta uma “configuração” distinta do francês, do inglês e do chinês, sem que nenhuma das expressões concretas do capital perda seu caráter de capitalismo, enquanto totalidades parciais do mercado mundial articulado em conjunto com as formações estatais do capital. A divergência de Jabbour com quem realiza a crítica da China como forma de desenvolvimento capitalista, a quem ele coloca no mesmo balaio de “economistas do desenvolvimento heterodoxo”, é que diferente dele, não são apologistas cego do capitalismo chinês, e principalmente nada tem que ver com “opção conservadora” em “matéria de ciência e conhecimento”, mas sim do fato de que, os marxistas sérios e rigorosos, não são economistas, são críticos da economia política, e isso possui um sentido muito preciso. Ao invés de capitular frente à realidade, a crítica da economia política deve perquirir a matéria social, reproduzir intelectivamente a realidade em si mesma, tomando o conjunto das relações enquanto processos constitutivos de totalidades que possuem identidade e não-identidade. Tal fato não implica essa espécie de relativismo teórico, dizer como as coisas realmente são implica dizer o que são, qual sua identidade última. No fundo, Jabbour promove um irracionalismo epistemológico tacanho como se para Marx, fosse impossível dizer o que algo realmente é. Ora, Marx apreendeu o que o capital é enquanto processo, enquanto relação, é evidente que não se pode simplesmente dizer “o capital é isso” e ponto, contudo é um processo real e teoricamente apreensível, cujas balizas fundamentais permitem dizer o que é o capital e o que é a negação do capital. O relativismo epistemológico de Jabbour serve a um propósito muito claro, pois, caso fosse impossível determinar os fundamentos objetivos do socialismo enquanto processo de transição, qualquer tipo de fenômeno poderia ser apontado, como faz o apologista, como um passo na transição socialista. Assim, não é casual que a pergunta se a china é socialista seja tratada como pergunta que “não é da tradição marxista”, pode-se, dessa forma, se argumentar pelo mais puro relativismo se passando por um fiel marxista. Marx não nos ensinou a compreender “a natureza e a síntese de determinadas combinações entre fenômenos ‘subterrâneos’ de diferentes idades históricas”, e não o fez simplesmente porquê Marx não é Weber. A ideia de que os fenômenos são “subterrâneos” e que sua constituição é uma síntese de diferentes idades históricas é simplesmente um tipo ideal, um pressuposto. Marx, ao contrário, nunca partiu do fato de que os fenômenos que estão dados na realidade são frutos necessariamente subterrâneos de uma síntese, antes, o próprio fato do fenômeno constituir uma apresentação não exaustiva da realidade teve que ser explicado enquanto determinação, primeiro ontológica da realidade, depois metodológica, ainda que a segunda seja apenas em termos da relação fundamental entre sujeito e objeto, e nunca a produção de um método formal segundo o qual a realidade seria compreensível. A segunda questão é que, como vimos, para Marx, um sistema orgânico, uma totalidade para-si, sempre é produto de um processo em que uma relação constitui o momento predominante no processo, e subordina todos os elementos a sua própria reprodução. Se existe em uma formação social, elementos de “diferentes idades históricas”, esse fato deve ser averiguado na própria investigação da “matéria social”, nunca um pressuposto. E, ainda, mesmo que em um sistema orgânico hajam elementos de “diferentes idades históricas” o que é importante é a função que esse elemento cumpre na reprodução da totalidade presente, não enquanto traço remanescente que pode ser enquadrado conforme sua apresentação histórica genética. Isto é, a reprodução de um elemento de uma sociedade passado só é importante na medida em que sustenta a reprodução das outras partes e da totalidade da sociedade que é o objeto atual. É por essas razão que Marx diz que A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria forma superior já é conhecida. Do mesmo modo, a economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc. Mas de modo algum à moda dos economistas, que apagam todas as diferenças históricas e veem a sociedade burguesa em todas as formas de sociedade. Pode-se compreender o tributo, a dízima etc. quando se conhece a renda da terra. Porém, não se deve identificá-los. Como, ademais, a própria sociedade burguesa é só uma forma antagônica do desenvolvimento, nela são encontradas com frequência relações de formas precedentes inteiramente atrofiadas ou mesmo dissimuladas. (Marx, 2011, p. 76)   E finalmente, se vê a completa incongruência de Jabbour, ao fim quando diz no último parágrafo quando diz que A Economia do Projetamento descoberta por Rangel fora produto de uma combinação (planificação soviética, keynesianismo é o capital financeiro). A Nova Economia do Projetamento que surge na China é algo em que estamos avançando em sua conceituação. Qual país capitalista trocou a iniciativa privada por dois milhões de técnicos à serviço de um Partido Comunista na gerenciamento da “destruição criativa”? Nada disso estava em algum escrito dos clássicos do materialismo histórico. É o que chamo de “historicamente construído. (Jabbour, 2021)   Caro leitor, usemos nossos neurônios, pelo menos mais do que Elias Jabbour, o que certamente não é difícil. Lhes pergunto, como é possível descobrir uma economia que não existe? Como a “Economia do Projetamento” pode ser ao mesmo tempo descoberta por Rangel e produto de uma combinação que, na realidade, nunca existiu? Ora, se se trata na realidade de um modelo produzido tomando elementos da planificação soviética, do keynesianismo e do capital financeiro, só pode ser um construto ideal a ser aplicado, e não a realidade. O que poderia estar mais distante do marxismo do que a produção de um modelo de gerenciamento do capital? Logo Marx que buscava apreender as relações sociais em sua totalidade, como processo objetivo realmente existente? A crítica da economia política de Marx se volta para a apreensão da realidade tal qual ela está constituída, é por isso que ele diz que Como em geral em toda ciência histórica e social, no curso das categorias econômicas é preciso ter presente que o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado tanto na realidade como na cabeça, e que, por conseguinte, as categorias expressam formas de ser, determinações de existência, com frequência somente aspectos singulares, dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que, por isso, a sociedade, também do ponto de vista científico, de modo algum só começa ali onde o discurso é sobre ela enquanto tal. (Marx, 2011, p. 77)   É cristalino o fato de que para Marx, teoria é a reprodução ideal do movimento real do objeto determinado, aqui, como diz ele, a “moderna sociedade burguesa”. Assim, a mistura eclética de modelos econômicos de forma a construir uma “cartilha” aplicável, ou buscar compreender a manifestação fenomênica de uma forma de desenvolvimento nacional do capital, como a chinesa, através da mescla estranha de três “modelos”, juntando a planificação soviética, com o pensamento keynesiano e o capital financeiro, seja lá como se pretenda realizar isto, não poderia estar mais longe e ser mais estranho ao pensamento de Marx. Além, obviamente, de só poder produzir um “voo de Ícaro”, pois entre a relação social real que se desdobra processualmente no mercado mundial, e a malfadada e hoje esgotada via de desenvolvimento nacional do capital e o projeto de desenvolver o capital pelo Estado chinês através da “Economia do projetamento” só pode levar a um beco sem saída, pois no fundo, o capital nacional chinês nada tem de realmente nacional. Em suma, Jabbour não pode conceituar uma forma de desenvolvimento econômico, com todas as suas relações, se ao invés de realizar sua crítica, no real significado marxiano de crítica, ele contrapõe à investigação um modelo idealmente elaborado e pré-concebido de “conceitos”, a partir dos quais constrói seu “objeto”. De marxista Jabbour possui apenas o jargão. Do ponto de vista teórico se refugia no mais puro relativismo, ao tentar cancelar o questionamento fundamental dos critérios objetivos segundo os quais o socialismo pode ser caracterizado enquanto processo e na medida em que pretende cancelar o critério objetivo de validação do conhecimento. E ainda se torna um weberiano inconsciente quando em detrimento da investigação da realidade, realiza uma inversão em que a partir de um modelo ideal, que poderíamos facilmente atribuir ao Dr. Frankenstein, pretende conceituar o real. Caminho completamente oposto ao de Marx. E finalmente, o patético argumento de que a troca dos controladores do trabalho, gerenciadores do trabalho privado por funcionários públicos, fazem qualquer diferença, no quadro em que, de fato a função a qual são chamados a responder é a de serem impositores da lógica quantitativa, da produtividade social do trabalho. De forma alguma isso implica uma transformação qualitativa no sistema do capital. Ora, o próprio fato de que o processo de trabalho requer “técnicos” – uma forma encontrada para escamotear o fato de que ocupam a mesma função na estrutura produtiva do que os gerentes capitalistas – demonstra que do ponto de vista da relação social, as determinações e a alienação entre produção e controle permanecem exatamente às mesmas. Mas agora, ao invés de alguns milhões de gerenciadores privados do processo de trabalho, se tem “dois milhões de técnicos”, gerenciando não a “destruição criativa”, mas a produção destrutiva, característica de nossa época histórica. Nenhum dos “dois milhões de técnicos” a serviço do Partido Comunista Chinês, enquanto personificação do capital, controla o processo, é a lógica do capital, externamente determinada pelo mercado mundial que determina. Tal qual os capitalistas individuais estão sujeitos a lei do valor operando no mercado mundial, o Estado chinês e cada uma de suas unidades produtivas estão igualmente subordinadas a mesma estrutura social. Por essa razão, enquanto a relação-capital existir, não faz a mínima diferença se são “técnicos” de empresas privadas que realizam o “gerenciamento do trabalho”, em verdade, da imposição dos critérios de ritmo e de controle do processo de trabalho sobre os trabalhadores, ou se são “dois milhões de técnicos à serviço de um Partido Comunista”, independentemente de quão bem intencionados estejam os técnicos ou o partido em questão. Ao fim e ao cabo, o que Elias Jabbour chama de “historicamente construído” é qualquer coisa e qualquer fenômeno em qualquer lugar, ou em termos cinematográficos “tudo em todo lugar ao mesmo tempo”, mas que também pode ser nada. É uma tautologia imbecil dizer que fenômenos sociais são “historicamente construídos”, nem Weber, nem mesmo o positivista Durkheim teriam divergências com essa frase. A questão não é se algo é historicamente construído, mas como o ser social se constrói historicamente, e fundamentalmente, qual a relação entre estrutura e história. Quais as determinações ontológicas fundamentais da reprodução social e de uma forma determinada de reprodução social. Qual a identidade interna e a não-identidade de uma forma social com o desenvolvimento histórico. Quais são as determinações de uma totalidade que apresentam a negação ontológica de uma forma de reprodução social? Quais os elementos que constituem limites relativos e limites absolutos em uma estrutura social? O que caracteriza uma forma social e sua negação e com base nisso, quais as categorias transicionais de uma forma a outra? Todas essas são perguntas que se dirigem a apreensão de determinações objetivas. Perguntar quais os fundamentos sociais do socialismo é uma pergunta que Marx, de maneira geral, balizou, compreendendo que apesar das particularidades históricas de apresentação do modo de produção capitalista, as formas nacionais do capital, as determinações mais gerais do capital, do Estado, deveriam ser negadas e superadas no processo de transição, através da positividade do trabalho associado, ou dos produtores livremente associados. Marx nunca produziu uma relativização do conhecimento, negando a possibilidade de determinar o fundamento social de uma reorganização da sociedade sob a base do trabalho associado. Nos próprios Grundrisse, por exemplo, falando sobre o trabalho assalariado e o trabalho comunal, diz que: O trabalho do indivíduo considerado no próprio ato de produção é o dinheiro com que ele compra diretamente o produto, o objeto da sua atividade particular; mas é um dinheiro particular que compra precisamente só este produto específico. Para ser diretamente dinheiro geral, teria que ser desde o início não um trabalho particular, mas trabalho geral, isto é, teria que ser posto como um elo na produção geral. Mas, com esta pressuposição, não é a troca que dá ao trabalho seu caráter geral, mas é antes seu pressuposto caráter comunal que determina a distribuição de produtos. O caráter comunal de produção faz, desde o início, do produto um produto comunal, geral. A troca que originalmente acontece na produção – que não é uma troca de valores de troca mas de atividades, determinada por necessidades e propósitos comunais – inclui desde o início a participação do indivíduo no mundo comunal de produtos. Com base em valores de troca, o trabalho só é posto como geral pela troca. Mas, neste fundamento [comunal], ele é postulado como tal antes da troca; isto é, a troca de produtos não é de maneira alguma o meio pelo qual a participação do indivíduo na produção geral é mediada. A mediação deve, claro, ocorrer. No primeiro caso, que procede da produção independente de indivíduos – não importa quanto estas produções independentes se determinem e se modifiquem reciprocamente post festum – a mediação acontece pela troca de mercadorias, pelo valor de troca e pelo dinheiro; todas expressões de uma e mesma relação. No segundo caso, a própria pressuposição é mediada, isto é, em uma produção comunal, a comunidade é pressuposta como a base da produção. O trabalho do indivíduo é posto desde o início como trabalho social. Assim, qualquer que seja a forma material particular do produto que ele cria ou ajuda a criar, o que foi comprado com o seu trabalho não é um produto específico e particular, mas antes uma porção especial da produção comunal. Ele não tem, portanto, nenhum produto particular para trocar. O seu produto não é um valor de troca. O produto não tem que ser antes transposto a uma forma particular para atingir um caráter geral para o indivíduo. Em vez de uma divisão de trabalho, trabalho que necessariamente é criado no intercâmbio de valores de troca, aconteceria uma organização do trabalho cuja consequência seria a participação do indivíduo no consumo comunal. No primeiro caso, o caráter social de produção é posto apenas post festum com a elevação dos produtos a valores de troca e o intercâmbio destes valores de troca. No segundo caso, é pressuposto o caráter social da produção, e a participação no mundo de produtos, no consumo, não é mediada pela troca de produtos de trabalho ou de trabalhos mutuamente independentes. É mediada, antes, pelas condições sociais de produção no interior das quais o indivíduo é ativo. Aqueles que querem transformar diretamente o trabalho dos indivíduos em dinheiro (isto é, o seu produto também), em valor de troca realizado, querem, portanto, determinar diretamente o trabalho enquanto trabalho geral, isto é, negar precisamente as condições nas quais ele deve ser transformado em dinheiro e valores de troca, nas quais ele depende do intercâmbio privado. Esta demanda só pode ser satisfeita em condições nas quais já não pode ser feita. O trabalho com base em valores de troca pressupõe, precisamente, que nem o trabalho do indivíduo nem o seu produto sejam diretamente gerais; que o produto só atinge esta forma passando por uma mediação objetiva [gegenständliche], por meio de uma forma de dinheiro distinta de si mesmo. (Marx, 2011, p. 170)   Assim, o fundamental real sob o qual se assenta a produção, fundamento do socialismo/comunismo, é o trabalho social antefestum , isto é, o trabalho comunal como elo social da produção. Se no capitalismo o trabalho social só se afirma enquanto social na troca, em que se prova como social pelo valor de troca, o trabalho comunal é social já na própria produção, porque é trabalho geral imediatamente, de todo o conjunto social, e seu produto é imediatamente geral, pois apropriável pelo conjunto da sociedade. Em suma, é evidente como Marx já apreende determinações da positividade do trabalho livre da alienação do trabalho, enquanto trabalho genérico, elo imediatamente conectado com a produção em geral. Distintamente da relação privada de distintos ramos da produção, privados ou públicos, que só se tornam social posfestum , e que o produto do trabalho só ganha caráter social através da abstração do trabalho enquanto objetivação alienada e abstrata. Com isto, cessa o caráter externo e alheio do produto e da atividade do trabalho, tal qual delineou Marx já em 1845 na Ideologia Alemã:   Esse fixar-se da atividade social, essa consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo situado acima de nós, que foge ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e aniquila nossas conjeturas, é um dos principais momentos no desenvolvimento histórico até aqui realizado. O poder social, isto é, a força de produção multiplicada que nasce da cooperação dos diversos indivíduos condicionada pela divisão do trabalho, aparece a esses indivíduos, porque a própria cooperação não é voluntária mas natural, não como seu próprio poder unificado, mas sim como uma potência estranha, situada fora deles, sobre a qual não sabem de onde veio nem para onde vai, uma potência, portanto, que não podem mais controlar e que, pelo contrário, percorre agora uma sequência particular de fases e etapas de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que até mesmo dirige esse querer e esse agir. (Marx; Engels, 2007, p. 38) A superação desse caráter alienado do trabalho, eis a tarefa de uma revolução comunista, e, certamente, não a reposição dessa alienação sob o controle do Estado, como personificação do capital. Pois, como aponta Mészáros   O capital deve ser superado na totalidade de suas relações, caso contrário o seu modo de reprodução sociometabólica, que a tudo domina, não poderá ser deslocado mesmo em relação a assuntos de relativamente menor importância. Isto porque o capital “não é uma simples relação, mas um processo, em cujos vários momentos sempre é capital. [...] a troca não permaneceu inalterada com a colocação formal de valores de troca, mas avançou necessariamente para a sujeição da própria produção ao valor de troca. (Mészáros, 2011, p. 711)   A nosso juízo, é exatamente disto que se trata, a impossibilidade de superar o capital na totalidade de suas relações resultou na reposição de seu modo de reprodução sóciometabólica, que não pode ser deslocado. Exatamente porque o capital é um processo, que permanece sempre capital, e no qual, a produção de valores de uso sempre se subordina a produção de valores de troca. Dessa forma, fica claro, tanto como Jabbour não poderia estar mais distante do marxismo, quanto, ao mesmo tempo, a China não poderia estar realizando nenhuma transição ao socialismo, que possui, fundamentos objetivos, balizadores, pelos quais um processo pode realmente ser bem sucedido, e em relação aos quais, não existe nenhum sinal nas relações sociais existentes na China nos dias de hoje. Tal qual colocou Mészáros, o capital domina o conjunto das relações sociais e não pode ser deslocado, nem superado de forma parcial, ou é superado em sua integralidade – e isto é impossível em um só país – ou se repõe como o comando geral sobre o trabalho com todos os seus imperativos objetivos reprodutivos. Bibliografia: ENGELS, Friedrich. AntiDuhring . São Paulo: Boitempo, 2015. JABBOUR, Elias. A China é Socialista? in: Portal GGN . Disponível em: https://jornalggn.com.br/internacional/a-china-e-socialista-por-elias-jabbour/ . 23 fev. 2021. MARX, Karl. Grundrisse . São Paulo: Boitempo, 2011. MARX, Karl; Engels, Friedrich . A ideologia alemã . São Paulo: Boitempo, 2007. MÉSZÁROS, István. Para além do capital . São Paulo: Boitempo, 2011. MARX, Karl. Cadernos de Paris e Manuscritos econômico - filosóficos de 1844 . São Paulo: Expressão Popular, 2015.

  • O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho – uma ode ao ofício do historiador

    Cena de O Agente Secreto Por Igor Dias Desde o pacto federativo de 1988, a produção audiovisual brasileira foi marcada por filmes acerca da ditadura empresarial-militar levada a cabo no país de 1964 a 1985. Com o cenário político contemporâneo marcado pela ascensão da extrema direita prócere da ditadura, personificada na família Bolsonaro e aliados, temáticas de memória do período encontram novamente nas telonas um espaço privilegiado para dar conta, por meio da História e da narrativa fílmica, tanto de problemas sociais, no melhor espírito da primeira geração dos Annales, como dos anos subsequentes ao fim do regime. As incontáveis premiações, entre elas o Oscar, conquistadas pela obra Ainda Estou Aqui  (2024) novamente abriram as discussões acerca do direito à memória, fragilmente executado pela Comissão da Verdade em 2011 (26 anos após o fim do regime) com a garantia de impunidade aos lesas-pátrias, torturadores e assassinos a serem identificados; uma memória sem responsabilização e sem reparação, ou seja, sem justiça. Estes marcos temporais de que se fala tanto em nosso país explicam-se nos debates acerca das balizas definidoras do escopo da História do Tempo Presente, muitas vezes definidas pelo último grande trauma a marcar nossa sociedade. Nesse sentido, o velho continente tende a se balizar pela Segunda Grande Guerra, que este ano completou 66 anos de seu fim, porém, as condições históricas do Cone Sul são profundamente distintas daquelas encontradas no centro do capital, não podendo, portanto, ser definidas pelos mesmos limites temporais. Os países cuja entificação do Capital ocorreu de modo hiper-tardio, foram submetidos a todo tipo de pressão e repressão para se manterem na periferia do mundo, tanto por agentes externos, ou seja, pelo interesse dos países imperialistas, quanto por agentes internos, nossas próprias burguesias (urbana e rural), que se beneficiam da posição subserviente que ocupam nas relações de Capital internacionalmente. Este marco, para muitos dos países do Cone Sul, são as ditaduras militares da segunda metade do século XX, financiadas com largo apoio dos Estragos Unidos da América. Nossas feridas ainda estão abertas e não fizemos o trabalho de tratá-las adequadamente. Nesse sentido, no último dia 6 de novembro, estreou O Agente Secreto , novo filme de Kleber Mendonça Filho, já aclamado por Bacurau (2019), Aquarius (2016) e O Som ao Redor (2012). Apesar de usualmente trabalhar bem o olhar crítico para problemas sociais, dessa vez, o diretor parece ter chegado na maturidade de sua linguagem cinematográfica ao experimentar uma narrativa lacunar que desenvolve o enredo por meio da relação entre a encenação do que aparentemente ocorreu e as fontes, escritas (jornais) e em áudio (cassetes), construídas pelos personagens desta maravilhosa ficção, tanto no passado quanto no presente. Resultado disso é a constituição de um problema concreto e não uma crítica social abstrata: o problema da relação entre História e o direito à memória, tendo como base o contexto da ditadura empresarial-militar brasileira; algo fundamental quando observamos que somente no último dia 9 de outubro, 40 anos após o fim do regime militar, a República Federativa do Brasil iniciou a retificação dos atestados de óbito de mortos e desaparecidos políticos durante o período . Ao buscar reconstituir, ainda que na lógica ficcional, o passado no presente, a obra nos demonstra em diversos níveis a impossibilidade de completa restituição do passado, inclusive podendo dar a ele novo sentido no presente, a exemplo da interpretação ficcional apresentada sobre o caso real da “Perna Cabeluda” que assolou Recife naquele ano de 1976 e que talvez tenha tido o maior impacto na recepção do filme. O filme optou por representar a ação da perna tal qual descrito nos jornais, ou seja, de uma perna humana desprovida de corpo que agredia os civis, tomando-a por ser folclórico-mitológico, quando, em verdade, é resultado de uma narrativa que buscou burlar a censura e apresentar casos de violência policial nos jornais. Ainda mais essencial é a forma como as informações sobre os personagens não são entregues descaradamente (muito se valendo de uma montagem meticulosa para conectar informações), cabendo ao espectador desvendar a peça audiovisual que se desvela aos seus olhos e realizar, por si próprio, a ligação causal do que se estabelece, à exceção do enredo central, que conta a história de Marcelo/Armando. Desse modo, rememorar o período ditatorial significa também acessar, numa posição de espectador ativo, todo seu repertório acerca do período e tomar partido das informações apresentadas; o que fomenta não só o direito à memória, mas a responsabilidade e o direito de ação frente a essa memória ao nos colocar perante o agora Dr. Fernando em um dilema não respondido: manteremos nossos pais esquecidos ou acessaremos as fontes que, ainda que dolorosas, nos permitirão manter a memória viva?

  • Todo apoio a Jones Manoel contra o terrorismo neonazista

    Imagem: Jones Manoel Jones Manoel, militante do PCBR, vem denunciando há semanas as ameaças à sua vida e integridade feitas por um grupo que se autodenomina nazista. Os supremacistas, por meio de e-mails, demonstram conhecer diversas informações pessoais sobre ele e seus familiares, além de proferirem graves injúrias raciais. O grupo exige uma quantia em dinheiro, ameaçando ir até sua residência e atacá-lo caso a exigência não seja atendida.  O grupo neonazista, identificado pelos advogados de Jones como responsável pelas ameaças, é uma organização de alcance internacional, com atuação também na Europa e nos Estados Unidos. Estima-se que seus membros estejam envolvidos em cerca de uma dúzia de assassinatos ao redor do mundo, sendo cinco deles ocorridos apenas nos Estados Unidos. O grupo se declara abertamente “nacional-socialista”, incita a guerra racial e defende a criação de um Estado étnico de supremacia branca por meio de ações terroristas. Nenhum marxista minimamente responsável e coerente pode encarar esse tipo de situação como mera bravata ou simples histrionismo político. É natural que existam, entre nós, diferentes interpretações sobre o real peso social da extrema-direita no Brasil e no mundo, bem como sobre a própria existência de algo que se possa chamar de fascismo – ou “neofascismo” – enquanto expressão política da luta de classes no capitalismo contemporâneo. No entanto, a violência e o uso sistemático do terror pela chamada alt-right  – a “direita alternativa”, denominação estadunidense para a vertente mais irracional e radicalizada da direita – revelam-se uma realidade concreta. No Brasil, figuras como Eduardo Bolsonaro, Nikolas Ferreira e membros do MBL aproveitaram o assassinato do militante direitista norte-americano Charlie Kirk para tentar insuflar o medo e a repulsa contra nós, comunistas, nos responsabilizando pela violência que, na verdade, é promovida por eles. Independentemente do grau de concordância que se tenha com as posições de Jones, sua forma de agitação e propaganda o projetou, de fato, no debate público como uma figura da esquerda comunista, motivo pelo qual agora ele é alvo da ferocidade anticomunista. Portanto, o caso diz respeito, em primeiro lugar, à vida e à integridade física de Jones, além de servir como um prenúncio do nível de violência que pode vir a atingir toda a esquerda marxista no país. Embora o marxismo ocupe hoje um espaço reduzido e de pouca influência na dinâmica geral da conjuntura, cabe a nós exigir uma investigação rápida e a devida resolução do caso, além da garantia imediata da segurança de Jones. Se os marxistas brasileiros, seja qual for sua profissão de fé – “marxismo-leninismo”, “trotskismo”, “maoísmo” –, não forem capazes de demonstrar o mínimo de preocupação diante de uma situação como esta, então nossa crise ideológica será, mais uma vez, confirmada pelo sectarismo caduco e pela cegueira da autoconstrução. Todo apoio e solidariedade a Jones Manoel contra as ameaças do terrorismo neonazista.   Comitê editorial da Revista Barravento, 21 de outubro de 2025

  • Vera Cotrim, presente!

    A Revista Barravento vem em nome de todos os seus membros manifestar profundo pesar pela perda da professora Vera Cotrim. Em nome da relevância e do respeito ao qualificado debate que Vera sempre cultivou e promoveu, republicamos sua contribuição direta a esta revista, o texto "Intelectualidade e Luta de Classes: uma crítica à postura tuísta" partes 1 e 2 . Vera esteve sempre empenhada em contribuir no processo de aprendizagem de pesquisadores e militantes e na formulação qualificada dos debates marxistas, compreendendo a concretude dos problemas de ordem intelectual. Com sua imensa generosidade, contribuiu para nossa revista não apenas com seu texto, mas também reforçando a importância política de iniciativas críticas e independentes como a Barravento. Sua partida representa uma perda inestimável para o fortalecimento de nossos horizontes. Ao mesmo tempo, Vera Cotrim nos deixa como contribuição rica as bases necessárias para pensar nossa realidade de maneira crítica, bem como para concatenar as relações necessárias para uma crítica cotidiana da sociedade burguesa, que, ao fim, aponte para a superação dessa sociedade. Vera Cotrim, presente! Intelectualidade e luta de classes: uma crítica à postura tuísta Intelectualidade e luta de classes: uma crítica à postura tuísta - parte 2

  • Sobre a revista Svoboda [A respeito de uma escrita popular]

    Por V. I. Lênin Nota do editor: Este breve texto foi escrito por Lênin no outono de 1901 e permaneceu inédito até sua publicação póstuma em 1936. Neste único e curto parágrafo, a diferença entre aquilo que é “popular” e aquilo que é “popularismo” traz à tona o profundo e ainda recorrente engano de que a comunicação com os trabalhadores pressupõe a subestimação de suas capacidades. Não se trata de oferecer respostas simples, mastigadas e fáceis de engolir, mas sim de ensinar ao “leitor pensante” a “seguir por conta própria” e instigá-lo a “mais e mais perguntas”. Mantivemos os grifos originais do autor em itálico. Tradução e cotejamento de Pedro Badô. A revistinha “ Svoboda ” [1]  é absolutamente ruim. Seu autor – a revista dá a exata impressão de que foi escrita do começo ao fim por uma só pessoa – pretende fazer uma escrita popular “para trabalhadores”. Mas isso não é ser popular, é popularismo [популярничанье] [2] . Não há nenhuma palavrinha simples, tudo é com maneirismo... Sem afetação, sem comparações “populares” e sem palavrinhas “do povo” – tal como “deles” [ихний] [3]  – o autor não consegue dizer uma só frase. E com esta linguagem monstruosa, mastigam – sem novos dados, sem novos exemplos, sem nenhuma reelaboração – ideias socialistas banais, deliberadamente vulgarizadas. A popularização, diríamos ao autor, está muito longe da vulgarização, do popularismo. Um escritor popular leva o leitor a um pensamento profundo, a um ensinamento profundo, com base nos dados mais simples e bem conhecidos, apontando, com a ajuda de raciocínios simples ou exemplos bem escolhidos, as principais conclusões desses dados, instigando o leitor pensante a mais e mais perguntas. O escritor popular não pressupõe um leitor que não pensa, não quer ou não sabe pensar; ao contrário, ele vê no leitor ainda pouco desenvolvido a intenção séria de usar a cabeça, e o ajuda a realizar esse trabalho sério e difícil, guiando-o  nos primeiros passos e ensinando-o  a seguir por conta própria. O escritor vulgar pressupõe um leitor que não pensa e é incapaz de pensar; ele não o conduz aos fundamentos de uma ciência séria, mas, numa forma monstruosamente simplificada, temperada com piadinhas e ditados, lhe oferece já “prontas” todas as conclusões de ensinamentos bem conhecidos, de modo que o leitor não precisa nem mastigar, basta engolir aquela papinha. Notas: [1] A Svoboda  – em russo, “Liberdade” – foi uma revista editada na Suíça em 1901 e 1902 pelo grupo homônimo, fundado em maio de 1901 e descrito como um grupo “socialista revolucionário”. A revista teve duas edições. Em suas publicações, o Svoboda defendia princípios do “economicismo” e do terrorismo, além de apoiar grupos anti- Iskra  na Rússia. A revista deixou de existir em 1903. (Nota do tradutor) [2] A palavra “популярничанье” não tem tradução direta, mas é um diminutivo pejorativo de “popularização” ou “tentativa de parecer popular”. (Nota do tradutor) [3] A palavra “ихний” é uma forma comum no russo coloquial equivalente ao nosso pronome “deles”, que no russo formal seria “их”. Não encontramos uma forma compreensível de tradução para o leitor lusófono, motivo pelo qual mantivemos o texto original, o que, evidentemente, prejudica o teor satírico pretendido por Lênin. (Nota do tradutor)

  • L.A. (1): a respeito dos recentes protestos em Los Angeles

    Fonte: Mario Tama/AFP A Radencommunisten  é uma publicação periódica de crítica radical e intervenção política, ancorada na tradição do comunismo de conselhos. Sua perspectiva parte do reconhecimento da completa subordinação da vida da classe trabalhadora às dinâmicas do capital. Portanto, reivindica a centralidade da autoemancipação da classe trabalhadora, recusando quaisquer mediações institucionais promovidas por partidos ou sindicatos, os quais são tidos como elementos comprometidos com a manutenção da ordem burguesa. Dialogando criticamente com as condições do tempo presente, a publicação analisa episódios recentes de mobilização social, como as manifestações em Los Angeles, e aponta os limites dos movimentos espontâneos quando desprovidos de organização classista autônoma. O autor reivindica o legado da esquerda comunista holandesa-alemã e do KAPD, destacando a ação direta, a greve e a auto-organização enquanto ferramentas históricas da luta proletária. O texto abaixo foi escrito em formato de carta, buscando relatar brevemente o que estava se desenrolando na cidade estadunidense de Los Angeles durante as perseguições efetuadas pelo ICE ( Immigration and Customs Enforcement ). Devido a sua ampla repercussão e divulgação, a Radencommunisten explicou em nota introdutória que tal carta reflete o posicionamento e a interpretação política de um dos membros do coletivo e não da publicação como um todo. Também já foi anunciada a publicação de uma segunda carta. Acreditamos que o debate iniciado pelo texto é frutífero, enquanto umas das múltiplas compreensões e análises possíveis dos eventos em L.A. Portanto, esperamos que essa tradução também possa abrir e aprofundar o debate sobre as formas contemporâneas da luta de classes. Nota dos editores: houve um equívoco significativo sobre a relação entre Radencommunisten e esta carta. Escrita por um dos membros do Coletivo Comunistas Conselhistas, ela não representa de modo algum a opinião nem do Radencommunisten , nem do CCC. Para as opiniões aprovadas pela publicação, ver   a nossa carta de princípios  bem como   nossa página principal . O movimento nas ruas Na sexta-feira, 6 de junho, centenas de pessoas, latino y blanco igual , saíram às ruas para protestar contra a deportação violenta de milhares de imigrantes pelo ICE. Em 8 de junho, o secretário de defesa Pete Hegseth ordenou o envio da Guarda Nacional para reprimir os protestos. Em 10 de junho, 700 fuzileiros navais foram destacados para auxiliar a Guarda Nacional e o ICE. Desde então, protestos começaram em muitas cidades. Muitas organizações locais e suas respectivas filiais (PSL, 50501) organizaram manifestações para o fim de semana seguinte. Apesar da chegada de tropas federais, os protestos continuaram acontecendo. Só na noite de 7 de junho foram detidos quase 200 manifestantes. Entre os comunistas, os protestos receberam inúmeros apoios, sendo anunciados por quase todos os setores como um avanço na luta das massas trabalhadoras. Entre a esquerda estadunidense, os protestos já foram rotulados como a continuação dos protestos Black Lives Matter . No contexto deste júbilo extremo, é necessário que os comunistas façam uma avaliação fria do caráter e limitação do movimento de protesto. Aqui, em vez de mergulhar nas minúcias da conveniência de certas atividades — sejam elas violentas ou pacíficas, etc. — procuramos oferecer uma análise generalizada que reconheça a tendência degenerativa persistente no interior dos próprios protestos.   As limitações do movimento   1.             O movimento ainda é dominado ideologicamente pelas classes médias. Apesar dos manifestantes terem sua origem predominantemente na classe trabalhadora, as exigências do protesto refletem os interesses da pequena burguesia. Se os trabalhadores não puderem separar-se da parte da burguesia com que partilham a sua etnia , serão forçados a adotar uma prática interclassista, levando a uma derrota definitiva do movimento. Para qualquer trabalhador, é necessário unir-se com outros trabalhadores a partir de uma base comum de classe. 2.             O movimento está limitado a um setor da classe trabalhadora. Apesar da composição variada dos protestos, eles não se espalharam para outros setores da classe trabalhadora. Enquanto os trabalhadores militantes se reuniam para os protestos, eles não tentaram trazer seus próprios setores da classe para a luta. Aqui, a participação em confrontos de rua dificulta os esforços associativos necessários para organizar um movimento independente em toda a classe. Para que a luta dos trabalhadores latinos seja bem-sucedida, ela deve se espalhar para a classe trabalhadora em geral. 3.             O movimento está atualmente limitado somente a ações de rua. O fato de o movimento assumir a forma de batalhas de rua, anunciadas por muitos da esquerda como a sua maior força, é de fato sua maior fraqueza. A greve, a maior arma da classe trabalhadora, continua monopolizada pelos sindicatos. A auto-organização de toda a classe, maior força da classe trabalhadora, permanece enjaulada. Para que a luta da classe trabalhadora seja bem-sucedida, a revolta é uma ferramenta inadequada: a classe trabalhadora deve usar sua tática mais forte, a tática da greve, e sua maior força, a capacidade de auto-organização, para atingir seus objetivos.   Lições para os trabalhadores e os comunistas   Na luta de classes, maior barreira que a classe trabalhadora tem que superar é ela própria. Com as limitações mencionadas em mente, é evidente que, no momento, o movimento em Los Angeles não superará suas próprias limitações. No entanto, ao reconhecer o que falta atualmente ao movimento, é possível identificar quais os fatores ausentes que terão uma importância decisiva no futuro. Neste caso, nos são dadas três lições: 1.             Para que mesmo um setor limitado da classe trabalhadora alcance seus objetivos, ele deve apresentar-se baseado explicitamente na classe. As ilusões da ideologia da classe média só podem servir para frustrar continuamente a luta independente do proletariado. Os trabalhadores, por mais isolados que sejam, devem unir-se de forma independente e consciente como trabalhadores. 2.             Para que qualquer setor da classe trabalhadora avance em sua luta, ele deve unir-se ao maior número possível de outros setores. À medida que a luta se expande de setor para setor, o poder da própria classe trabalhadora se expande exponencialmente. A expansão de qualquer luta particular para toda a classe trabalhadora é a maior tarefa na própria luta de classes. 3.             As ações de rua são a maior fraqueza das classes trabalhadoras. Em vez de limitar o seu confronto à polícia, os trabalhadores devem lutar em todas as frentes contra a burguesia, tanto dentro como fora do local de trabalho. Por um lado, devem recusar-se a continuar a trabalhar e, por outro, criar novas formas de organização para gerir os seus próprios assuntos. A melhor táctica da classe operária continua a ser a greve, a sua maior força é a capacidade de auto-organização.   Sobre o fracasso dos comunistas   Embora seja certo que o movimento comunista vá aprender estas lições, é pouco provável que o faça. Seguindo as comparações dos eventos em Los Angeles com os protestos Black Lives Matter , todas essas lições poderiam ter sido aprendidas após 2020, mas não o foram. Lá, também, um forte movimento dos trabalhadores foi dominado pela ideologia da classe média. Lá, também, a luta permaneceu limitada a um setor restrito da classe trabalhadora. Lá, também, o movimento estava confinado às ruas. Mas os comunistas, em vez de aprenderem com as suas derrotas, replicaram a sua impotência . Ainda predomina a ilusão de que o Estado nos EUA — talvez no auge de seu poder — está fadado a cair devido a mais uma revolta. Cada surto esporádico de descontentamento é anunciado pelos comunistas como o prenúncio da revolução, como uma nova forma de “violência revolucionária”. Na realidade, o desenvolvimento da violência revolucionária é um processo lento e árduo, no qual a classe trabalhadora aprende continuamente com os seus sucessos e fracassos, culminando na tomada do poder. A revolta não é a violência revolucionária: é a expressão da incapacidade da classe trabalhadora de exercê-la. O tratamento zeloso e dogmático da revolta como vox populi  deve ser responsabilizado, em parte, pelo péssimo estado do movimento dos trabalhadores. Aos trabalhadores e comunistas atualmente na linha de frente , nós enviamos os cumprimentos dos compañeros  na luta. Mas, por favor, compreendam qual violência os libertará e qual violência os manterá acorrentados.   “A violência revolucionária é, em essência, a oposição da classe dos produtores à classe burguesa, à classe que, individual ou coletivamente, controla os meios de produção. Essa violência deve culminar com a expropriação da classe burguesa e a apropriação dos meios de produção pelos próprios produtores. Deste modo de olhar para a violência revolucionária, o controle do local de trabalho pelos trabalhadores — como foi tentado em certos casos na Itália — é cem vezes mais violento do que qualquer enfrentamento com a tropa de choque, simplesmente porque transcende a racionalidade econômica burguesa e olha para além da sociedade como existe hoje para uma nova ordem social na qual o trabalho é organizado pelos trabalhadores para o seu próprio bem-estar. Em contraste, guerra de guerrilha, revoltas, etc. permanecem no interior dos limites da racionalidade tal como definida pelo sistema, já que não atacam de nenhuma forma direita o controle do processo de produção pelo capital” (Chameau, 1975).   M. S. Chameau, Albert. “A few reflections”, Root and Branch: Rise of the Workers Movement (1978), 500.   https://libcom.org/article/few-reflections-albert-chameau  [“Algumas reflexões”, Raiz e ramo: Ascensão do Movimento dos Trabalhadores (1978)]

  • Globo News: os Porcos e suas pérolas¹.

    por Rafael Jácome Desde o famoso “Uma escolha muito difícil” que a imprensa brasileira não nos presenteia com um uma pérola digna dos mais sujos chiqueiros liberais. Desta vez, a Globo News reuniu um grupo de célebres liberais mediocremente alinhados entre si , para debaterem do alto de suas “especialidades” sobre o imbróglio que o governo reformista do PT causou ao ser o agente operacionalizador dos cortes que hoje ganham destaque na imprensa. Cortes pautado numa política de austeridade típica dos mais repulsivos interesses da burguesia brasileira, colocando a cúpula petista em contradição flagrante contra boa parte de sua base orgânica, eleitoral, social e oscilante. Neste show de barbaridades, destacamos aqui algumas falas desse nobre canal que outrora deu cobertura exemplar às manifestações que culminaram na deposição do próprio governo petista em 2016 e que ficou eternizado como apoiador fiel de uma ditadura que assassinou milhares de trabalhadores e combatentes de esquerda. Tais falas são emblemáticas e denotam nada mais que um desprezo cínico destes canais e de seus financiadores (a burguesia) com a classe trabalhadora deste país. Tão cínico quanto o apoio de Geraldo Alkmin às privatizações de Tarcísio , este mesmo Tarcísio que cometeu crime eleitoral contra o recentemente descartado pelos liberais paulistanos (mesmo fazendo concessões em pautas históricas); Guilherme Boulos. Vamos às duas principais pérolas. “Ele ainda pensa como sindicalista...”  ( comentário sobre a resistência de Marinho em relação aos cortes na pasta do Ministério do Trabalho). Aqui vale a máxima de que os ideólogos sempre deixam escapar (sem querer) meias verdades ao contar as mais completas mentiras sobre a realidade ou sobre seus preconceitos. Como lacaios de topete e brilhantina do que existe de mais podre nas concepções do liberalismo brasileiro, nesta pérola está explicitada o que a burguesia brasileira (seja ela polida ou raivosa) realmente pensa sobre os trabalhadores, seus organismos de luta e seus anseios por condições de trabalho melhores. Para estes jornalistas existe uma separação entre o pensamento de um sindicalista, historicamente atrelada ao símbolo da combatividade em defesa dos interesses da classe trabalhadora (ou que ao menos teria sido, em outros tempos) e uma suposta superioridade intelectual dos gestores do capitalismo. Além do mais, sem perceber a apresentadora reconhece que, apesar de um alinhamento intra estado, existe um conflito gritante entre os interesses da classe dominante e a massa de trabalhadores impactados por suas políticas de austeridade (esta última representada na imagem do "pensa como sindicalista") e o jogo de cadeiras do governo evidenciar isto, mesmo que pouco, é inadmissível. Para aplacar uma contradição governamental imposta pelos cortes em áreas imprescindíveis para a qualidade de vida dos trabalhadores, tais jornalistas precisaram explicitar seu preconceito de classe para que diante das contradições que o governo petista apresenta, os interesses de Haddad e sua turma prevaleçam, saindo assim como os vencedores na resolução desta contradição. Uma disputa suja. Que o governo do PT está explicitamente alinhado aos interesses dos setores da burguesia que operam tal cortes, disto já sabemos. Entretanto o que fica concreta e simbolicamente expressada nas falas destes jornalistas é que, para bancar tal alinhamento, os setores de cúpula do petismo têm atropelado até mesmo sua base mais ligada aos anseios dos trabalhadores e um projeto de derrota do liberalismo e do bolsonarismo (ainda que por vias reformistas). Não afirmo que Marinho não tenha sido em algum momento de nossa história um expoente dos interesses históricos dos trabalhadores, não conheço sua história o suficiente. Mas apesar de seu histórico ser reafirmado pelos seus defensores, nada parece diminuir a vergonha de seus tweets desmobilizando a pauta do pelo fim da escala 6x1. Em suma, aqui destaca mais o conteúdo atacado do que o sujeito que, para esses jornalistas, expressa tal conteúdo. Se ao menos o governo tivesse mais expoentes que pensassem como sindicalistas (como não parece ser o caso de Marinho, atualmente), certamente teria a coragem de mobilizar a classe pela revogação imediata da reforma trabalhista. Reforma esta que não gerou empregos, mas sim miséria. Também não veríamos um ministro da fazenda de um governo que mobiliza símbolos – somente símbolos - históricos dos trabalhadores ser defendido por um canal que outrora foi o principal articulador do processo que culminou na ascensão do bolsonarismo. “Em que mundo ele vive?”  (comentário sobre a fala de Marinho: “Se não quiser, a Uber que vá embora”, frente a resistência da empresa Uber de ter sua atividade exploratória e intensamente precarizante, regulamentadas pelo estado brasileiro). Tal fala é de uma falta de compreensão tão grande sobre as condições de trabalho e a própria dinâmica de exploração a qual os trabalhadores de aplicativos estão submetidos, que chega a dar asco. Tal fala ignora (propositalmente) que as empresas de aplicativo efetivam uma verdadeira precarização do trabalho em nosso país, colocando os trabalhadores sob um regime de perseguições e maquinações criminosas das mais diversas a fim de garantir suas taxas de lucro e de evitar a organização da categoria de motoristas e entregadores de aplicativos. Meses após o “Breque dos APP’s”, greve tocada pelos entregadores de aplicativo em solo brasileiro, o portal A Coisa Pública  publicou uma matéria investigativa intitulada “A máquina oculta de propaganda do iFood”. Esta matéria investigativa demonstrou uma série de maquinações para desarticular, de maneira criminosa, uma categoria que se organizava pela melhora das condições de vida dos trabalhadores de aplicativo. Entre essas maquinações estão a instrumentalização da necessidade de vacinação para os fins de desarticulação da greve, visto que "os adesivos e a faixa que pediam “vacinação já” no estádio do Pacaembu (...) vieram acompanhados pela disseminação de posts e comentários de usuários falsos, que teriam sido criados por agências de publicidade a serviço do iFood no Twitter e Facebook.". Ou seja, a tão orgulhosa, GloboNews,  que fez uma pseudo-campanha pela vacinação hoje se coloca em defesa de um segmento burguês que subverteu a lógica humanizadora por traz da luta de nossa classe por vacinação, afim de desarticular esta mesma classe em seu processo de luta por melhores condições de trabalho. Isto demonstra nada mais que tais canais burgueses se apropriam de nossas pautas, mas esvaziam seu núcleo duro revolucionário afim de perpetuar os interesses de uma classe dominante apodrecida. Tal jornalismo também evidencia outras coisas. A primeira delas é a mistificação extrema, através da imprensa. Luiz marinho (ministro do trabalho) afirmou que se a empresa quiser ir embora do Brasil, “problema” é da empresa. E, ainda que fale de um ponto de vista liberal, ele está certo. Um complemento na fala do ministro que não foi evidenciado nos títulos das notícias alarmistas, foi de que: caso a Uber fosse embora, uma concorrente ocuparia seu lugar. Até a mente liberal mais ingênua, se pautando pela abstração reducionista do eixo “oferta X demanda”, sabe que qualquer viabilidade empresarial no mercado obedece às possibilidades colocadas pelo contexto. Fato é que para operar seu lucro de 11 bi [CdM1]  a Uber tem no Brasil seu segundo maior mercado. Contando com mais de 22 milhões de usuários e mais de 600 mil motoristas, tal empresa vê no Brasil um dos países centrais que alavancam sua política de expansão mundial “feroz” sustentada nas costas dos trabalhadores. Ora, caros jornalistas liberais, temos como concorrente da Uber uma empresa chinesa (99), em plena aproximação deste país do bloco econômico da China. Em termos puramente liberais: a ausência de uma empresa precarizada, num contexto em que o monopólio do setor ainda não está consolidado, obviamente fará com que a fatia abandonada por uma das concorrentes ao monopólio seja imediatamente abraçada pelo investimento da que sobrou. Será que até mesmo nas categorias que acreditam com fé religiosa, como a “concorrência”, liberais são suficientemente perdidos para não dar coerência ao que falam? Claramente, o liberal menos estúpido responderá que isso seria ruim pelo fato que diminuiria a concorrência e automaticamente implicaria num aumento de preços. Ao fazer tal movimento, cai a máscara liberal e com ela seus mitos, derretendo-se aos olhos de seus asseclas, frente à necessidade de remeter à intervenção estatal como forma de regulação do mercado. Dito isto é evidente que é justamente essa necessidade regulatória do Estado frente ao mercado que se deseja camuflar; já que o pacote de austeridade tocado pelo petismo atualmente é um verdadeiro condicionamento (esperado) da máquina estatal, a fim de proteger o mercado para que assim se favoreça uma classe que não é a dos entregadores e motoristas de aplicativo. Uma verdadeira e proposital inversão. Outra característica típica dos liberais (decorrente da constatação óbvia nos parágrafos acima) é inverter a ordem do processo econômico, centralizando o pilar econômico de nossa sociedade nos proprietários dos meios de produção (burguesia) ao invés de reconhecer na massa de trabalhadores essa centralidade. Massa sem a qual nenhuma mercadoria seria produzida e sairia das fábricas ou das lojas para ir magicamente parar no mercado para ser comercializada. O jornalismo liberal médio desconsidera ou tenta camuflar tal constatação, seus estúdios arejados são impermeáveis à compreensão mais basilar da economia política e acabam disseminando as mesmas barbaridades que o bolsonarismo mais apaixonado, porém de maneira mais polida para dar ares de sobriedade. Tal constatação óbvia (por isso tão atacada) explica o motivo de a Ifood ter investido tanto na desarticulação da greve dos motoristas e entregadores de aplicativo. Sem a atividade cotidiana da massa de trabalhadores de aplicativos em nosso país, atendendo à dinâmica do “trabalho por peças” descrita por Marx (2) (em que se coloca nas costas dos trabalhadores uma intensidade maior do ritimo de trabalho e, no cenário atual, de maneira ainda mais exploratória, também os custos dos seus meios de trabalho), a atividade de qualquer empresa de aplicativo se torna ameaçada em nosso país. Fica explicito que, invariavelmente, a permanência das empresas de aplicativo em solo nacional passa pela manutenção de condições de trabalho precárias e que hoje levam ao abarrotamento de processos trabalhistas na justiça brasileira (houve um crescimento de 400% na pandemia ), em que os relatos chocantes não parecem sensibilizar nossos queridos jornalistas da GloboNews. Com base nas linhas acima, respondemos aos “nobres” jornalistas: ao menos Marinho da indícios tímidos de ainda viver num país concreto e paralelo a confortável sala com ar condicionado dos jornalistas, em que os "especialistas" comentam barbaridades que só podem sair da boca de quem quer transformar o mercado em sujeito e o trabalhador em mercadoria. Se o governo fará mais que reconhecer este Brasil real e com isso alavancar uma mobilização digna da classe, recuar na politica de austeridade e sair da posição rendida ao capital, veremos (duvido). Certo é que devemos estar preparados e articulados para qualquer cenário; sem desânimos! Um apontamento sobre as pérolas. Uma afirmação nem sempre vem pela necessidade de se esclarecer, muitas vezes se trata só da necessidade de reafirmação do óbvio: não existe horizonte para os trabalhadores nas políticas liberais que hoje o governo vem implementando. No fim este texto é mais do mesmo, mas óbvio em tempos de barbárie é bandeira de combate. Dito isto, não nos é estranho que tais liberais e seus jornalistas alinhados disseminem, seja com educação e polidez ou com escarnio e acidez, a defesa de políticas que contribuam para a morte de milhares de trabalhadores. O que salta aos olhos é que uma parte da base petista entre nessa empreitada de defesa de tais políticas, mistificando o processo da luta de classes em mero joguete estadista para defender a forma governo e não o questionamento de seu conteúdo. Em 2016 Dilma fez concessões ao mercado e mesmo assim foi deposta de seu cargo. Naquela situação podemos dizer que o governo conseguiu emplacar a ideia de que jogou pérolas aos porcos, a fim de que eles se acalmassem e a mantivesse no executivo em nome de uma governabilidade rendida ao capital; não deu certo. Hoje vemos boa parte da base governista e o próprio governo em alinhamento com a cúpula encabeçada por Haddad: agora é o governo que decidiu, explicitamente, pegar as pérolas jogadas pelos porcos. Veremos no que vai dar. ***     1.     A mídia hegemônica teve muito trabalho nos últimos dias, devido a explosão de insatisfações com a jornada 6x1. Não faltou "pérolas". Para um debate mais aprofundado, recomendo este ótimo texto do Lambertucci : " É A LUTA DE CLASSES, ESTÚPIDO! ". 2.      “No salário por tempo domina, com poucas excepções, o mesmo salário para as mesmas funções, enquanto no salário à peça o preço do tempo de trabalho é, com efeito, medido por um quantum determinado de produtos, o salário diário ou semanal, pelo contrário, varia com a diversidade individual dos operários, dos quais um apenas fornece o mínimo de produto num dado tempo, o outro a média e o terceiro mais do que a média. No que diz respeito ao rendimento real têm aqui lugar grandes diferenças consoantes a diversa destreza, força, energia, resistência, etc., do operário individual. Isto naturalmente não altera em nada a relação geral entre capital e trabalho assalariado. Em primeiro lugar, na oficina total as diferenças individuais compensam-se, de tal modo que ela fornece o produto médio num determinado tempo de trabalho e o salário total pago torna-se o salário médio para este ramo de negócio. Em segundo lugar, a proporção entre salário e mais-valia permanece inalterada uma vez que ao salário individual do operário singular corresponde a massa de mais-valia por ele fornecida individualmente. Mas o espaço de manobra maior que o salário à peça proporciona à individualidade tende, por um lado, a desenvolver a individualidade e com ela o sentimento de liberdade, a autonomia e o autocontrolo dos operários, e, por outro lado, a concorrência entre eles e de uns contra os outros.”   MARX, Karl.  O Capital: crítica da economia política. Livro primeiro : O processo de produção do capital. Sexta seção: O salário. Décimo nono capítulo: O salário à peça. Disponível em: [ https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap19/01.htm](https://www.marxists.org/portugues/marx/1867/capital/livro1/cap19/01.htm) . Acesso em: 11 nov. 2024.

  • Mais vale uma arma na mão do que uma verdade à mesa

    Militares carregam a bandeira da União Europeia. (Foto: European Parliament / Flickr) Por Charles Jr e Antônio Carlos “ A economia da zona do euro quase não cresce há dois meses consecutivos, já que a leve expansão no setor de serviços foi quase totalmente consumi da pela recessão no setor industrial”, disse Cyrus de la Rubia, economista-chefe do Hamburguer Commercial Bank[1].   Mesmo que o sol da primavera já esteja esverdeando, o St . James 's  Park, passando pelo Champs-Élysées até  a imponente escultura no lindo jardim do Palácio de Livadia, na Criméia, há muito mais que as taxas de Trump soprando o vento polar no Lume da acumulação europeu. Sim, o estado estacionário assola o velho continente há algum tempo. Iss o, m eus lind os , o trem tá fe io no berço do capitalismo. Então, vamos ao que interessa, ao miolo da treta. Chama!   O centro do mundo capitalista tem nome e local definido. Ou seja, o grosso da produção e circulação de mercadorias do mundo é composto pela Europa (leia-se Inglaterra, Alemanha e França), Japão e EUA. Você pode produzir em qualquer lugar do planeta, mas 48% do PIB e 26,6% das importações mundiais estão nesta tríade. Junto a isto, está a produção de tecnologia, exportação de capitais e da máquina de guerra. Ou seja, nas crises cíclicas, se seguidas da ingovernabilidade e guerra civil, podem descarrilar  para todo o globo como um rastilho de pólvora, caso atinja em cheio alguns desses pilares do modo de produção capitalista. Descarrilar  no melhor sentido de classes, ou seja, a velha toupeira de chapéu vermelho voltar a marchar pelo fim da pré-história da humanidade… Mas isto são outras prosas, agora vamos nos ater ao velho continente e seus apuros atuais.   Estes dias, recebemos um bom artigo do marxista britânico Michael Roberts [ 2 ] . Traz dados censitários e de produtividade europeia através de um relatório da Comissão da União Europeia elaborado por Mario Draghi sobre o futuro da economia   desse continente (ex-presidente do banco central europeu, dentre outras coisas mais). Draghi “apresenta um quadro […] preciso, do declínio relativo das economias da UE no crescimento da produção e da produtividade, nos padrões de vida e no progresso técnico em comparação com os EUA e a Ásia.” Antes dos dados atuais que nos traz o artigo citado acima, vamos relembrar o que o mestre José Martins ( in memoriam [3]) falara em 01 de março de 2023: “ Países de todo o mundo estão reagindo com extrema rapidez à guerra entre a Rússia e OTAN, primeira guerra de alta intensidade da Europa desde 1945; reavaliando tudo, desde a restauração da produção de centenárias indústrias de guerra, estoques de munição, até linhas comerciais de abastecimento contínuo. Esqueça os dividendos da paz de cemitérios dos últimos oitenta anos de globalização ampliada do capital. Venha para o mundo da globalização do capital e da globalização da guerra imperialista. …   Apenas um ano depois do início das hostilidades no território ucraniano, um movimento tão germinal de rearmamento global das maiores potências ainda aparece pouco nas estatísticas oficiais e nas próprias publicações da mídia capitalista.”[4] Voltemos a 2025. “O crescimento econômico da UE tem sido consistentemente mais lento do que o dos EUA nas últimas duas décadas… A diferença entre a UE e os EUA no PIB em 2015 aumentou gradualmente de pouco mais de 15% em 2002 para 30% em 2023. A diferença aumentou menos em uma base per capita, pois os EUA tiveram um crescimento populacional mais rápido, mas ainda é significativo, com 34% atualmente. O principal impulsionador desses desenvolvimentos divergentes foi a produtividade[5]. Cerca de 70% da diferença no PIB per capita em relação aos EUA é explicada pela menor produtividade da UE. Muitas economias da UE dependem da expansão do comércio mundial[6].” “A UE está entrando no primeiro período de sua história em que o crescimento não será apoiado por uma população crescente. Até 2040, a projeção é de que a força de trabalho diminua em cerca de 2 milhões de trabalhadores por ano.” Draghi concluiu que: "Teremos de nos  apoiar mais na produtividade para impulsionar o crescimento. Mas se a UE mantivesse sua taxa média de crescimento da produtividade desde 2015, isso seria suficiente apenas para manter o PIB constante até 2050 - em um momento em que a UE está enfrentando uma série de novas necessidades de investimento que terão de ser financiadas por meio de um crescimento maior."   Após a confirmação do cenário de novo período do ciclo do capital se generalizar por toda Europa – leia-se, estagnação ou estado estacionário (tendo o aumento do preço da principal matéria-prima para todos os processos produtivos e para a reprodução da força de trabalho, a energia [ 7 ] , como pedra de toque), as sirenes e alarmes ressoam em Londres, em Paris e em todas as ruas de Berlim: o perigo da crise cíclica funga no cangote do velho continente… Draghi e sua colega Lagarde têm uma certeza: “é preciso dar um jeito meu amigo![8]”.   Incentivos monetários e fiscais, cortes nos gastos públicos, desregulamentações, mais impostos, crédito barato e muitas orações em Roma e em todo canto desse mundo cristão para o barco não afundar, Draghi, repetindo a cartilha anticíclica, recomenda a queima… do capital-dinheiro em investimentos, das reservas dos Estados e dos idosos e pobres... ops!, dos investimentos em bem estar social. Rapar o tacho, custe o que e a quem custar.  Mas o trabalho nunca é fácil para os gestores estatais. Tinham alguns poréns para troca do estado de bem-estar social pelo estado de guerra, essa nova face dos Estados europeus. Estes são: a animosidade em relação às guerras, principalmente na Europa pós segunda grande guerra, o estado de bem-estar social em si, as barreiras legais para o endividamento dos Estados, como os “freios fiscais” na Alemanha, e a correlação diretamente proporcional das políticas públicas com as eleições.    Para explicar como estão pondo as recomendações de Draghi em prática, pescamos outros três “detalhes” do texto de Mr. Roberts. First - “uma área em que não serão impostos limites de gastos é a defesa.” Second - “nos EUA uma maior concentração de capital aumentou os lucros das poucas megatecnologias no topo.” Third - "é necessário um investimento adicional anual mínimo de 750 a 800 bilhões de euros”.   Resumidamente, aumentar a concentração do capital, bombar o investimento em tecnologia e ampliar os gastos na indústria bélica. Tudo com a finalidade de retomar a produtividade e ganhar a concorrência para retomar a taxa de lucro perdida no ciclo atual do capital.   Europa no ciclo econômico    Observando dados da OCDE, podemos ter uma noção de como está a totalidade de cada economia. Na passagem do primeiro para o segundo trimestre de 2020, a produção da manufatura na maior economia da Europa, a Alemanha, caiu abaixo de índice 100 [9] . Já na maior parte dos trimestres até o quarto trimestre de 2024, a produção se mantém abaixo de 100. Fato similar ocorreu na França. Entretanto na Inglaterra, após queda na crise iniciada em 2020, observamos uma notável recuperação, porém, o crescimento da produção industrial vem desacelerando paulatinamente.  Já na produtividade [ 10 ]  da manufatura observamos que, com a crise iniciada em 2020, tal produtividade desabou. Ocorreu uma robusta recuperação em 2021. E, em 2022, o Reino Unido se juntou a seus irmãos, passando todas as três grandes economias por uma queda na produtividade. Na média, desde a eclosão da crise de 2020, o crescimento da produtividade de Alemanha, França e Reino Unido foi 0.86, -0.52 e 2.76  e a média do crescimento da  produção foi de 94.7, 97.9 e 105.9, respectivamente. Observando esses dados do recente ciclo econômico, vemos a queda da Alemanha e França na produção da manufatura, mantendo-se abaixo de 100, e a desaceleração da produtividade cola um adesivo na testa do Reino Unido: “O próximo é você”. Ou seja, salve-se quem puder.   Tabela 1: produção da manufatura[11] Tabela 2: Taxa anual  de crescimento da Produtividade da Manufatura (%)[12] Está aí o MEGA: Make Europe Great Again.    Como a coisa urge, os europeus já estão no ataque. Entraram na corrida da guerra da Ucrânia, anunciaram pesados investimentos na indústria bélica, €800 BI, trocaram legislações, reduziram gastos públicos e foram à luta contra os seus compatriotas. Assim, puseram em ação uma operação similar à que utilizaram para aprovar os créditos de guerra alemães em 191 4, fizeram  a sociedade imaginar a guerra, sentir e sonhar com um perigo imaginário a fim de apoiar as mudanças necessárias. O tratoraço da época foi tão grande que somente houve um voto contrário aos créditos de  guerra no parlamento alemão, o do gigante Karl Liebknecht. Já disse Hegel, a história se repete,  primeiro como tragédia, segundo como farsa. Desde a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, passando por Macron, presidente da França, o primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer os governantes europeus repetem o mesmo mantra: todos pelos cortes nos gastos sociais e endividamento dos Estados em prol dos gastos com “defesa”. Toda essa demagogia e manipulação pelo não dito, isto é: o investimento na indústria bélica, além de gerar uma fugaz retomada, agita todos os ramos da economia, gera desenvolvimento tecnológico em todos os setores da economia e queima muito, mas muito capital. Abaixo   reproduzimos uma mensagem do governo da França a um cidadão.    “Semana passada recebemos aqui na caixa do correio um tutorial do governo distribuído a todas  residências na França de como proceder em caso de guerra ou ameaça química e nuclear ”...   E para fechar, o amável nigeriano colunista do Financial Times, nos dá a pérola que resume o pensamento do tabloide da burguesia inglesa: “Os cortes de gastos são mais fáceis de vender em nome da defesa do que em nome de uma noção generalizada de eficiência. Ainda assim, esse não é o propósito da defesa, e os políticos devem insistir neste ponto. O objetivo é a sobrevivência. O chamado “capitalismo liberal” precisa sobreviver e isso significa reduzir os padrões de vida para os mais pobres e gastar dinheiro para ir à guerra. Do estado de bem-estar social ao estado de guerra.”[13]   E vão nesta toada, reduzindo gastos sociais, aumentando a capacidade de endividamento e, numa nova rodada, tendem a retomar a retirada de direitos dos trabalhadores.  Cenas como o suicídio do aposentado Dimitris Christoulas em Atenas, infelizmente, podem vir a se repetir.   Esta é a saída da decrépita burguesia europeia. Só  resta a paz: paz  entre nós e guerra aos senhores.   "E sempre temos nós, da favela do Moinho[14], Américas, Europa e Ásia: Vamos, levante e lute, vamos, levante e ajude Vamos, levante e grite, vamos, levante agora Que a vida não parou, a vida não para aqui A luta não acabou e nem acabará Só quando a liberdade raiar, iê, ah Só quando a liberdade raiar” *** Notinha : ao contrário da propaganda, o investimento não aumenta a lucratividade por si só, as inovações tecnológicas aumentam a taxa de lucro quando proporcionam o aumento da exploração de cada trabalhador e da classe, retomando a taxa de lucros perdida no ciclo anterior, ganhando a concorrência ao implementar um novo patamar de exploração do proletariado de cada país e/ou região.  Notas [1]  https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/economia-da-zona-do-euro-volta-a-patinar-em-fevereiro-mostra-pmi/?utm_source=social&utm_medium=facebook&utm_campaign=macroeconomia&fbclid=IwY2xjawI5gddleHRuA2FlbQIxMQABHbYmbzcuKCI28ZZE9wWFnbdAkC1BEKoZyVc253Pdm5VsK8xH96zsCwroqA_aem_SEOY-2j-OePIDGrmQkQdWg [2] https://thenextrecession.wordpress.com/wp-content/uploads/2025/01/mr-12.pdf?fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTAAAR3AvzjC5SXI73Ast3xiDYqwoYsmrSqItUW-5Rd5CcB9-f1iA9iS2mETb8o_aem_E8c-c2DSGl7a7JtcHnotcg [3] Todo nosso esforço em escrever traduzindo o real através da crítica da economia política é inspirado em sua trajetória. Como disse muito bem nosso camarada Aj: “O mundo fica menor sem ele” ( https://passapalavra.info/2025/04/156232/ ). Seguimos. [4]  https://criticadaeconomia.com/2023/03/butter-or-gun-os-capitalistas-preferem-os-canhoes/ [5] A quantidade de trabalho morto (matérias primas e máquinas) que cada trabalhador transforma em novas  mercadorias. [6] A Alemanha é o 3 maior  exportador do mundo.  [7] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2023/06/06/cia-sabia-que-ucrania-tinha-planos-de-explodir-gasoduto-nord-stream-diz-imprensa.htm [8]  https://passapalavra.info/2025/03/156079/ [9] O índice base 100, foi a produção observada no ano de 2015 e está sendo utilizada pelo OCDE como base  de comparação para outros anos.  Para nós, além disso, serve de ponto mais alto do ciclo econômico. [10] O índice de produtividade percentual  por ano e é medido a partir da produtividade de 2015, sendo o valor acrescentado bruto por pessoa empregada. [11]  https://data-explorer.oecd.org/vis?tm=production&pg=0&snb=517&vw=tb&df[ds]=dsDisseminateFinalDMZ&df[id]=DSD_STES%40DF_INDSERV&df[ag]=OECD.SDD.STES&df[vs]=4.2&dq=GBR%2BFRA%2BDEU.A.PRVM.IX.C.Y...&pd=2020%2C2024&to[TIME_PERIOD]=false [12]  https://data-explorer.oecd.org/vis?fs[0]=Topic%2C1%7CEconomy%23ECO%23%7CProductivity%23ECO_PRO%23&pg=0&fc=Topic&bp=true&snb=6&vw=tb&df[ds]=dsDisseminateFinalDMZ&df[id]=DSD_PDB%40DF_PDB_ISIC4_I4&df[ag]=OECD.SDD.TPS&df[vs]=1.0&dq=GBR%2BDEU%2BFRA.A.GVAEMP.C.PA....&pd=2020%2C2023&to[TIME_PERIOD]=false [13]  https://www.ft.com/content/37053b2b-ccda-4ce3-a25d-f1d0f82e7989    [14]  https://www.instagram.com/reel/DIxChzqpnGo/? utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA==   Notas adicionais 1 https://www.infomoney.com.br/mundo/esqueceram-o-que-aconteceu-com-napoleao-diz-putin-apos-pronunciamento-de-macron/ 2 https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/macron-revida-comentarios-sobre-napoleao-e-chama-russia-de-imperialista/ Referências   https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/alemanha-merz-e-democratas-superam-primeiro-obstaculo-para-formar-coalizao/?utm_source=social&utm_medium=facebook&utm_campaign=internacional&fbclid=IwY2xjawI5f7pleHRuA2FlbQIxMQABHaDn11Lpg14FbitmOw7W0CAr1CymSlRF1qyyRByEou8l2M5Nbv5pFMhHxA_aem_NJoWyWCPqdd1byFl5zOHeQ   https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/economia-da-zona-do-euro-volta-a-patinar-em-fevereiro-mostra-pmi/?utm_source=social&utm_medium=facebook&utm_campaign=macroeconomia&fbclid=IwY2xjawI5gddleHRuA2FlbQIxMQABHbYmbzcuKCI28ZZE9wWFnbdAkC1BEKoZyVc253Pdm5VsK8xH96zsCwroqA_aem_SEOY-2j-OePIDGrmQkQdWg   https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/macron-convoca-lideres-europeus-para-reuniao-sobre-ucrania/?utm_source=social&utm_medium=facebook&utm_campaign=internacional&fbclid=IwY2xjawI5gepleHRuA2FlbQIxMQABHRzkagRpRpba_EgbtcYAsBJqrM8al88FLcxD0oLEdICNMgXf5h6vfN8LQw_aem_yq1-MrJ3_sFMD7zq_GupJg   https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/ue-propoe-emprestimo-de-150-bi-de-euros-em-esforco-de-rearmamento-local/?utm_source=social&utm_medium=facebook-feed&utm_campaign=economia-cnn-economia&utm_content=link   https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/uniao-europeia-propoe-emprestimo-conjunto-em-plano-de-defesa-de-e800-bi/?utm_source=social&utm_medium=facebook&utm_campaign=internacional&fbclid=IwY2xjawI5gfRleHRuA2FlbQIxMQABHfhe96Y8USActedvMHaryIg04pAL2IiUJa8zorcTqNfO3sGFw3vtdwO_3A_aem_W-hU_-wxHszs93hOYKL1lA   https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/europa-busca-assumir-controle-das-negociacoes-sobre-a-ucrania-em-cupula/?utm_source=social&utm_medium=facebook&utm_campaign=internacional&fbclid=IwY2xjawI5gflleHRuA2FlbQIxMQABHfUrr7rkxb1A7CZkoYDJ8hxNV9XSm8ObAkzaeKmIPA2Pjthgh7LFYDTfHg_aem_-mq1WH8t7s6HQzoqn3Vmyw   https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/paises-querem-se-juntar-a-coalizao-dos-dispostos-da-europa-diz-starmer/?utm_source=social&utm_medium=facebook&utm_campaign=internacional&fbclid=IwY2xjawI5gf9leHRuA2FlbQIxMQABHYFvbIVZZtZ_bTdFjSMRHasd36BjtkSXBmPAKL0EgcCxrenqizuQkeOfVg_aem_PKTdGbI7wbwrKHcoP6N_Lw   https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/reino-unido-anuncia-novo-acordo-de-us-2-bi-para-financiar-misseis-para-ucrania/?utm_source=social&utm_medium=facebook&utm_campaign=internacional&fbclid=IwY2xjawI5gmlleHRuA2FlbQIxMQABHRoYpYtX2erE9jMHnBV8LmZCvajOROJ1yg042TdqG0P4BJ4npL7hPY48vA_aem_cu4ZxrS6oIk7Id4FX-StzA   https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/europa-deve-ser-rearmada-urgentemente-diz-von-der-leyen/?utm_source=social&utm_medium=facebook&utm_campaign=internacional&fbclid=IwY2xjawI5gm5leHRuA2FlbQIxMQABHSrq6xkKmAWktGV_N8tYnTdOln2F4bjr90V9YD0oWTxH9Rxc5HnFop7rhg_aem_blBQfJpQcHo5M2niJhU_Vw https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/ata-do-bce-indica-preocupacoes-persistentes-com-a-inflacao-da-zona-do-euro/?utm_source=social&utm_medium=facebook&utm_campaign=macroeconomia&fbclid=IwY2xjawI5gnlleHRuA2FlbQIxMQABHUxtU8OhxabJa1aoriN1-4UWWKWTL0PRYNteigFlaab5ebpsY4_iaEhRUA_aem_ozhYnCMdf6S9B0fTFsdGlA   https://thenextrecession.wordpress.com/wp-content/uploads/2025/01/mr-12.pdf?fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTAAAR3AvzjC5SXI73Ast3xiDYqwoYsmrSqItUW-5Rd5CcB9-f1iA9iS2mETb8o_aem_E8c-c2DSGl7a7JtcHnotcg   https://thenextrecession.wordpress.com/2025/03/22/from-welfare-to-warfare-military-keynesianism/?fbclid=IwY2xjawJM3-NleHRuA2FlbQIxMAABHZY4alfT_sgz7sRAp_w1TaDWdc61iKyTrSi51N69oRRZ4ZfJ6vgEOL5Djg_aem_4KhaXcn4pjkGXy_EqLZRmA   https://br.investing.com/news/world-news/russia-se-prepara-para-confronto-com-europa-diz-ursula-von-der-leyen-1493862   https://istoedinheiro.com.br/alemanha-quer-investir-1-trilhao-de-euros-mas-nao-sabe-bem-como/ https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/mundo/parlamento-da-alemanha-aprova-reforma-que-permitir%C3%A1-forte-aumento-de-gastos-com-defesa-1.1590986 https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2025/03/pacote-de-estimulo-alemao-estreia-com-ajuda-de-r-186-bilhoes-para-a-ucrania.shtml

  • Aculturação Substitui a Luta de Classes - Clovis Moura

    Clóvis Moura (1925-2003) O trecho “Aculturação Substitui a Luta de Classes”, do sociólogo Clóvis Moura, integra a obra Sociologia do Negro Brasileiro, publicada em 1988. Nele, o autor faz uma ainda pertinente critica ao uso do conceito de “aculturação” como ferramenta ideológica que busca mascarar as profundas desigualdades sociais presentes no Brasil. Moura argumenta que, embora certos elementos da cultura negra tenham sido incorporados ao imaginário nacional, isso ocorreu de forma subordinada a uma cultura branca, europeia e advinda de um processo de dominação histórico que busca camuflar sua base material de produção em nome de uma suposta “democracia racial”. A partir de uma perspectiva marxista, o autor demonstra que a questão racial no país está intrinsecamente ligada à luta de classes e à estrutura econômica desigual da sociedade brasileira e mundial. E qualquer abordagem de nossas instituições e aspectos culturais, por parte dos movimentos que encampam a luta pela emancipação das pessoas negras, através da emancipação da classe, deve levar tal constatação em consideração; seja no âmbito religioso, político e cultural de maneira geral. Reduzir as tensões raciais que tais instituições geram a meras trocas culturais é uma ingenuidade que, mais que simples relapso de cabeças desatentas, ignora tratar-se de dispositivos de dominação. A simplificação oculta o debate sobre os mecanismos de exploração que historicamente afetam a população negra, por vias do sincretismo religioso e outros aspectos da relação entre a cultura europeia e a cultura brasileira impactada pelo processo de escravidão. Em tempos que se ventila disputar espaços reacionários somente com base no “por que existe na classe trabalhadora” o texto afirma sua validade ainda pujante e se propõem a uma leitura crítica da realidade brasileira, enfatizando a necessidade de compreender a materialização do racismo não só como forma meramente moral ou simbólica do capitalismo no Brasil, mas também no conteúdo econômico e cultural que tal capitalismo consolida em seu processo de exploração da classe trabalhadora em nosso país. Equipe editorial Aculturação Substitui a Luta de Classes Outro conceito abundantemente utilizado pelos nossos antropólogos e sociólogos no estudo das relações interétnicas no Brasil, em especial no relacionamento entre brancos e negros, é o de aculturação. Temos a impressão, mesmo, de que esse conceito foi o mais usado nos últimos anos pelos cientistas sociais brasileiros na abordagem do assunto. O conceito de aculturação é empregado constantemente como aquele que explicaria e definiria de forma abrangente e satisfatória as formas de contato permanente e as transformações de comportamento entre a população negra dominante (antes da Abolição, escrava; depois, marginalizada) e os grupos representativos da cultura dominante do ponto de vista econômico, social e, por extensão, cultural. Ora, esse conceito, cunhado exatamente para explicar o contato entre aquelas culturas que se expandiam como transmissoras da “civilização” (colonizadores) e aqueles povos dominados, ágrafos, considerados portadores de uma cultura primitiva , exótica (colonizados) e cujos padrões, por isso mesmo, eram mais permeáveis a uma influência modificadora por parte da cultura dominadora, tem limitações científicas enormes. Toda a manipulação conceitual objetivava demonstrar como nesse contato cultural os povos dominados sofriam a influência dos dominadores e disso resultaria uma síntese na qual os dominados também transmitiriam parte dos seus padrões aos dominadores, que os incorporaria à sua estrutura cultural básica. Com isso, os povos aculturados seriam beneficiados. Era como se não houvesse contradições sociais estruturais que dificultassem e/ou impedissem que os padrões culturais de etnias ou povo dominado fossem institucionalizados pela sociedade dominadora. Isto é, que religião, indumentária, culinária, organização familiar deixassem de ser vistas como padrões pertencentes a minorias ou grupos dominados e passassem à posição de padrões dominantes. Na verdade, as coisas acontecem de forma diferente. No Brasil, o catolicismo continua sendo a religião dominante, a indumentária continua sendo a ocidental-europeia, a culinária afro-brasileira continua sendo apenas uma cozinha típica de uma minoria étnica e assim por diante. Isto é, no processo de aculturação os mecanismos de dominação econômica, social, política e cultural persistem determinando quem é superior ou inferior. Para os culturalistas, no entanto, o ato de “dar e tomar” os traços e complexos culturais seria um todo harmônico e funcionaria como simples acréscimos quantitativos de cada uma das culturas em contato. Os elementos de dominação estrutural – econômico, social e político – de uma das culturas sobre a outra ficaram diluídos porque esses contatos permanentes trocariam somente ou basicamente o superestrutural. Religião, indumentária, culinária, organização familiar entrariam em intercâmbio, mas esse movimento, essa dinâmica de dar e tomar não se estenderia às formas fundamentais de propriedade, continuando, sempre, os membros da cultura superior como dominadores e os da inferior como socialmente dominados por manterem a posse dos meios de produção nas mãos dos membros da primeira. O culturalismo exclui a historicidade do contato, não retratando, por isso, a situação histórico-estrutural em que cada cultura se encontra nesse processo. Dessa forma, não se pode destacar o conteúdo social do processo e não se consegue visualizar cientificamente quais são aquelas forças que proporcionam a dinâmica social e que, em nossa opinião, não têm nada a ver com os mecanismos do contato entre culturas. Para nós, esse dinamismo não está nesse contato horizontal de traços e complexos de culturas, mas na posição vertical que os membros de cada cultura ocupam na estrutura social, ou seja, no sistema de propriedade. Isso quer dizer que a aculturação nada tem a ver com os mecanismos impulsionadores da dinâmica social nem modifica, no fundamental, a posição de dominados dos membros da cultura subalternizada. Em outras palavras: os negros brasileiros podem continuar se aculturando constantemente influindo na religião, na cozinha, na indumentária, na música, na língua, nas festas populares, mas, no fundamental, esse processo não influirá nas modificações da sua situação na estrutura econômica e social da sociedade brasileira, a não ser em proporções não significativas ou individuais. Com isso queremos dizer que os mecanismos que imprimem dinâmica à estrutura de qualquer sociedade poliétnica, dividida em classes, está em um nível muito mais profundo do que aqueles níveis da aculturação que não têm forças para produzir qualquer mudança social. Essa dinâmica surge de mecanismos internos das estruturas das sociedades poliétnicas, estabelecendo ritmos maiores ou menores de transformação. Enquanto a aculturação realiza-se em um plano passivo, a sociedade na qual essas culturas estão engastadas aciona outras forças dinamizadoras que nascem dos antagonismos surgidos da posição que os membros ou grupos de cada etnia ocupam no processo de produção. Daí não podermos aceitar o conceito de  aculturação  como aquele que iria explicar as mudanças sociais, mas, pelo contrário, achamos que a aculturação em uma sociedade composta de uma cultura dominadora e de outras dominadas estimula a desigualdade social dos membros das dominadas através de mecanismos mediadores que neutralizam a sua revolta. Através desses mecanismos mediadores, os membros das culturas dominadas submetem-se ao controle da cultura dominante. No particular, concordamos com Godfrey Lienhardt, quando afirma que “é necessário distinguir entre cultura como soma dos recursos materiais e morais de qualquer população e os sistemas sociais”. Isso porque os mecanismos que produzem a mudança cultural têm pouca relação com aqueles que produzem a mudança social. O problema de uma sociedade poliétnica dividida em classes não pode ser resolvido apenas através da aculturação. Muitas vezes, pelo contrário, a aculturação pode servir para dificultar, amortecer ou diferenciar o processo de mudança social. Isso porque a estrutura social tem mecanismos diferentes daqueles que atuam no plano cultural. No caso específico do Brasil, queremos dizer que enquanto se realizou intensa e continuamente o processo de aculturação, pouco se modificou no nível econômico, social e político a situação do negro portador das culturas africanas. Em palavras mais simples, esclarecedoras e objetivas: a aculturação não modifica as relações sociais e consequentemente as instituições fundamentais de uma estrutura social. Não modifica as relações de produção. No que diz respeito à sociedade brasileira, no seu relacionamento interétnico, podemos dizer que há um processo constante daquilo que se poderá chamar aculturação. Uma interação que leva a que muitos traços das culturas africanas e afro-brasileira realizem uma trajetória permanente de contato com a cultura dominante, aparecendo isso como uma realidade no cotidiano do brasileiro. No entanto, do ponto de vista histórico-estrutural, a nossa sociedade passou por apenas dois períodos básicos que foram: a. até 1888, uma sociedade escravista; b. de 1889 até hoje, uma sociedade de capitalismo dependente. A circulação de traços das culturas africanas, seu contato com a cultura ocidental-cristã dominante, finalmente, os contatos horizontais no plano cultural, quase nada influíram para mudanças substantivas da sociedade brasileira. O culturalismo, como vemos, não dá elementos de análise e interpretação para saber-se as causas que determinaram essas mudanças. Conforme veremos em outro capítulo deste livro, as populações descendentes das culturas africanas, apesar do grande ritmo e intensidade do processo aculturativo, continuam congeladas nas mais baixas camadas da nossa sociedade. Os níveis de dominação e subordinação quase não se modificaram durante praticamente quinhentos anos. A dinâmica social que produza mudança depende de um conjunto de causas que nada têm a ver com o nível e extensão do processo aculturativo. Em consequência, os costumes funerários, organização familiar, formas de casamento não institucionais, religião, festas religiosas, grupos de lazer, culto, ritual, técnicas agrícolas domésticas, arquitetura rústica, pintura etc., todos esses traços culturais podem ser incorporados à cultura dominante, contanto que, na estrutura social, eles continuem sendo elementos de uma cultura de folk, primitivista ou agregados suplementares à cultura dominante. Jamais esses traços ascenderão ao nível de dominantes. Isso somente acontecerá se houver um processo de mudança social radical que eleve os componentes da cultura afro-brasileira à dominação social e política. Absolutizando-se o processo aculturativo iremos desembocar diretamente no conceito de democracia racial , tão caro a inúmeros sociólogos e políticos brasileiros. Uma branca dançando em uma escola de samba com um negro não seria símbolo dessa democracia tão apregoada, via canais da aculturação? Nada mais lógico dentro dessa óptica de análise da realidade. No entanto, socialmente, esses dois membros da escola de samba estão inseridos em uma escala de valores e de realidade social bem diferentes e em espaços sociais imensamente distantes. Simbolicamente, contudo, eles são projetados como elementos que comprovam como, através da aculturação, chegamos a diluir os níveis de conflitos sociais existentes. A realidade demonstra o contrário. O modo de produção que existe no Brasil é o capitalismo dependente. As relações de produção determinam, em última instância, a estrutura básica da nossa sociedade, alocam no espaço social diversas classes e frações de classes que, por seu turno, são dinamizadas de acordo com o nível da luta de classes. Por questões de formação histórica, os descendentes dos africanos, os negros de um modo geral, em decorrência da sua situação inicial de escravos, ocupam as últimas camadas da nossa sociedade. Em consequência, a sua cultura é também considerada inferior e somente entra no processo de contato como sendo cultura primitiva exótica, assimétrica e perturbadora daquela unidade cultural almejada e que é exatamente a branca, ocidental e cristã. A aculturação, por isso, é aceita (permitida) porque cria espaços culturais neutros para que os negros não se unam “ante a desgraça comum”, como já dizia o Conde dos Arcos. Não é portanto um elemento de dinâmica social, mas um mecanismo usado pelas classes dominantes e os seus seguidores ideológicos para neutralizar a radicalização da população negra, de um lado, e, de outro, mostrar-nos internacionalmente como a maior democracia racial do mundo. No entanto, do ponto de vista de estrutura social, de um lado, e aculturação, do outro, podemos esquematizar essa realidade da seguinte forma: Pelo gráfico acima, podemos ver que a sociedade brasileira na sua trajetória econômico-social teve apenas dois modos de produção. O primeiro foi o escravista e o segundo o capitalista (dependente). Enquanto isso, houve um fluxo permanente do processo aculturativo entre as culturas africanas dominadas e a cultura branca dominante, sem que esse processo tivesse influído na mudança social estrutural, isto é, na passagem de um modo de produção para outro. Prova de que o processo aculturativo não influiu em nenhuma mudança substantiva da sociedade brasileira, ou seja, nas suas relações de produção. Alguns antropólogos no Brasil, ao sentir a insuficiência dos métodos culturalistas e dos seus conceitos fundamentais, como o de aculturação , procuram completá-los com a psicanálise. Artur Ramos foi o mais representativo desses cientistas sociais. Ele acreditava, mesmo, que a junção da psicanálise com o método histórico-cultural seria a chave para a compreensão científica das relações interétnicas no Brasil. Esse conceito – aculturação – surgiu exatamente para racionalizar os contatos entre membros de sociedades ou grupos sociais colonizados e grupos de dominação colonizadores. Isso Ramos não viu. A sua junção com a psicanálise, numa opção pendular, demonstra a resistência desses cientistas sociais a uma opção pelo método dialético diante do problema. Artur Ramos, por isso mesmo, escreve em 1937: O método histórico-cultural em etnologia evidentemente veio trazer novas luzes e múltiplos problemas de gênese e desenvolvimento das culturas materiais e espirituais dos grupos humanos. Mas não resolveu certas questões de psicologia social, ainda pendentes de solução. Para os que me criticam um não exclusivismo na aplicação daquele método aos meus livros sobre as culturas negras no Brasil, lembro que hoje certos tratadistas se batem por uma conciliação de critérios metodológicos. […] Por outro lado, há uma aproximação, cada vez maior, entre os historiadores e os psicólogos. Destaco apenas os interessantíssimos trabalhos de Kurt Lewin, aplicando à psicologia social os resultados metodológicos da Gestalt, e os de Sapir e de multidão de outros autores, aproximando a antropologia cultural da psicanálise. Essa opção pendular entre antropólogos que sentem a insuficiência do método histórico-cultural ou funcionalista e assumem uma postura crítica em relação aos mesmos, substituindo-os pela psicanálise, persiste até hoje. Por exemplo, o cultural scientist (antropólogo) Gerard Kubik, ao criticar as posições culturalistas, propõe a explicação do comportamento dos colonialistas através de categorias da psicanálise. Gerard Kubik esteve em 1965 no continente africano, especialmente em Angola, onde exerceu intensa atividade como pesquisador, particularmente sobre as instituições mukanda do leste daquele país. Em entrevista concedida ao suplemento Vida & Cultura , de Luanda, combate sistematicamente o conceito de aculturação. Afirma: Eu hoje recuso o termo aculturação porque baseia-se em concepções que não são aceitáveis cientificamente para nós que queremos estudar uma cultura na sua própria expressão. A aculturação é quase uma estrada de uma só direção e a sua base ideológica encontra-se em noções de superioridade cultural de um povo e na inferioridade cultural de outro. Uma ideia que eu não posso aceitar por não ter qualquer evidência é a de que na Terra existem culturas superiores e culturas inferiores. Uma cultura nunca é superior ou inferior. Ela explicase estruturalmente, ou seja, pelo seu conteúdo. Não há culturas superiores e inferiores. Esse processo, aculturação, baseia-se numa ideologia que defende a existência de diferenças de qualidade entre culturas e propõe teoricamente que as “culturas inferiores” devam adaptar-se às “culturas superiores”: as culturas “fracas” às “mais fortes” (isso é outra forma de dizer superior/inferior). Assim como, de um ponto de vista colonialista, as culturas africanas eram consideradas inferiores, também nas culturas africanas no Novo Mundo (no Continente Americano) foram supostas de se terem aculturado às culturas europeias. Tal conceito não é aceitável porque não há provas científicas de que exista tal aculturação. Hoje, para estudar esses fenômenos, com o estudo do contato cultural, do intercâmbio cultural que se faz quando populações de culturas diferentes se encontram, aceitamos muito mais a concepção que foi pronunciada pela primeira vez por Fernando Ortiz: a concepção de transculturação.   E prossegue Gerard Kubik: O Brasil é um formidável exemplo de transculturação entre culturas africanas de várias origens (Yoruba, Kimbundu, Umbundu) e a cultura luso-brasileira, além de outros elementos de culturas europeias. O Brasil é um bom exemplo mas também Cuba, Haiti e outros países da América Latina. Mesmo na África, por exemplo, Luanda também tem a sua cultura particular que mostra muitos elementos de transculturação. Depois de criticar o conceito de aculturação, substituindo-o pelo de transculturação 19 , Kubik procura explicar como será possível fazer-se uma interpretação científica do contato entre culturas. Aí ele volta à solução pendular (culturalismo-psicanálise, psicanálise-culturalismo) de forma unilateral. A esse respeito, ele afirma: um europeu, no tempo colonial, chega pela primeira vez à África, encontra aqui uma cultura diferente da sua. Como reagirá? Ele vai identificar o comportamento das pessoas da África como uma coisa que ele não sabe que está na sua psique. Às vezes como uma coisa que ele reprime, mesmo por força dos seus parentes. Isso chama-se projeção. […] O europeu projeta a sua própria personalidade inconsciente que ele determina como inferior para os africanos. Isso quer dizer que o europeu encontra em si mesmo o que ele entende como uma personalidade inferior e identifica-a com os africanos. Isso é o mecanismo psicológico que se passa em muitos europeus e que os leva a reações como: se esse europeu não aceita nada da sua personalidade reprimida, ele cria uma forma de separação para se proteger, para se defender porque os homens da outra cultura, nesse caso os africanos, que esse europeu identifica com a sua personalidade, que ele pensa inferior, são ao mesmo tempo uma tentação para ele porque no seu íntimo ele gostaria de viver assim e de fazer exatamente o que ele pensa que os africanos representam. Como reação da sua personalidade, que ele diz inferior, ele pode estabelecer uma barreira, que pode ser mesmo institucionalizada. Conduz ao que encontramos na África do Sul que é a reação que se poderia chamar reação “apartheid”. Ele faz uma separação, ele vive, mas não quer viver junto dos membros da outra cultura, ele vive de uma forma separada. Isso é uma reação porque viver com os membros da outra cultura, para ele é um perigo. Essa longa citação é para informar o leitor como certos cientistas sociais, ao sentirem a insuficiência dos métodos culturalistas, caem em explicações mais absurdas ainda. Ora, o que Gerard Kubik não analisou foi por que esse mesmo fenômeno não se reflete no sentido inverso, isto é, nos membros da cultura oprimida pelo colonialismo. Também não destaca os métodos repressivos que os colonizadores usam constantemente, numa sistemática de dominação violenta, contra as populações dominadas. Não viu esse antropólogo que se usarmos o método psicanalítico e mais especificamente o conceito de projeção para explicarmos o colonialismo e sua política, o comportamento das suas elites de poder e a violência política contra as populações colonizadas, estamos criando explicações que justificam a sua eternização? Porque se esse inconsciente individual é o responsável pelo comportamento social, político e militar dos grupos colonizadores, só nos resta esperar que haja uma transformação, via terapia de divã, na psique do colonizador para que terminem o colonialismo e o neocolonialismo. Como vemos, a falta de historicidade, o desconhecimento da dialética por parte dos culturalistas e o subjetivismo do método psicanalítico aplicado para explicar processos sociais globais, levam certos cientistas sociais a se perderem em critérios analógicos de explicação e interpretação que não se sustentam cientificamente. Link para o livro completo (Editora Ática)

  • A teoria das abstrações

    Por Vânia Noeli Ferreira de Assunção* 'Rain, Steam and Speed - The Great Western Railway' é uma pintura a óleo sobre tela do mestre inglês J. M. William Turner realizada em 1844 e que está na National Gallery de Londres -  (London National Gallery/Reprodução) Este excerto faz parte de um texto maior e mais completo da Professora Vânia Noeli. Versa sobre um tema de fundamental importância para a teorização marxista, na medida em que trata das fronteiras entre a forma de abordagem de Marx, que se diferencia das chamadas ciências naturais justamente pelo objeto de estudo também ser diferenciado. Além disso, oferece pressupostos críticos aos adversários políticos e intelectuais de Marx, do marxismo e dos movimentos sociais, que, além de buscarem viabilizar formas práticas de disputa hegemônica, também devem pautar tal disputa em uma análise criteriosa dos aspectos sociais do modo de produção burguês e seus desdobramentos. Disponibilizamos o link do texto completo ao final desta publicação. Indicamos também este excelente vídeo do Canal Aurora Humanista , baseado justamente nesses escritos. Como suporte adicional do entendimento desse debate tão caro aos marxistas. Boa leitura! Equipe Editorial Revista Barravento. III – A teoria das abstrações No “Prefácio” à primeira edição de O capital o filósofo alemão diferencia cabalmente a forma de captura da realidade social daquela própria dos estudos da natureza. Para o autor, nas análises das estruturas societárias, “não podem servir nem o microscópio nem reagentes químicos. A faculdade de abstrair deve substituir ambos” (Marx, 1988, p. 18). Em outros termos, no tocante ao estudo do ser social, experimentos semelhantes aos das ciências naturais são ontologicamente impossíveis , dada a especificidade do campo societário, cabendo à capacidade humana de abstração a possibilidade de apreensão do objeto. O Mouro ressalta que o caminho que vai do abstrato ao concreto, mentalmente apresentado, é “o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental” (Marx, 2011, p. 54). Ou seja, afastadas as possibilidades experimentais e controláveis que estão dadas às ciências da natureza, a forma científica (e, portanto, distinta da artística, religiosa etc.) de apropriar-se da especificidade do ser social é reproduzi-la como concreto pensado : “O todo como um todo de pensamentos (...) é um produto da cabeça pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível” (Marx, 2011, p. 55). O concreto pensado reproduz a conexão entre efetividade e cientificidade, entre existir e pensar, em que o primeiro, dado independentemente das atividades do intelecto, pode ser apreendido e reproduzido pelo pensamento – no caso do ser social, a única forma de estatuir a cientificidade.   Expondo seu “método” – ou, se tomado este termo na sua acepção moderna, seu antimétodo (Alves, 2012) – de pesquisa, o filósofo vaticina: a realidade preexiste à pesquisa, o objeto precede o conhecimento e deve, portanto, estar constantemente em consideração na sua representação ideal, ou seja, cientificamente deve-se partir do imediatamente dado. Observe-se, porém, que não se trata de um fenomenologismo nem de um empirismo. Esclarece: “Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo (...). Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso” (Marx, 2011, p. 54). Marx argumenta que, partindo- se do todo imediato, aparente apenas em seus complexos parciais, desemboca-se numa “representação caótica do todo”: a totalidade e cada parte abordada são simples abstrações, se desconsiderados seus elementos constituintes. Para Marx, portanto, o recurso metodológico adequado para o estudo do ser social é a força de abstração – uma competência intelectiva para extrair os momentos mais centrais das relações, coisas e seres estudados no âmbito social e, assim, apropriar-se deles em sua plenitude e complexidade. A força de abstração é o “órgão peculiar da individualidade” no que pertine à apropriação ideal dos objetos sociais, a “capacidade mental de escavar e garimpar as coisas”, por meio da qual o sujeito que “opera cognitivamente” consegue captar o movimento real (Chasin, 2009, p. 122). Ou, ainda:   é uma qualidade individual ou força essencial de apropriação peculiar dos objetos, que se realiza de modo específico de acordo com a sua própria natureza e em consonância com a natureza do objeto apropriado. Enquanto força performática, sua apropriação é ideal, reprodução intelectual de entidades reais, o que se confirma pelo caráter ontológico das abstrações produzidas (Chasin, 2009, p. 123).   Desta forma, a pesquisa não é idêntica ao coletar e agrupar caracteres empiristas e/ou à sua descrição por um silogismo lógico superficial, mas um processo de garimpagem de elementos da coisa estudada pelo intelecto humano, um processo de abstração. Como as categorias ontológicas não querem figurar universais a priori ou conceitos autônomos com relação ao concreto, mas expressar as próprias coisas efetivas e complexas, devem ser regidas pelo complexo fenomênico em tela. A cientificidade se põe, assim, não como um processo prévio, separado da efetividade, mas só pode ser definida com base na processualidade que pretende apreender.   De forma que as abstrações ontológicas (Chasin, 2009) são determinações ou categorias simples que não são geradas por pontos de vista epistemológicos, mas derivam da própria coisa. Marx especifica categorias simples ou relações gerais , ainda que expressem “frequentemente aspectos isolados”, como “formas de ser, determinações de existência” (Marx, 2011, p. 59), que estão dadas na realidade efetiva – e, pelo esforço intelectivo, reproduzidas no entendimento. Elas devem registrar adequadamente traços comuns a todos ou a muitos dos objetos que investiga, evitando a repetição cansativa e pouco producente de informações idênticas e permitindo também o destaque das diferenças essenciais, por comparação. Segundo Chasin, a abstração retém “ aspectos reais , comuns às formas temporais de entificação dos complexos fenomênicos considerados”, comparando entes concretos, num processo de síntese – e só por isso as abstrações resultantes são razoáveis : “A razoabilidade está no registro ou constatação adequado, ‘através da comparação’, do que pertence a todos ou a muitos sob diversos modos de existência. (...) seu mérito é operar subsumida à comparação dos objetos que investiga” (Chasin, 2009, pp. 124-5).   Essas abstrações vazias constituem-se no ponto de partida da elaboração teórica, a qual, “por meio de uma determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado [chegaria] a conceitos abstratos [ Abstrakta ] cada vez mais finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples” (MARX, 2011, p. 54). As abstrações razoáveis destacam e fixam característicos compartilhados, mas nenhum destes traços comuns é substância pura, e sim um todo complexo integrado por múltiplas formas e modos de ser, que nele atuam como “partes moventes e movidas” (Lukács, 2010, p. 289), como “unidade do diverso”. Sendo o universal comum multiplamente articulado, “síntese de múltiplas determinações”, a função primária das abstrações razoáveis é evidenciar a diferença específica, já que ignorá-la é distanciar-se dos objetos reais (com o que se criam abstrações irrazoáveis , generalizadamente vazias). Afinal, já dissera Marx, “uma explicação que não dá a differentia specifica não é uma explicação”, mas dá “apenas a aparência de um conhecimento real, pois esses sujeitos reais permanecem incompreendidos, visto que não são determinações apreendidas em sua essência” (Marx, 2005, p. 34). Em poucas palavras, a perda da “diferença essencial mutila a reprodução ideal do ser-precisamente-assim , indeterminando o objeto pelo cancelamento de sua processualidade formativa e especificação histórica” (Chasin, 2009, p. 125).   No processo de pesquisa, a síntese categorial, que é objetiva, imanente à concretude, deve também passar a existir enquanto “concreto pensado”(6). Em outros termos, a “concretude sintética, o existente, em Marx, nesse contexto, se diz de dois modos: primeiro como este ente ou processo efetivo por-si; depois, como totalidade de pensamentos ” (Alves, 2012, p. 161). As abstrações são, portanto, o ponto de partida do método científico exato, e isto não por um critério epistemológico qualquer, mas por imposição da própria natureza da coisa que se pesquisa. As abstrações delimitadas , depuradas são um meio, não o fim do conhecimento, logo, têm o caráter de uma etapa analítica apenas provisória. Esta é justamente a sua função secundária: são o ponto de partida da elaboração teórica, não seu resultado último. Tal somente se alcança medindo comparativamente aquelas abstrações com a realidade que elas pretendem reproduzir mentalmente em sua totalidade multifacetada. Depuradas as abstrações em sua razoabilidade, trata-se agora da caminhada de volta, dando de novo com o real – não mais como “a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas determinações e relações” (Marx, 2011, p. 54). Conforme sintetizou Ronaldo Vielmi Fortes,  O processo de formação ideal das categorias consiste na apreensão dos traços gerais de elementos concretamente existentes. Abstrai-se aqui o complexo de interações da categoria – tais como suas determinações e peculiaridades históricas, sociais, de circunstância etc. – focalizando a atenção nos atributos mais gerais de tal elemento. (...) Este caminho leva do concreto imediato até a síntese abstrata e ainda “rarefeita” de elementos da totalidade. O caminho de volta implica, por sua vez, a decomposição rigorosa e minuciosa das características da categoria e do complexo parcial no interior da totalidade, em outras palavras a especificação das categorias, de suas interações, no interior do complexo. (Fortes, 2011, p. 125)   Essa “viagem de retorno” é necessária porque a verdade está na efetividade, na concretude, no sensível. Deste modo, a verdade não é determinável por algum critério da faculdade de julgar ou de abstrair, mas sim pela própria existência: o efetivamente existente é o metro pelo qual se mede a correção ou não de um pensamento, parâmetro que não pode ser substituído pela mera aplicação de qualquer construto metodológico prévio e independente com relação à sua própria malha interna e às interdeterminações recíprocas da coisa pesquisada. Tampouco ficam a meio caminho, como a economia política, que toma a abstração como o resultado da pesquisa. Nos termos chasinianos, “o ser é chamado a parametrar o conhecer ”, de forma que, segundo o “rigor ontológico, a consciência ativa procura exercer os atos cognitivos na deliberada subsunção, criticamente modulada, aos complexos efetivos, às coisas reais e ideais da mundaneidade” (Chasin, 2009, p. 58). Aí ocorre uma metamorfose: as abstrações razoáveis, mantendo a condição de pensamentos, convertem-se em momentos concretos de apreensão e reprodução dos graus históricos efetivos. Parte-se do empírico para se alcançar o concreto pensado , passando pela abstração de determinados momentos isolados, donde se retorna à própria concretude, a qual lhes dá sua última configuração. Exposto, em suas determinações mais gerais, nas abstrações razoáveis, o concreto não é apenas fundamento da pesquisa, mas permanece presente em todo o processo, enquanto parâmetro último. Por outras palavras,   A remissão categorial ao concreto realmente existente tem, pois uma dupla vigência teórica. Por um lado, na aferição da razoabilidade dos conceitos, na avaliação da relação destes, como pontos em comum ao diverso. Por outro lado, e principalmente, na etapa de concreção das abstrações, onde estas perdem sua vacuidade e são preenchidas pelo conteúdo determinativo real e particular. (Alves, 2012, p. 387)   Para que as categorias percam seu caráter genérico e simples e ganhem concretude e se saliente a diferença específica deve haver uma intensificação ontológica , a “atualização das virtualidades de sua natureza ontológica enquanto forma de apropriação ideal dos objetos reais” (Chasin, 2009, p. 129). Esta intensificação se opera por meio da aproximação e comparação destas potencialidades aos traços efetivos, para serem medidas por estes e, então, ajustadas, procedendo-se à especificação, à delimitação e à articulação categoriais.   Dentre os momentos necessários para que ocorra a elevação das “abstrações razoáveis” a reprodução de momentos concretos, Chasin destaca o do “deperecimento da abstratividade”, a especificação : “na rota que vai do simples ao complexo, do abstrato ao concreto, as abstrações razoáveis devem perder generalidade por especificação, adquirindo os perfis da particularidade e da singularização, ou seja, a fisionomia de abstrações razoáveis delimitadas ” (CHASIN, 2009, pp. 129-30). A especificação é um momento analítico do qual resulta uma determinação histórica e social que pode restringir o conteúdo e a vigência de determinadas categorias. De acordo com Lukács, Especificação significa aqui em termos ontológicos: examinar que êxitos determinadas leis, sua concreção, sua transformação, seu fazer-se tendência, seu concreto operar em determinadas circunstâncias concretas possuem para determinados complexos concretos. (Lukács apud Fortes, 2011, p. 117)   A especificação das particularidades é necessária porque os aspectos, leis e diretrizes gerais não dão conta da compleição concreta das coisas em sua complexidade. Quando dissolvidas as categorias, estas agora são apreendidas em suas forma mais profunda, concreta, em articulação com as formas de aparição. Assim,   o momento da especificação subentende a representação das formas concretas de realização dos complexos, momento em que se dissipam as representações genérico-abstratas da legalidade tendencial e tem lugar a diversidade histórica de suas efetivações. (...) O tracejamento geral das tendências históricas fornece apenas a dimensão geral das determinantes atuantes na realidade; a demarcação dos desvios históricos reais destas leis tendenciais é a determinação precisa e necessária do procedimento investigativo (Fortes, 2011, p. 117).   Se toda coisa é uma pletora complexa de determinações e inter-relações, nem por isso todas são equivalentes e têm idêntico peso, fazendo-se necessário demonstrar as determinações delimitadoras recíprocas que regem a proposição de cada qual no todo da coisa pesquisada. Para dar conta do rico gradiente de caracteres dos objetos estudados, é preciso trazer a lume sua concatenação, sua específica articulação entre si e com o todo. Em Marx, ao contrário do que ocorria na economia política e na especulação, a articulação categorial não advém de uma atribuição formalista ou lógica, mas do retratamento da conexão íntima do próprio objeto em estudo. O próprio complexo estudado que diz da situação e da importância dos nexos entre as categorias, não selecionadas por critérios exteriores, de forma a alcançar sua integração e suas relações mútuas. Em outros termos, as abstrações razoáveis e delimitadas são articuladas segundo a lógica imanente que legisla o feixe de determinações examinado. Trata-se, conforme Chasin, do “estágio mais desenvolvido do próprio método, que integra e proporciona a plena realização de seus momentos anteriores” (Chasin, 2009, p. 131).   Como apontou Lukács, os tipos de interações entre as infinitas determinações contidas em toda objetividade exprime esta infinitude de possibilidades (LUKÁCS, 2010). Nesta direção, remetendo-se novamente à diferença entre método de pesquisa e modo de exposição, Chasin destaca que a ordem em que aparecem e as posições ocupadas pelas categorias nos trabalhos marxianos não é aquela pela qual o pesquisador delas tomou conhecimento, mas reproduz teoricamente a coisa estudada. Assim, em Marx, a sequência em que aparecem e o lugar que ocupam as categorias remetem sempre a   suas incorporações pertinentes ao concreto de pensamentos, ou seja, da integração de cada uma delas, pela via das múltiplas e sucessivas intensificações, delimitações e articulações das abstrações, ao processo de reprodução mental do objeto real, de modo a recompor, ao nível da concreção realizada, na ordem própria ao concreto pensado, por conseguinte de seu discurso, o ordenamento intrínseco ao objeto em reprodução, de tal forma que a sequencialidade das categorias, no concreto pensado, seja a reprodução de sua simultaneidade real no objeto (Chasin, 2009, pp. 244-5).   A investigação não termina, entretanto, ao perspectivar as interações categoriais, com o que se correria o risco do unicausalismo ou da indeterminação. As determinações são momentos essenciais constitutivos do próprio ser societário e, portanto, a “relação entre categorias não é da mesma ordem, relevância e grau, uma vez que a participação de determinadas categorias no interior do complexo pode dar-se sob a forma da primazia ou da anterioridade necessária em relação a outros elementos” (FORTES, 2011, pp. 131-2). Em outros termos, a análise das inter-relações categoriais deve considerar o fato de que não estão contempladas ali apenas relações paritárias, mas também a sobreordenação e a subordinação das categorias, as quais, destituídas de homogeneidade, formam um conjunto de determinações diferentes e divergentes. Assim, a pesquisa deve compreender o grau e a relevância das categorias em interconexão, identificando claramente aquela que desempenha o papel de momento preponderante . Saliente-se que a predominância não é simples interação, mas diz respeito à posição central que tem a categoria na articulação dos nexos, já que se trata do “elo tônico”, daquela abstração razoável que sobredetermina as demais, tornando-se a categoria estruturante do todo concreto – e, portanto, também da totalidade ideal. É nesse momento que se manifesta a delimitação ou diferenciação por intensificação ontológica, na medida em que esta categoria que tem acentuação ordenadora específica fornece a construtura de todo o processo de síntese.   Ainda no interior do processo de articulação, há também que demonstrar como se inter-relacionam em sua concretude as determinações reflexivas: as categorias que estão conectadas umbilicalmente em pares ou conjuntos, de tal forma que a compreensão de cada uma é forçosa à apreensão de todas, cuidando-se para não perder a especificidade de cada qual. Na arguta síntese de Antônio Alves, para fechar, a teoria das abstrações   É teoria da coisa sob o mando da própria coisa, a qual é analisada, dissecada, separada, decomposta em seus aspectos múltiplos, diversos e, até mesmo, opostos. Tipo de procedimento teórico o qual a toma como aquela mesma “se dá” na realidade social, para, através do conjunto de atos da analítica que, miudamente, decompõe o existente em seus elementos. Os quais passam à forma de abstrações, para numa posterior etapa de reconstru- ção, apresentá-la como um todo de determinações que a delimitam como ente, ou processualidade, específica, na forma de um todo pensado. Conjunto de operações que distinguem as partes constitutivas de uma coisa umas das outras, e, na sequência, identifica o nível de determinações preciso em que cada uma delas se encontra na particularidade da existência atual (Alves, 2012, pp. 92-3).   Da analítica das coisas , possibilitada pela inexistência preliminar de método e consubstanciada na teoria das abstrações , conclui-se que o método marxiano é a exposição crítica do próprio real. Não há nele uma prescrição, do que resulta que os métodos não têm valor de conhecimento baseado em si mesmos, muito menos podem servir de modelo ou guia de pesquisa. Antes, ao contrário, cumprida sua função, deixam de ser referência, não têm serventia como suposta metodologia universal que oriente outras jornadas, mas apenas registram um roteiro de percurso : “De modo que o conhecimento é possível, a ciência pode alcançar seus objetivos, mas não há um caminho preconfigurado, uma chave de ouro ou uma determinada metodologia de acesso ao verdadeiro” (Chasin, 2009, p. 231). ***   (6) “A ascensão do abstrato ao concreto não é uma passagem de um plano (sensível) para outro plano (racional); é um movimento no pensamento e do pensamento. Para que o pensamento possa progredir do abstrato ao concreto, tem de mover-se no seu próprio elemento, isto é, no plano abstrato, que é a negação da imediaticidade, da evidência e da concreticidade sensível. (...) O progresso da abstratividade à concreticidade é, por conseguinte, em geral, o movimento da parte para o todo e do todo para a parte; do fenômeno para a essência e da essência para o fenômeno; da totalidade para a contradição e da contradição para a totalidade; do objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto.” (Kosík, 1995, pp. 36-7) *Professora da Universidade Federal Fluminense – Rio das Ostras. E-mail: vanianoeli@uol.com.br. Link do texto completo.

  • Entrevista com Gustavo Machado: Formação social brasileira, teoria do valor e atualidade do marxismo

    Barravento Entrevista #1 – Gustavo Machado: Formação Social Brasileira, Teoria do Valor e a atualidade do marxismo Apresentação Rodrigo Vieira Ferreira (Revista Barravento) É com enorme satisfação que a Revista Barravento publica agora em formato de texto a transcrição da entrevista recentemente realizada com Gustavo Machado, coordenador do Instituto Latino-Americano de Estudos Econômicos ( Ilaese ) e responsável pela condução do canal Orientação Marxista . A entrevista em tela, já disponível no canal do YouTube da Revista Barravento , teve como tema “Formação social brasileira, teoria do valor e atualidade do marxismo”.  Antes de partirmos para a leitura, alguns breves apontamentos acerca dos procedimentos metodológicos tomados para a consecução do texto. Em primeiro lugar, a transcrição da fala do entrevistado e dos entrevistadores foi realizada com uso de software próprio para essa tarefa e, uma vez feita, foi revisada visando aferir quaisquer eventuais equívocos de compreensão por parte do software utilizado.  Além do mais, a revisão teve como intuito tornar a leitura do texto o mais inteligível e fluida quanto possível. Por conta do material original se tratar de uma entrevista em áudio de uma hora e quarenta e dois minutos, naturalmente haveria de ocorrer erros gramaticais e digressões durante a fala dos participantes. No que diz respeito aos eventuais erros gramaticais cometidos, a revisão realizada corrigiu-os de acordo com as normas da língua portuguesa, não mantendo, portanto, os erros de concordância que invariavelmente ocorrem na linguagem falada. Já no que diz respeito às digressões, também conhecidas como os “parênteses” feitos no meio de uma fala, a revisão fez uso da vírgula inglesa ( - ) para indicar as pausas e as mudanças de tema feitas pelo entrevistado em meio a suas linhas de raciocínio. Destacamos ainda que, visando manter a inteligibilidade e a fluidez da leitura do texto, em algumas passagens foram inseridos ainda apontamentos, pronomes e até mesmo frases inteiras por parte do revisor, as quais foram explicitamente indicadas entre colchetes ( [ ] ). Em suma, o texto que se segue é uma transcrição fiel do conteúdo das falas dos entrevistadores e do entrevistado de tal forma que a revisão feita buscou tão somente lapidar suas falas a fim de torná-las o mais compreensível possível e, por conseguinte, aptas a serem publicadas em formato de texto. Assim sendo, nenhuma elaboração apresentada durante a entrevista foi suprimida e/ou essencialmente alterada.   Em adição, destacamos que a publicação dessa entrevista também no formato de texto teve objetivo duplo. Em primeiro lugar, potencializar a divulgação da entrevista e principalmente do conteúdo trabalhado, e, em segundo lugar, construir um material passível de ser citado em eventuais elaborações escritas, sejam elas de caráter acadêmico, como livros e artigos ou de caráter político, voltadas ao debate e à agitação, como publicações em blogs e posts nas redes sociais.  Por fim, a equipe editorial da Revista Barravento agradece uma vez mais ao Gustavo por ter aceitado essa proposta e solicita aos leitores que, se possível, se inscrevam no canal do YouTube da Revista Barravento  e sigam a página oficial da Barravento no Instagram , onde serão publicados, em breve, cortes desta mesma entrevista a fim de ampliar a divulgação deste material e fomentar o debate nas redes. Agradecemos o apoio e desejamos uma boa leitura a todos! *** Entrevista com Gustavo Machado: Formação social brasileira, teoria do valor e atualidade do marxismo Transcrição e revisão do texto: Rodrigo Vieira Entrevistadores: Rodrigo Vieira e Marcos Castilho Suporte técnico: Rafael Jácome Divulgação: Igor Dias Roteiro: Equipe editorial Introdução - Marcos/Revista Barravento:  Bom dia, boa tarde, boa noite para todo mundo presente, para todo mundo que vai assistir esse vídeo. Nós somos da Revista Barravento, uma revista dedicada à divulgação do marxismo. Estamos aqui eu, Marcos, o Rodrigo e o Jácome, como integrantes e editores da Revista, para entrevistar o Gustavo Machado, quem comanda o canal Orientação Marxista . Nossa entrevista terá como foco “a formação social brasileira, teoria do valor e a atualidade do marxismo”. E também essa entrevista, posteriormente, vai ser divulgada na Revista por meio de texto e ficará disponibilizado no link na descrição.   1° pergunta - Rodrigo/Revista Barravento: Gustavo, para a gente começar essa conversa, do começo, a gente queria retomar algumas questões com você daquilo que vem sendo tratado muitas vezes nos vídeos do canal e também nos debates recentes que você participou, que é a questão da gênese do capitalismo e a sua generalização. Dando destaque, por exemplo, para a situação da Índia e da China que você comentou em debates recentes, a gente viu então que o capitalismo nesses países se desenvolveu a partir da truculência, inclusive de empresas privadas e das principais potências da época, naquele momento. Então isso chama atenção para nós para uma questão que é bastante clara: que esses processos, por exemplo, na Índia e na China, se deram de forma diferente daquilo que Marx e Engels chamaram dos países de “via clássica”, como é o caso da Inglaterra, para citar um exemplo. Então, isso deixa claro que o capitalismo, para se desenvolver, não tem uma “receita de bolo”, uma “cartilha” a ser seguida. Então, nesse sentido, a gente gostaria de começar perguntando para você como você caracterizaria as particularidades desse “caminho” brasileiro de objetivação do capitalismo e os seus reflexos sobre as relações sociais e políticas aqui no Brasil. E também gostaríamos de saber se teria havido, portanto, uma “expropriação originária” em solo brasileiro, que colocasse em desenvolvimento o capitalismo no nosso país.   Resposta - Gustavo Machado/Canal Orientação Marxista:  Obrigado, Rodrigo. Primeiro, queria agradecer o convite. Marcos, Rodrigo, o pessoal da Revista Barravento, para mim é um prazer enorme, estou inteiramente à disposição e fico muito feliz com o tema também, que está ligado ao desenvolvimento, à formação social brasileira, às suas especificidades. O marxismo se esbarra nesses dois problemas. Primeiro, a gente tem que entender rigorosamente o funcionamento do capital, a sua origem, suas características, mas a gente ainda fica no nível muito grande de abstração se a gente não ver como isso vai se materializar nas realidades específicas, as características particulares do seu desenvolvimento, os desafios que colocam e por aí vai. Então, fico bastante feliz com o tema.   A questão me parece muito importante: “como se dá esse processo de expropriação que funda o capitalismo no Brasil?”. Eu sempre acentuo o seguinte: o que tem em comum em todos os países capitalistas desse ponto de vista é, de uma forma ou de outra, um processo de expropriação tem que ter acontecido para o capitalismo se desenvolver, ele tem que acontecer de alguma forma porque o capitalismo necessita, para se desenvolver, que a grande massa da população perca os seus vínculos diretos, seja com a terra, seja com os instrumentos de trabalho, seja com instituições que garantam a sua sobrevivência.   Então, a liberdade abstrata do capitalismo está sentada nesse traço, na verdade, que a liberdade aí é: “você não tem nada de garantido, você está livre, leve e solto, solto no mundo, e não vai ter nenhuma outra chance para sobreviver que não seja vender sua força de trabalho”. Como que uma situação como essa se estabeleceu? Essa questão irremediavelmente se coloca. E em países onde esse processo de apropriação não foi desenvolvido, o capitalismo enfrenta barreiras gigantescas para se desenvolver. Você mencionou os debates e vídeos que eu produzo, materiais também que escrevo, trato um pouco disso no meu livro - Antes de entrar no Brasil, acho que um fato, um caso muito ilustrativo é a China, por exemplo, porque diferente da Índia, onde a Inglaterra colonizou por meio de uma empresa privada, na China, ela [Inglaterra] só ganhou uma guerra, as Guerras do Ópio - foram duas grandes guerras, na verdade - e forjou um tratado de livre comércio. E a China, na época, já era o país com maior população do mundo, por várias razões que não vem ao caso. Eles [Inglaterra] falaram: “poxa, aqui nós estamos feitos”. Você imagina: uma população dez vezes maior que a da Inglaterra, nós [Inglaterra] vamos escoar, aumentar a nossa produção de maneira colossal [voltada] à população chinesa. E foi um fracasso tremendo porque a população chinesa não tinha por que comprar, por exemplo, os produtos da indústria tecelã inglesa, porque ela [população chinesa] produzia, regra geral, as suas vestes no interior da própria propriedade camponesa, à qual a enorme maioria da população chinesa estava ligada. Então, aquela veste para ela não custava nada em termos de valor no sentido capitalista. Custava esforço, trabalho, uma divisão ali no interior da família, mas normalmente as sociedades eram de uma forma mais familiar na China, elas tinham teares, elas produziam isso tudo lá dentro. Então, se você não destrói isso, você não consegue criar um mercado interno. Por um lado, você não tem força de trabalho para ser empregada de forma capitalista, e por outro, você não tem um mercado interno para comprar as mercadorias capitalistas. Então, os ingleses vendiam ali só para a margem mesmo, uma franja do setor chinês.   O Brasil é um caso bastante específico porque aqui no Brasil, diferente de outros países da América Latina, houve - entre aspas - um “extermínio” da população que existia aqui no território brasileiro pela colonização portuguesa já nos seus primórdios. Para o “extermínio”, não quero dizer que não sobrou ninguém, não é exatamente isso, mas, por exemplo, diferente do que se deu na colonização espanhola, onde civilizações seculares, até milenares - como a dos Incas, ou mesmo no México, Astecas, vestígios da sociedade Maia - continuaram existindo. Os espanhóis simplesmente se apropriaram delas, assumiram o controle e colocaram uma forma de trabalho compulsório como dominante. Mas então elas se desenvolvem a partir de uma estrutura de sociedade pré-existente à colonização inglesa e que foi adaptada aos interesses da colonização espanhola. No Brasil, esse problema não houve. A população originária daqui foi exterminada, foi afastada mesmo pros grotões, onde a colonização não tinha chegado, e teve uma colonização que se impôs por força externa por meio dos portugueses.    A dizimação que esse processo produz é um debate historiográfico longínquo, porque depende de estimativas muito amplas, mas mesmo as mais pessimistas são dezenas de milhões de mortos. Um processo de colonização e o Brasil é um dos seus epicentros. Agora, diferente dos Estados Unidos, o Brasil foi colonizado por Portugal, que teve processos muito específicos dentro dessa colonização. Portugal é um país pioneiro no desenvolvimento capitalista, de um ponto de vista comercial, de um ponto de vista mercadológico e tudo mais, mas ele não revoluciona a sua produção internamente, como acontece na Inglaterra para produzir mercadorias em larga escala. Então, a Inglaterra, já tempos depois da colonização, logo tornou-se o epicentro, acabou subordinando Portugal no interior desse processo. Isso cria uma contradição de que o Brasil já surge dentro desse processo capitalista em desenvolvimento, mas ele surge completamente atrelado a esse mercado internacional que se desenvolvia a partir da Europa. Então, é impossível compreender o Brasil nesse período sem ser um braço da Europa em desenvolvimento. Isso não é nenhum eurocentrismo, foi assim que foi, foi assim que aconteceu, não estou elogiando esse processo. O mercado interno brasileiro, por séculos, era significativo de um ponto de vista puramente material, mas ele não se dá sobre formas tipicamente capitalistas, ou seja, no sentido de uma produção em massa por empresas capitalistas que produzem mercadoria para atender esse mercado interno. Por exemplo, a indústria inglesa, desde a abertura dos portos, [desde] as invasões napoleônicas, estabeleceu um vínculo muito forte entre a produção industrial inglesa e Portugal, mas essa produção industrial era para um grupo muito restrito da população, não era para atender o mercado interno brasileiro no seu conjunto.   Então, isso vai gerar uma série de características que é importante a gente ter em vista, que é o desenvolvimento capitalista do Brasil intensivo, no sentido de alterar as suas relações internas e submeter todas elas à produção de mercadorias, valorização do capital. [No Brasil] esse não é um processo do século XVI e do século XVII, é muito mais um processo do século XX já propriamente dito. Inicia no século XIX com a independência, mas vai se estender mesmo no século XX e é um processo de expropriação que se reproduz dentro dele.   Então, eu só vou dar alguns exemplos aqui para vocês: quando começam a vir as primeiras indústrias para o Brasil, [na] primeira metade do século XX, meados do século XX, você tem uma expropriação massiva da população do campo, [que] agora já é uma população de origem europeia, [ainda que] aqui também com indígenas, mas para a construção, por exemplo, de grandes plantações voltadas à exportação já adequada ao processo do século XX, produção de eucalipto para atender a siderurgia que estava surgindo. O Norte de Minas, por exemplo, hoje é todo [voltado a] produção de eucalipto. Essas terras eram terras que os moradores não tinham a propriedade legal, eles são expulsos dessas terras e [a produção de eucalipto] se torna aí de uma quantidade absurda, mais de um estado de plantação de eucalipto para produzir carvão para a siderurgia que se deu ali no Vale do Aço, só para pegar um exemplo. Então, esse é um processo que se reproduziu no Brasil com muita força e que vai fazer, no século XX, com que o Brasil, que era um país predominantemente rural, até a primeira metade do século, se torne um país propriamente urbano por distintas formas de expropriação dessa população rural.   Então, é um processo que se desenvolve no século XX e que tem muito a ver com o Brasil mais moderno, [com] essa gênese mais moderna do Brasil. Então, eu destacaria, assim, grosso modo, esses dois pontos - tem vários que poderiam ser destacados. O primeiro deles é esse: o Brasil já começa desenvolvendo o capitalismo a partir do extermínio da população local, do afastamento e extermínio da população local. Isso coloca diferenças brutais do Brasil com relação a vários lugares da América Latina, cujas estruturas sociais [não foram tão fortemente alteradas]. Vou dar um exemplo aqui para vocês. Se você for, por exemplo, na Bolívia - o Peru menos, porque o grau de deterioração lá é muito grande -, os vínculos comunais, de solidariedade, os vínculos pessoais no interior da Bolívia são muito maiores [que os] do Brasil, porque ainda descendem organicamente de uma comunidade que não foi dissolvida lá no interior.   No Brasil, não. Você já conseguiu criar essa ideia do indivíduo mais abstrato, do indivíduo mais solto, com vínculo indireto com a sociedade, desde o começo, ao destruir as sociedades que estavam aqui constituídas e instalar um processo de colonização que estava orientado para exportação em grandes propriedades, mas com uma parte gigante da população que se apossou de pequenas propriedades em várias regiões do país, populações que estavam à margem desse centro ligado ao mercado europeu de colonização do país. Esse setor vai ser fortemente expropriado ao longo do século XX, expulso do campo, gerando aí a população urbana, assalariada, que vai conformar o mercado interno e o desenvolvimento industrial com as características específicas do Brasil ao longo do século XX.   Eu acho que essas são as duas principais características, mas é óbvio que, veja, essa história não foi escrita. Infelizmente, os historiadores marxistas se centraram mais ao longo do século XX em coisas como “etapas [do] desenvolvimento do Brasil”, “Brasil feudal”, baseado num esquema mecânico de transição. E, por exemplo, uma história de fôlego que analisasse com vasta documentação, nas distintas localidades, esse processo de apropriação ao longo de séculos de existência brasileira, não conheço nenhuma obra com essa abordagem, ainda que as obras existentes possam mencionar aspectos relativos a um momento, relativos a um local. Então, isso está longe de ser um tema que se esgotou, pelo contrário, ele mal se abriu. O que eu menciono aqui são só os aspectos mais óbvios. Mas isso abre campo, sem dúvida, para todo um campo de pesquisa, da historiografia, que seria extremamente importante para a gente entender esse processo brasileiro, que tem uma outra peculiaridade, que é a sua violência extrema.   O processo de apropriação é sempre violento. O Brasil com quase quatro séculos de escravidão, [é] marcado por uma divisão, por um preconceito, por uma opressão de caráter ético, racial muito forte, um processo de urbanização completamente caótico e que sempre foi extremamente centralizador a partir da colônia. Então, foi um processo bastante violento, arbitrário e que certamente essa história, com essa abordagem, com esse enfoque, ainda está por ser escrita.    2° pergunta - Marcos/Revista Barravento:  Ok, Gustavo. Você falando, me surge uma questão. Como você falou, não dá para pensar o Brasil, pelo menos o surgimento da nação Brasil, sem pensar na intervenção dos países europeus, em especial Portugal. Mas eu gostaria de ressaltar uma questão específica, que é a respeito, por exemplo, da abolição da escravidão. Tem-se como condição da generalização do capitalismo o sujeito livre e igual, ao menos do ponto de vista formal, jurídico formal. E como é que se deu [esse processo no Brasil], qual foi a influência das potências internacionais para que houvesse essa generalização aqui no Brasil, e como que isso, de alguma forma ou não, constituiu o Estado brasileiro enquanto tal. E como que isso se diferencia, por exemplo, da “via clássica”, do Estado nos países ditos desenvolvidos, europeus.   Resposta - Gustavo Machado/Canal Orientação Marxista:  Certo. Eu penso, Marcos, que esse é um processo cheio de peculiaridades e que explicações unilaterais tendem talvez até a esclarecer algum aspecto, mas a fracassar no seu conjunto. Eu não vejo o processo de abolição do trabalho escravo no Brasil como se fosse assim - isso aparece em algumas abordagens intituladas de marxismo - “os capitalistas viram que eles precisavam de mão de obra livre para poder empregar trabalhador salariado e por isso a escravidão saiu para criar o trabalho livre”. Mas os capitalistas viram quais capitalistas? Onde? Em que lugar? Onde é que está a ata da “Reunião Nacional dos Capitalistas Brasileiros”, onde eles falaram assim: “precisamos acabar com a escravidão para poder desenvolver o trabalho livre, para que surja o mercado interno”?   Desconheço essa documentação e tudo mais. Então, eu acho que é um conjunto de aspectos que se confluem. Primeiro, já no final do XVIII e já em pleno século XIX, o Brasil, que teve um período forte do ciclo da cana, um período forte do ouro, exigia grandes contingentes de trabalhadores no mesmo local. Não é só pelo fato de se atender ao mercado externo, mas dependia de contingentes gigantescos. Quando o Brasil começa a entrar no ciclo do café, o café depende de solos específicos, região de São Paulo, Minas Gerais, etc. É uma produção que é muito menos extensiva, você não consegue fazer milhares e milhares de hectares contíguos, hábitos a plantação de café, então são propriedades menores. Para propriedades não tão grandes, o custo da escravidão é alto, porque a gente não pode esquecer que a escravidão você compra o escravo, tem um mercado de compra e venda dos escravos. Então, por um lado, o tipo de atividade agroexportadora, a mudança [para a hegemonia da produção cafeeira] se tornava menos propícia à escravidão.   Você teve também processos de rebelião de escravos muito significativos no Brasil durante esse período. Os processos revolucionários no Brasil, via de regra, foram todos derrotados, mas eles foram muito expressivos e numerosos, ao contrário da nossa história oficial - a gente tende a valorizar a história só a partir de quem venceu, mas esquecem da quantidade de processos que existiram, como a Revolução Pernambucana, lá em 1817, Confederação do Equador, vários movimentos separatistas, Cabanagem, Revolução Praieira, Balaiada, Sabinada, Revolução Farroupilha, e por aí vai.   Também, já havia um processo, tanto com um fluxo grande de ideias liberais que atingiam alguns setores médios aqui no Brasil, que não eram setores dominantes, mas que atingiam esses setores. Existiam rebeliões organizadas, os quilombos de escravos muito significativos e, ao mesmo tempo, também uma inadequação cada vez maior daquele tipo de trabalho escravo para as mudanças que se tinham no capitalismo agroexportador, já independente de Portugal, que se desenvolveu no Brasil ao longo do século XIX. Então, esse é um aspecto que eu ressaltaria a respeito dessa questão da mudança do trabalho escravo.   E, óbvio, que numa situação dessas especificidades do Brasil, o capitalismo brasileiro só se desenvolveu e pôde se desenvolver com o papel gigantesco do Estado. Porque até a sua independência, você não tinha propriamente uma burguesia brasileira. Você tinha intermediários, mas ligados como intermediários da metrópole, como intermediários da coroa. Então, toda a atividade econômica do Brasil, e eu sei que tem um debate historiográfico a respeito disso aí, a questão não é tanto [sobre o fato de] que a maior parte do que era produzido no Brasil era para exportação. Não é esse cálculo quantitativo que importa. O que importa é que toda a estrutura social do Brasil, as funções, a distribuição, a hierarquia social, estava orientada para a exportação. Naquilo que Caio Prado chamava do “sentido da colonização” e tudo mais. Então, até a independência, você não tem nem sequer uma burguesia brasileira arcaica. A burguesia brasileira estava lá na Europa. A burguesia brasileira estava em Portugal. E aqui você tinha intermediários. Evidentemente, você tinha setores burgueses dentro do país, setores capitalistas dentro do país, mas que não se constituíam enquanto uma burguesia nacional. Essa que é a questão. Com interesses próprios, com interesses independentes. Isso coloca uma diferença novamente brutal entre o Brasil e a América Latina, por exemplo. O processo de independência da América Latina - e a colonização espanhola - realmente fomentou uma autonomia local muito maior. Eu chamo a atenção aqui que nas colônias espanholas você teve a fundação de centros autônomos, de universidades, muito cedo. Na colonização brasileira, quem queria ter uma formação superior, ia para Coimbra, em Portugal, e muito tardiamente se começou as primeiras faculdades [no Brasil] de direito, de engenharia, daquelas coisas que eram mais básicas e imediatas.   A colonização espanhola fomentou a criação de uma elite local, de uma classe dominante local, que era chamada de elite crioula, e que entrou em contradição com a metrópole. Então, a independência na América Latina se dá por uma via revolucionária, por uma via onde essas elites locais conseguem trazer atrás de si a massa de produtores, sujeitos a trabalho compulsório, escravo, camponês, que mobiliza o país de maneira significativa, cria uma identidade nacional muito menos abstrata e difusa do que o que a gente tem aqui no Brasil, enquanto no Brasil foi desde o início um processo de conciliação a tal ponto de que o primeiro imperador do Brasil - os primeiros [imperadores] do Brasil Império - é simplesmente um herdeiro da coroa de Portugal, que assume as rédeas e o comando interno do Brasil ao longo de quase um século.   Depois, o processo da Primeira República Brasileira é um processo onde até hoje nós temos a família real, [a qual] é bancada pelo governo brasileiro, algo que permanece até os dias de hoje. Então, se deu por uma via da conciliação muito forte. Então, o Brasil não desenvolveu uma classe dominante com o mínimo de independência que fosse, que em algum momento da história tivesse que partir para a ofensiva e trazer o resto da nação atrás de si. Tanto que as figuras históricas brasileiras [não evocam apoio popular]. Hoje com a ultradireita, é até engraçado, eles tentam reativar vários nomes, mas é extremamente artificial, porque ninguém sente emoção em torno daquelas figuras, elas não te remetem a capítulos da história, onde você pode, por que não, ter certo orgulho de certas ações que a classe dominante do seu país teve ao longo da história.   Várias classes dominantes de vários países ao longo da história têm capítulos da sua história que são motivo de orgulho, sem dúvida. No Brasil, isso é bastante mais raro. Quando tem, se restringe a medidas administrativas que podem ser mais ou menos assertivas. Isso tem um impacto tão grande, já próximo da nossa história, que eu costumo sempre chamar a atenção para as diferenças do peronismo na Argentina, agora em profunda crise - mas não é esse o caso [que estamos discutindo] - e do varguismo no Brasil. O peronismo deixou raízes na história da Argentina, tanto que até hoje você tem grandes correntes políticas do país consideradas peronistas. O varguismo não deixou nenhuma marca na história do Brasil, virou meramente um referencial. Vargas tinha um comportamento em relação à população muito mais paternalista, muito mais passivo, enquanto o Peron não, ele convocava inclusive os setores industriais, trabalhadores assalariados, para a ofensiva contra outros setores aristocráticos argentinos, contra quem ele combatia. E não sem razão deixou formas organizativas, deixou uma vinculação muito mais orgânica, muito mais sólida e muito mais duradoura do ponto de vista histórico.   Então, esse é um traço, sem dúvida, congênito do Brasil, que não é comum a todos os países periféricos. Ele tem o seu desenvolvimento muito centrado no Estado, uma quase completa [ausência] de autonomia da sua classe dominante ao longo de toda a sua história, ainda que tenha tido inflexões. Se a gente pegar [de] 1930, depois com a tentativa da Revolução Constitucionalista de 1932 em São Paulo, até a ditadura militar, você tinha um conflito maior entre uma burguesia mais moderna que se desenvolvia no Brasil e outra agroexportadora. Então, teve conflitos, mas que termina na conciliação de ambos ali no início da ditadura militar, onde todos entram naquilo que o FHC chamou de “desenvolvimento capitalista associado”, ódio à globalização e tudo.   Esse desenvolvimento histórico deixa traços muito particulares e isso tem uma característica que está na burguesia brasileira até hoje, muito forte, que ela nunca conseguiu construir alternativas políticas minimamente consistentes ao longo dessa história. Tanto que as legendas políticas no Brasil são motivo de maior risada, de um modo geral, porque elas são meramente um aspecto formal ao qual as pessoas se vinculam nas [disputas] eleitorais, que, igual você troca de roupa, você troca de legenda. E não houve alternativas políticas organizadas da classe dominante brasileira, de modo que ela tem sempre que recorrer àquelas alternativas que são mais adequadas para o momento e abrem mão daquela que eles apoiavam até um ano atrás, seis meses atrás.   É assim, por exemplo, que no início dos anos [19]90 eles jogaram todas as suas fichas em Ulisses Guimarães, que deu completamente errado. Depois eles vão abraçar Fernando Henrique Cardoso, que constituía uma espécie de esquerda intelectual acadêmica em ascensão ali naquele momento. Depois eles vão abraçar o PT já dentro de um processo de crise do governo de Fernando Henrique Cardoso no Brasil e assim sucessivamente. Não tem vínculo político-organizativo historicamente constituído, porque ela [burguesia nacional] nunca foi um agente ativo dos processos, ela sempre foi um agente associado, um agente subordinado a setores do capital internacional sem ter interesses independentes e sem ter projeto de país.   3° pergunta - Rodrigo/Revista Barravento: Beleza, Gustavo. Ainda mantendo então essa temática da particularidade brasileira, você até chegou a comentar na sua primeira fala sobre as teorizações sobre esse “caminho brasileiro”, essa questão de tratar mecanicamente o Brasil como um país feudal e tudo mais. Então, nessa direção, a gente gostaria de saber de você a sua posição com relação a dois movimentos teóricos em especial, que se deram principalmente na segunda década do século passado. A primeira delas é o uso da noção de “via prussiana” por vários autores marxistas, a “via prussiana” elaborada por Lênin, como uma chave de compreensão desse “caminho brasileiro” de objetivação do capitalismo. E outra teorização que é a do filósofo brasileiro José Chasin, que elaborou a teoria da “via colonial”, como, mais uma vez, essa chave de compreensão da realidade brasileira. Então, a gente queria saber se você tem algum acordo total ou parcial com essas duas elaborações. Se sim ou não, por quê?   Resposta - Gustavo Machado/Canal Orientação Marxista:  Então, vamos lá. Por partes. “Via prussiana” foi muito utilizada aqui no Brasil por causa do Nelson Coutinho, por exemplo, e outros autores, que é de fato algo que o Lênin cunha a partir das análises que Marx faz nos anos [18]40 do processo de desenvolvimento capitalista na Alemanha. Um capitalismo que entrou de maneira retardatária dentro desse processo de divisão internacional do trabalho, sem ter feito, à época, uma revolução tipicamente burguesa e trazendo várias especificidades. Esse processo de desenvolvimento do capitalismo, eu acho que sempre há paralelos possíveis com outros locais, mas, ao mesmo tempo, são processos fortemente particulares.   Eu acho que esse é um ponto em que o Chasin acerta em mostrar que, certamente, essa analogia com a “via prussiana”, em vários aspectos, ela cabe no Brasil. Tem alguns textos do Marx que a gente lê da época, vou pegar aqui, por exemplo, a Introdução à Crítica à Filosofia do Direito de Hegel . A Introdução , publicada ali nos anais franco-alemães de [18]44, é um texto onde [em] um dos momentos em que ele aborda esse tema, é impossível não ver certos paralelos, vários paralelos com o Brasil. Então, para dar um exemplo, quando o Carlos Nelson Coutinho pega esse aspecto, acentua esse aspecto para o desenvolvimento brasileiro, não é uma coisa sem pé nem cabeça, longe disso. Agora, evidentemente que o Brasil vai ter traços do seu desenvolvimento também, que, em hipótese alguma, podem ser analogados com a Alemanha.   Basta a gente ver o que aconteceu com a Alemanha e pensar se esse processo teria sido tão fácil no Brasil, que depois com o bismarquismo vai conseguir fazer um processo de modernização da Alemanha, desenvolvimento industrial. No caso alemão, o desenvolvimento retardatário foi até mais importante, porque ela [Alemanha], ao entrar depois nessa disputa, conseguiu industrializar o país com uma indústria muito mais moderna, com uma infraestrutura muito mais moderna, e já aparecer no pré-Primeira Guerra Mundial como um país que era, de um ponto de vista técnico, mais desenvolvido que a Inglaterra. Com outras variáveis que não vêm ao caso, acontece uma coisa muito parecida com a China ao longo das últimas duas, três décadas. Ainda que certamente a história do Brasil não teria que ser exatamente o que foi, a gente poderia ter seguido outros percursos, mas eu não vejo o Brasil como tendo no século XX as possibilidades que a Alemanha teve lá na segunda metade do XIX, tão pouco as que a China teve nos últimos 40, 50 anos.   Então, quando o Chasin cunha o termo “via colonial” e ressalta o que se diferencia da “via prussiana” clássica, eu tenho acordo e acompanho quase que integralmente. Eu ressalto aqui, pelo que me lembre - eu li esse texto do Chasin, por exemplo, o escrito dele sobre o Plínio Salgado, já tem muito tempo, eu não vou me recordar aqui dos detalhes - mas eu me lembro dele tratar não só da ausência de uma revolução tipicamente burguesa no Brasil, que é consensual, mas da completa impossibilidade de que ela venha a existir. De uma completa impossibilidade, porque a conformação específica da classe dominante, da burguesia brasileira, nunca colocou [essa possibilidade], ela nasce de maneira associada desde o começo. A associação de forma subordinada é a razão de ser - entre aspas - do seu “sucesso”, desde o começo.   Ela nunca é colocada em uma situação de entrar em conflito com outros setores, sejam internos, sejam setores burgueses internos, para procurar algum tipo de independência, seja no revolucionamento das relações sociais internas, seja de uma mudança do Brasil na divisão internacional do trabalho lá fora. Então, isso é um traço que me parece que está absolutamente válido.   Ele [José Chasin] também trabalha muito aquela ideia de que o “novo” no Brasil se desenvolve associado ao velho. Há uma associação entre o que é atrasado e o que é - entre aspas - “avançado”, do ponto de vista técnico. Não é uma oposição de um em relação ao outro. Uma ideia que foi muito tratada pelo Chico de Oliveira também [em] um escrito clássico dele no final dos anos [19]50 [em] que ele usa a figura do ornitorrinco para dizer que no Brasil atrás do desenvolvimento, aquela agricultura obsoleta, voltada para exportação, com monocultura, com um desenvolvimento técnico precário, mesmo em relação ao que existia na Europa na época, ela [agricultura] não foi uma oposição ao desenvolvimento industrial brasileiro, mas ela está na base da especificidade do desenvolvimento industrial brasileiro, inclusive da conformação do que vai ser uma nova burguesia brasileira que vai se desenvolver no século XX.  A burguesia atual brasileira não é do século XIX, tem algumas raízes ali, mas que vai se desenvolver principalmente em São Paulo. Florestan vai tratar muito disso. Então é algo que o Chasin trata, que eu também acompanho bastante.   O que eu me diferencio um pouco dos desenvolvimentos que ele [Chasin] faz nessa abordagem dele: em primeiro lugar, eu sei que ele cunha a expressão “hipertardio” em referência a Mandel, que escreveu o livro do “capitalismo tardio”, que pelo menos nesse aspecto ele acompanhava, mas eu realmente não acho - e até remeto ao exemplo da Alemanha e da China que eu dei recentemente - que entrar depois na divisão internacional do trabalho significa necessariamente que você vai ter um desenvolvimento periférico e dominado. E muitos autores dos anos [19]50, [19]60, se unilateralizam muito nessa questão agroexportadora do Brasil, o Brasil como um país agroexportador e que, portanto, jamais desenvolveria o mercado interno de forma significativa. Eu vejo alguns aspectos disso no Chasin, pelo que eu me lembro também, mas eu posso estar sendo injusto, porque tem muito tempo que eu li. Mas autores sérios acentuaram muito isso. Por exemplo, o Mauro Marini que foi muito esquecido aqui no Brasil também. Não tanto a questão agroexportadora, mas ele focava muito no aspecto fundamentalmente exportador do Brasil. Eu acho que [Marini] subestimou um pouco o que é a característica do imperialismo dos nossos dias, onde a tecnologia, o avanço, é exportada pelos outros países para dentro do seu, fazendo com que a gente tenha aqui, pelo menos em muitos setores, patamares de produtividade muito próximos aos que você tem no capitalismo lá fora, [fazendo com que] você consiga ter um barateamento dos bens de consumo num patamar muito próximo do que você tem lá fora, e você consiga conformar o mercado interno. É fato que o Brasil construiu um mercado interno intensivo, significativo, que não se restringe a um setor médio da sociedade, a partir dos anos [19]60 dentro dessa visão de “capitalismo associado”. Claro que um mercado interno em que a propriedade do capital não é brasileira, onde os excedentes migram para fora do Brasil, onde os trabalhos de mais elevada qualificação, que estão ligados ao desenvolvimento científico, são feitos lá fora porque aqui a gente só tem matrizes que replicam isso.   Então, eu não acho que o Brasil dos anos [19]60 para cá, e mesmo hoje, pode em sentido algum ser chamado de um país agroexportador. Hoje, a exportação de commodities no Brasil cumpre um papel de máxima importância dentro da divisão internacional do trabalho, mas um papel específico. Está ligado ao fato de que é através do setor agroexportador que o Brasil consegue dólares para poder tapar o déficit  da indústria, da balança comercial porque [para a] indústria a gente importa máquinas e equipamentos. Os capitais são exportados, a gente depende de comprar lá de fora, em dólar, o tempo inteiro, a alta tecnologia que nós usamos. A gente usa a alta tecnologia comprada lá de fora. Nós [a] consumimos, inclusive, dentro das unidades produtivas [brasileiras].   O setor de máquinas e equipamentos no Brasil, ele existe mais ou menos para o agronegócio, depois [para outros setores] ele é completamente inexistente. É o maior déficit  na balança comercial brasileira. Então, como é que você vai comprar tecnologia que não é sua sem ter um excedente em termos de moeda internacional em algum setor? Aí você precisa dos setores chamados commodities , setor mineração, petróleo, agricultura, etc. Mas hoje, o grosso da economia brasileira, onde a maior parte do valor é produzido no Brasil, onde a maior parte dos trabalhadores estão empregados, inclusive aqueles com maior remuneração, não é em setores exportadores, é em setores que atendem o mercado interno. E dos anos [19]60 em diante, o Brasil conformou - dessa forma atrófica, limitada e tudo, mas conformou - o mercado externo [na verdade Gustavo se referia aqui a conformação do mercado interno e não externo] .   Os produtos duráveis hoje, por exemplo, estão na cesta de consumo do grosso da população brasileira. Hoje, 99% da população do Brasil, mesmo que só com dados no celular, tem acesso à internet. Você tem televisão na quase totalidade das residências e metade delas é LCD conectada à internet. Hoje você tem 38 milhões de brasileiros que têm carros, que se tornou um meio de locomoção básica em grande parte dos centros urbanos. E esses 38 milhões, se a gente pegar em termos de família, vai dar 40% da população do Brasil. Então, esse mercado interno foi conformado. E eu acho que o Brasil não é um país agroexportador, é um país que depende da exportação de commodities  para poder equalizar a sua balança comercial e conseguir, inclusive, manter o seu mercado interno.   Essa conta fica cada vez mais difícil de fechar - [há] vários problemas crônicos aí -, mas é uma estruturação onde se tem aqui uma produtividade do trabalho, que às vezes é baixa em alguns pequenos setores da economia nacional, mas no geral ela segue a média do mercado internacional, porque são as empresas estrangeiras aqui instaladas que comandam. [Há] O subsequente barateamento dos produtos, aumento das necessidades e das capacidades, até das necessidades de consumo de uma massa da classe trabalhadora.   Mas o segundo ponto que o Chasin trata um pouco também, eu me lembro bem dele tratar desse ponto, que eu teria algumas diferenças é que - e aí eu acho que, [como] eu disse, essa questão da diferença do Brasil com a Prússia, eu concordo com ele, com a “via prussiana”, o caráter muito mais cronicamente retardatário do desenvolvimento do capitalismo brasileiro, da massa de contradições que existe, mas daí - ele faz um transpassamento disso para as formas organizativas do que ele vai chamar da esquerda brasileira ao longo do século XX até hoje.   E eu não creio que esse seja o principal fator. Basta dizer aqui que, na minha opinião, e eu acho que Chasin concordaria com isso, por alguns textos dele que eu já li, a esquerda mais fértil, por assim dizer, marxista, que teve no século XX, foi na Rússia, nas primeiras décadas, e a Rússia era um país que padecia de inúmeros atrasos. A classe trabalhadora russa era uma classe analfabeta, na sua maior parte, de baixíssima qualificação, na sua maior parte, e isso não impediu [sua radicalização]. Eu vejo que toda essa característica que é marcante da esquerda brasileira se deve muito mais por uma esquerda construída por influência externa, principalmente da União Soviética, onde o PC foi a organização hegemônica até os anos [19]60, onde toda a leitura do Brasil era enquadrada num esquema contra o qual o Chasin lutou a vida inteira, inclusive, um esquema mecânico dos modos de produção, onde o Brasil era considerado um “Brasil feudal”, que tinha que desenvolver uma burguesia brasileira, e era uma esquerda amplamente hegemônica. Ela [esquerda] realmente caiu na ditadura militar por várias razões. Nos anos [19]60, ela perdeu bastante a sua influência, mas as marcas ficaram. E são as marcas de uma esquerda que aposta num desenvolvimento nacional autônomo e que vê a possibilidade revolucionária no Brasil como algo que estaria colocado para uma outra época histórica e que não poderia ser forjada, construída de forma consciente, a partir das necessidades que estão dadas a partir de agora.    Eu concordo com as críticas que ele [Chasin] faz a essa esquerda dominante. Eu não me lembro agora as terminologias específicas que ele utilizava ao tratar desse tema, mas eu me lembro que ele fala algo de que seria a incompletude da burguesia brasileira [que] ia gerar uma incompletude também da classe trabalhadora, entende? Eu realmente não faria essa transposição. Inclusive, eu relembro aqui que o movimento dos anos [19]70, dos anos [19]80, [que] foi um dos movimentos de organização operária, organizada, partindo de organismos de base. É dos mais intensos e fortes que a gente teve no mundo dos anos [19]70 para cá. Eu acho que depois disso nós não tivemos igual, inclusive, no mundo. Aí tem a ver com outros fatores, fragmentação da classe, vários aspectos que se deram depois, mudanças do capitalismo a nível mundial. Eu acho que ele foi um movimento que, se existissem, organizações com uma elaboração teórica mais sólida, com a compreensão do Brasil vivo, sem a transposição de esquemas de fora, que conseguisse disputar e ganhar os trabalhadores em meio a esse processo, você poderia claramente ter aberto aí uma possibilidade revolucionária no Brasil das mais poderosas que a gente teria tido no mundo ao longo das últimas décadas.   Então, eu não faço essa associação [entre o atraso brasileiro e a formação de uma esquerda estéril] e eu vejo muito mais como sendo um subproduto do hegemonismo do PC, a força do PCB no Brasil até o final dos anos [19]60, e essas bases extremamente débeis com que essa, por assim dizer, “esquerda brasileira”, “esquerda marxista”, foi construída [do que] como sendo uma transposição do atraso do capitalismo brasileiro. Eu vou até mais longe. Eu vejo no mundo hoje, por exemplo - as coisas podem mudar, tá? Pode ser que daqui a 5, 10 anos eu já tenha outra opinião, porque as coisas hoje estão acontecendo muito rápido - eu não vejo uma possibilidade revolucionária imediata nos países que estão no topo do capitalismo hoje. Não vejo. Para mim, hoje é inconcebível imaginar uma revolução que comece com os Estados Unidos.   Não que a classe trabalhadora dos Estados Unidos não lute. Tem lutado, se organizado, mas a transferência de capital por meio dessa forma imperialista que o capitalismo atingiu do mundo inteiro para os Estados Unidos, faz com que circule tanta riqueza no país que a classe trabalhadora de lá tem algo a perder. Até onde ela está disposta a ir é menos do que em outros países. É claro que isso pode mudar e está mudando ao longo dos últimos anos, mas eu vejo a possibilidade revolucionária - dela começar - muito mais em países da periferia do capitalismo do que do topo do capitalismo nesse período histórico que a gente está vivendo.   4° pergunta - Marcos/Revista Barravento:  Ok, Gustavo. Retornando um pouquinho, especialmente para a questão das commodities , a gente vê, nas últimas décadas - e isso você trata no seu canal, ao menos pincela isso em alguns momentos - que nas últimas décadas a gente passa por um processo de desindustrialização muito forte. Mas, diante desse cenário, a gente vê também respostas. Especialmente os setores da esquerda que são mais desenvolvimentistas, entendem que existiria uma solução para isso [desindustrialização] dentro do Estado. E eu queria saber de você justamente sobre a relação entre esse processo de desindustrialização e [o] Estado. Se você entende que existe alguma possibilidade, seja de barrar ou seja de retardar esse processo através do Estado, como alguns setores da esquerda defendem.   Resposta - Gustavo Machado/Canal Orientação Marxista:  Certo. Essa é uma questão que é capciosa, porque eu também não quero recair aqui em nenhum lateralismo. Eu realmente não acho que o Brasil poderia ter sido, no século XX o que foi a Alemanha no XIX, como eu disse antes, e tampouco que o Brasil poderia, pela via do Estado, com a “política acertada”, sei lá, ter feito o que aconteceu com a China, dando um exemplo.   Vou pegar aqui o caso chinês. A China teve condições, porque houve um processo de desenvolvimento capitalista ali. Não necessariamente um processo de libertação da classe trabalhadora chinesa, em nenhum sentido, mas de desenvolvimento capitalista indiscutivelmente houve. Agora, isso partiu, em primeiro lugar, de um mercado consumidor gigantesco, potencialmente o maior do mundo. Eu digo “potencialmente” porque o mercado consumidor não depende só da população, depende dos recursos que essa população tem para comprar. E até hoje a China ainda não ultrapassou os Estados Unidos, mas ela pode ultrapassar e muito porque é um país de 1,4 bilhões de habitantes. É um país que, com a revolução abortada e a restauração do capitalismo que se deu na China em [19]78, você já tinha uma estrutura produtiva inteiramente concentrada nos braços do Estado, que pôde traçar uma proposta de desenvolvimento a partir daí.   E traçou uma proposta de desenvolvimento muito bem sucedida, diga-se de passagem, direcionando os créditos por meio da estrutura bancária, controlando os setores de insumos produtivos para prover insumos em larga escala e barato, tanto para a indústria de capital chinês quanto para a indústria de capital estrangeiro. E tem um elemento externo aí, que não está na conta de decisão política nenhuma do Estado chinês, que é o fato de que, por várias razões, o capital internacional migrou para dentro da China, enquanto fábrica, manufatura, centro de manufaturas do mundo, permitindo que uma fatia desse capital que tenha migrado, indiretamente tenha que parar no colo chinês, porque alimenta todo um setor da classe trabalhadora com salário, que paga imposto - vai ter formas diretas e indiretas de taxação do Estado.   Então, se migrou um núcleo volumoso do capital mundial para dentro da China. No Brasil, nenhuma dessas condições ocorreu, nem está em vias de ocorrer. Agora, posto isso, eu não vejo solução para o problema estrutural brasileiro à parte de um processo de revolução social profunda, que ataque diretamente as relações de propriedade brasileira, que possa, a partir daí, direcionar o Brasil para outro lugar. Isso não quer dizer que a coisa teria que ter sido mais ou menos como foi. Houve oportunidades para o Brasil ao longo da sua história. Então é importante que se admita isso: que a gente não seria uma potência capitalista imperialista dominante, mas pelo menos poderia ter uma posição melhor, inclusive com reflexos sociais e de outra natureza.   Então, eu ressalto aqui, por exemplo, que o Brasil, quando surgiu lá atrás a tecnologia - quando chegou aqui a tecnologia - de automóveis, o Brasil tinha um setor automobilístico, que foi marginalizado, foi entregue e [efetivou-se a] abertura completa ao setor automobilístico estrangeiro. Setor eletroeletrônico no Brasil: o Brasil tinha diversas marcas do setor eletroeletrônico. Eram cópias no início, mas produziam computadores quando começou a era da computação. Qual era o problema? Eram políticas de incentivo muito toscas, baseadas em subsídio, deixado na mão de um capital privado que ficou ali enquanto aquilo dava algum “lucrozinho” e migrou seu capital para outro lugar quando viu que não tinha condições de competir. Ou seja, poderia haver um projeto estruturado no Brasil que permitisse que o Brasil despontasse pelo menos em alguns ramos de produção específicos.   Eu vou dar exemplo aqui   do que aconteceu na Coreia do Sul no setor eletroeletrônico e de semicondutores hoje. De Taiwan, que se desenvolve à parte da China desde [19]28 no setor de chips, semicondutores e microprocessadores. Então, não é verdade que algo dessa natureza não poderia, sob nenhuma hipótese, ter sido construído no Brasil no passado, na minha opinião.   Agora, é evidente que mesmo iniciativas como essa que podem vir a ocorrer agora e no futuro, elas se tornam cada vez mais limitadas, por várias razões. Primeiro: hoje a gente tem um Estado que está totalmente atrelado ao capital e que tem uma função básica hoje, que é fazer política monetária. E fazer política monetária porque os recursos estatais estão integralmente direcionados para isso, por meio do mecanismo da dívida, por meio do mecanismo de reservas internacionais para evitar desvalorização cambial.   O Estado hoje tem no Brasil e no mundo espaços de intervenção muito menores do que teve no passado. Até o Estado chinês eu chamo atenção para o seguinte: a China, no projeto de desenvolvimento dela, não se baseia em recursos estatais que são direcionados para área nenhuma, se baseia no controle direto de empresas que acumulam capital, mas são de propriedade estatal. Percebe? O capitalismo hoje, o capital privado, depende do Estado numa magnitude tão grande por meio do mecanismo da dívida, que absorve para o Estado o capital que o setor privado não consegue investir, por meio do mecanismo em que o Estado tem que comprar dólar para fazer reservas internacionais, para poder fazer política monetária, e por meio do corte sistemático dos serviços públicos, para que depois você consiga garantir e devolver esse capital lá na frente, porque se você não consegue devolver o capital lá na frente, você compromete a economia do país e o capital privado inteiro. O Estado hoje está colocado diante de limites infinitamente maiores do que o que existia nos anos [19]60 e nos anos [19]70.   Então, eu não quero ter uma visão aqui determinista. Poderia ter ocorrido um curso diferente no Brasil. Seria uma maravilha? Sem chance. Mas poderia ter sido melhor do que é agora? Eu acho que poderia ter sido melhor do que é agora. Houve oportunidades perdidas em vários momentos. Agora, essas oportunidades, elas ficam cada vez menores. O espaço existente para a intervenção estatal, que tem hoje as suas receitas atreladas, enraizadas com o capital privado em todas as vias imagináveis, [apresenta limites evidentes].   E veja, é uma dependência mútua. O capital privado precisa do Estado. Não é que o político do Estado quer ajudar o capital privado, pura e simplesmente. [O Estado] precisa absorver capital por meio do mecanismo da dívida, precisa para consumir. Hoje, os gastos dos municípios no Brasil, por exemplo, é 25%, 30%, 35%, 40% com o capital privado como consumo, consumo estatal. [Há também] políticas de renda básica. Estou longe de ser contra, tá? Só acho que não é solução para nada. Políticas de renda básica hoje, num país com um capitalismo atrófico, que gera um exército industrial de reserva tão grande, se torna para o capital algo absolutamente necessário para você não ter um caos social. No Brasil hoje nós temos 40 milhões de famílias que vivem dos auxílios, das assistências do governo, por exemplo.   Então, eu não vou dizer para você que não dá para fazer nada. Mas os espaços são cada vez menores. E eu não vejo qualquer mudança drástica do país que não seja pela via das mudanças das relações de propriedade, pela quebra das patentes, dos segredos comerciais, que pode possibilitar, aí sim, escolher vias estratégicas em que os recursos do país possam ser depositados, onde você possa distribuir o trabalho entre as pessoas que estão disponíveis para trabalhar, onde você possa investir em ciência e tecnologia e ter onde empregar essa ciência e tecnologia. Hoje, as universidades brasileiras têm um problema que ninguém fala, que é o fato de que boa parte das tecnologias que são pesquisadas na universidade, não são de fato usadas em lugar nenhum, porque o Brasil não é produtor de tecnologias, salvo algumas raras exceções. Porque os setores que produzem tecnologia estão lá fora, nós só consumimos.   Claro que vai ter uma coisinha ali, você tem a Embraer, você tem uma coisa ou outra na Petrobras, você vai ter alguns âmbitos [da economia] que vão [produzir tecnologia]. Mas hoje, basicamente, a universidade brasileira forma técnicos para operar tecnologias já produzidas, e não para produzir nada.   Então, eu não vejo qualquer mudança estrutural de fôlego no país, à parte de uma mudança nas relações de propriedade, à parte da construção de um processo revolucionário no Brasil que possa colocar as principais estruturas produtivas sob controle de conselhos de trabalhadores organizados e que possa fazer de forma planejada a economia do Brasil, mas mesmo isso é muito limitado. O processo de desindustrialização no Brasil é tão grande que isso vai depender fortemente da expansão desse processo em escala internacional.   Veja que correr atrás de tecnologia que nós não possuímos [é tarefa árdua]. Eu vou dar um exemplo para você da China - está todo mundo aí falando, “a China, blá, blá, blá” [alusão aos debates recentes sobre China nas redes sociais], não vou entrar em detalhes sobre isso, mas, por exemplo - a China está no topo em tecnologias novas que surgiram nos últimos 15, 20 anos, 25, 30 no máximo, e que ela conseguiu entrar com força já na largada. É o caso de painéis solares, é o caso do carro elétrico, que embora exista há mais de um século, só recentemente, tem sido produzido em escala industrial. Ela entrou na largada, ela não entrou depois. É o caso das torres de internet 5G, da Huawei, que está hoje no topo da tecnologia. Todos são setores que a China entrou na largada.   O problema da disputa tecnológica é que os países dominantes não só têm controle do capital, mas eles têm controle do conhecimento técnico. Então, você vai correr atrás de um conhecimento que você não tem, você vai levar 5, 6, 7 anos para adquirir. E quando você adquirir, aqueles que você adquiriu de formas legais ou ilegais já estão lá na frente de novo. Então, veja o que acontece na China em semicondutores, por exemplo. Há 10 anos atrás, a China estava duas gerações atrás na produção de semicondutores e teve investimento estatal massivo, inclusive empresas adquiridas, para poder correr atrás disso e não depender de semicondutores feitos hoje em Coreia, Taiwan, Estados Unidos. Cinco anos atrás, ela continuava duas gerações atrás. E hoje ela está duas gerações atrás. Ela avança na sua tecnologia de semicondutores, só que os outros avançam um, dois degraus para frente junto com ela. Ela não consegue alcançar, ela continua ainda absolutamente obsoleta nessa área.   Então, eu não tenho dúvidas de que para ter uma mudança realmente estrutural, profunda no Brasil, você precisa de um processo revolucionário no país que organize a sua produção e distribuição sobre novas bases. Agora, o que não quer dizer que nós não perdemos oportunidades, que continuamos a perder e que a situação poderia estar “ melhorzinha ” do que ela está agora. Também não quero cair nesse determinismo de dizer que desde lá do século XIX, salvo uma revolução socialista, o Brasil estava predeterminado a estar exatamente onde ele está agora. Não, não é verdade. Também isso não é verdade.   5° pergunta - Rodrigo/Revista Barravento:  Gustavo, no seu último comentário, você ressaltou uma série de mecanismos que o Estado possui para, vamos dizer assim, tentar salvaguardar essa dinâmica econômica capitalista. E, logicamente, igual você bem pontuou, isso não se dá da mesma forma em todos os lugares .  Então, é claro que o Estado possui uma autonomia relativa, inclusive, sobre a dinâmica econômica, para agir. Mas a gente gostaria de perguntar para você sobre um dos mecanismos em específico de atuação do Estado que você até chegou a mencionar na última resposta, que é a questão da dívida pública, que eu acho que é uma deflagração clara dessa articulação entre Estado e a dinâmica econômica. E aí a gente faz essa pergunta justamente porque, para nós, parece que tem tido alguma relevância, para além da realidade brasileira, também para o seu estudo, enfim, para os temas que estão sendo trabalhados no canal [Orientação Marxista]. É um tema que está sendo recorrentemente tratado por lá. Então a gente gostaria de entender como  funciona esse mecanismo, quais são os seus limites e problemas para um futuro próximo, ou talvez até mesmo iminente da dinâmica econômica.   Resposta - Gustavo Machado/Canal Orientação Marxista:  Certo, Rodrigo. Agradeço demais pela pergunta. Esse tema é absurdamente fundamental. Curiosamente, a maioria das pessoas não sabe que Marx tratou dele de maneira significativa - o livro III do Capital, na parte do crédito e capital fictício, que é a segunda parte da sessão 5. É verdade que é uma sessão bastante caótica, porque ele fez apenas uma redação dessa parte. É a única parte do Capital que só tem uma redação no sentido de que todas as outras partes do Capital, você vai ter esboços anteriores, nos manuscritos de [18]61 e [18]63, nos Grundrisse , esboços iniciais dessas partes, que ele [Marx] reescreve no manuscrito que Engels usou de base para editar o livro. Essa é a única parte que foi [utilizado] o primeiro [esboço] que ele escreveu, foi essa do crédito do Capital Fictício.   Inclusive, eu tenho feito uma ampla discussão [sobre a dívida pública] - pelo menos tenho iniciado, pretendo fazer uma ampla discussão. [Há, por exemplo] alguns materiais que a gente publicou no Ilaese. Inclusive, o último anuário já traz alguma coisa sobre isso, mas o Ilaese vai publicar um novo anuário estatístico esse ano com análise bem mais detalhada sobre a questão da dívida pública. E eu também, assim que eu conseguir terminar de dar o “ok” na revisão, porque a quantidade de tarefas está me matando, estou indo publicar o meu livro, que eu venho anunciando há muito tempo, Marx e a Filosofia, o Capital como Crítica à Metafísica , que tem toda a quarta sessão dele dedicada ao livro III e com uma ênfase bem grande nessa parte do capital a juros, que é a sessão 5, e todas as formas derivadas do capital a juros, onde os títulos da dívida pública, que é uma forma de capital fictício, se encontram. E essas discussões que eu tenho feito, elas, na verdade, estão lá no Marx. Dá um pouco de trabalho pelo aspecto caótico do manuscrito. Nessa parte a estruturação que o Engels tentou fazer lá, acabou não ajudando muito. Em outras partes, o Engels foi muito bem na edição, na minha opinião, mas essa parte, ela é difícil, de fato, de organizar.   E eu tenho batido nessa tecla que a dívida pública. E a “dívida” que Marx está analisando lá [no livro III] não é a dívida externa, não, é a dívida interna, é a compra e venda de títulos da dívida, ela tem uma função primordial para o capitalismo e é um dos traços que entrelaça o Estado, não só como condição para a reprodução do capital, mas dentro do movimento do capital. Eu vou até explicar isso um pouco mais, porque isso é muito importante. Por exemplo, o Estado tem que criar um padrão monetário. Veja que você pode usar mil moedas dentro de um país, não é essa a questão, mas essas moedas todas você vai valorar em relação a uma moeda que é um padrão estabelecido em um país inteiro para criar uma referência de comparação entre as mercadorias.   Se você chegar aqui e falar assim “quanto custa esse celular?”. Se falar assim “é 0,03 Bitcoin” e se uma outra coisa está valorada em uma outra criptomoeda, você não consegue comparar as duas coisas.   Então, todas elas [mercadorias] têm que estar [valoradas em relação a um padrão monetário]. Veja que um padrão monetário é só uma condição para a reprodução do capitalismo. Não é o Estado atuando no movimento, é ele estabelecendo as condições. Se você pegar regulamentação de jornada de trabalho, de maneira a permitir que as empresas concorram em iguais condições com relação [umas às outras], mesma coisa. O movimento da dívida não, ela entrelaça o Estado ao movimento de reprodução do capital porque o principal papel da dívida pública é tentar resolver o que eu digo que é a contradição mais mortal do capital, que é o fato de que o capital não tem outra saída a não ser crescer de maneira contínua. Toda empresa capitalista quando produz, ela produz um excedente. Ela tem que reinvestir todo esse excedente, senão o dinheiro se desvaloriza. O efeito da inflação parte daí.   Se a massa das empresas em um país não consegue reinvestir o seu excedente, você produziu de forma monetária mais dinheiro ao final do processo, mas você não gerou mais riqueza. Só que qual é o problema? O capital coloca problemas para que ele próprio possa se reproduzir em escala ampliada. E aí sim, os limites do mercado interno brasileiro atuam de maneira decisiva. Com relação a esse aspecto, o Ruy Mauro Marini tem razão. Ele subestimou o ponto de que o Brasil pode sim desenvolver um mercado interno tipicamente capitalista para a massa da população, mas com relação aos limites desse mercado interno, ele tem razão. No Brasil, você não amplia a produção, por exemplo, de bens de consumo duráveis, tirando coisas que surgiram agora, quase nada, há décadas.   A produção de automóveis no Brasil hoje é quase metade do que era 10 anos atrás, 40%, 35% menor. Então, o capital não tem para onde sair. A dívida pública é a forma como o Estado absorve o capital excedente da sociedade, que não tem por onde ser aplicado. O Estado absorve esse capital e evidentemente vai imediatamente gastá-lo, e as coisas vão se vincular, porque, veja: se os capitais não estão tendo onde colocar os capitais deles, é porque a economia não consegue crescer. Se a economia não consegue crescer, significa que você não consegue produzir mais riqueza, as pessoas não conseguem comprar essa riqueza e isso impacta nas despesas, na arrecadação estatal, que extrai essa riqueza da sociedade. Então, também o Estado está precisando de dinheiro.   Então, o Estado absorve esse capital [por meio da emissão de títulos da dívida pública], ele [capital] passa a existir de forma puramente fictícia, fictícia na forma de um título de valor. É diferente da forma fictícia de uma ação, porque numa ação, aquele capital continua existindo, aquele capital representado pela ação - a empresa está produzindo, está comprando, vendendo, comprando, vendendo. Aquele capital continua existindo -, o título da dívida, não. O Estado recebe o recurso, gasta, e aquilo vira só um título de papel. Ele paga os juros, seja produzindo mais títulos, seja arrancando recursos da sociedade. Mas na promessa de que dias melhores virão, ou seja, de que ele vai poder pegar esse capital que ele absorveu e agora, além de absorver capital, agora ele está, na média, devolvendo capital para os capitalistas poderem aplicar.   Esse é um processo que, evidentemente, adia o problema da reprodução do capital pela via do Estado. O capital não consegue se expandir e o Estado absorve. Mas se isso não é invertido, uma hora a coisa explode, evidentemente. Porque você vai ter que ficar pagando títulos com títulos, títulos com títulos. Você vai ter que estar absorvendo tanto capital, numa magnitude tal, que a emissão monetária no país se torna completamente descontrolada, você volta a ter problemas de inflação absolutamente crônica, você corre o perigo do Estado entrar num processo de falência, como o da Argentina, [que] já está nesse estágio há bastante tempo, diga-se passagem. Então, a dívida pública é um processo por meio do qual o Estado absorve capitais da sociedade que já não têm onde mais ser colocados.   A elevação do endividamento público na enorme maioria dos países, mundo afora, representa isso. No fundo, aquilo ali é capital, capital privado, em sua maior parte, que não tem mais onde ser colocado e que é colocado nos braços do Estado, que o remunera - com a promessa de devolvê-lo no futuro. Por isso, a palavra de ordem dos capitais no mundo inteiro - e no Brasil mais do que em outros lugares do mundo hoje - é: “ajuste fiscal”. Ou seja, eu quero ter a garantia de que o Estado vai conseguir devolver esses títulos no momento adequado, quando a indústria brasileira, quando o capital brasileiro começar a se expandir. E para isso o país tem que passar a ter superávit , o país tem que começar a ter mais arrecadação do que gastos para ele começar a usar esse excedente para devolver esse capital para o restante dos capitalistas brasileiros.   A palavra de ordem é “ajuste fiscal”. Hoje isso é verdade até para o Estados Unidos, pela primeira vez em décadas. O Estados Unidos nunca precisou se preocupar com isso, porque o Estados Unidos - como é a moeda usada no mercado mundial, o dólar - mandava dólar para o mundo inteiro por meio de um déficit comercial, que ele já tem há muito tempo, então ele comprava mais de fora do que vendia para fora. Com isso você mandava dólar [para fora] e esses dólares voltavam para os Estados Unidos comprando títulos do Tesouro Americano, e os juros do Tesouro Americano eram zero, eram 0,2, 0,3, ou seja, ele [EUA] era financiado a juros irrisórios pelo capital do mundo inteiro.   Agora os Estados Unidos têm tanta crise interna - que gerou uma inflação que chegou a duas casas decimais com o Biden -, [que] eles tiveram que ampliar a taxa de juros e o Estados Unidos, ano passado, pela primeira vez em décadas, pela primeira vez desde a Primeira Guerra Mundial, gastou mais com juros da dívida do que com defesa, por exemplo. Então, o mecanismo da dívida é um mecanismo fundamental para a gente entender a natureza do capitalismo, para a gente entender o atrelamento do Estado ao capital - Estado e capital são dois lados da mesma moeda -, o atrelamento do Estado capitalista ao capital privado e como, aí, ele se vincula ao próprio movimento de reprodução do capital, absorvendo ou ressuscitando o capital excedente quando os capitalistas não conseguem mais investir, devolvendo assim que for possível e quando for.   Então, eu sei que é um mecanismo que não é simples de ser explicado, ele depende   de algumas mediações, vamos chamar assim, mas a gente tem que fazer um esforço nesse sentido. Acho que ele é fundamental para a gente entender os limites que estão dados para a intervenção do Estado hoje em qualquer país. Eu acho que esses limites não são absolutos, mas eles não permitem nenhuma reconfiguração geral da sociedade, principalmente no caso brasileiro. E [é também fundamental] para que a gente entenda como hoje os capitalistas a nível mundial dependem do Estado como uma questão de vida ou morte. A tal ponto [que] até mesmo o Estados Unidos, como eu falei [também assumem a palavra de ordem de “ajuste fiscal”]. Não sem razão, Musk pegou o ministério que tinha como principal missão cortar gastos públicos, o que nunca foi bandeira central dos Estados Unidos ao longo das últimas décadas.   É [bandeira central] para o Brasil. Desde uns 30, 40 anos. O centro aqui é cortar gastos públicos. Mas não reduzir a carga tributária. É cortar gastos públicos para que essa despesa possa alimentar o capital cada vez mais dependente do Estado. Seja o Estado como consumidor, por via da terceirização e outras coisas, seja por via, inclusive, das políticas assistencialistas, seja pela via da absorção do capital por meio do mecanismo da dívida. Então, o resumo da ópera é esse: quando o Estado tem superávit , o Estado está devolvendo capital para a sociedade.   O Brasil, durante o período de maior crescimento, durante o período dos dois primeiros mandatos do Lula e do mandato da Dilma, tinha superávit  primário, ou seja, ele arrecadava mais do que gastava. O excedente ia para a dívida pública, devolvendo para o capitalista aquele capital que os capitalistas tinham locais de investimento naquele momento, até 2014, 2015. Bate certinho. De 2014, 2015 para cá, é déficit orçamentário e, fundamentalmente, o Estado brasileiro, ano após ano, absorve o capital da sociedade que não tem onde ser colocado. É, de fato, um processo que caminha para uma implosão, para um colapso social, nos patamares em que a Argentina vem passando desde o início dos anos 2000. talvez até mais forte.   Para a gente ver como a situação do Brasil hoje é pior, por exemplo, houve um boom das commodities  que alimentou a economia brasileira nos anos 2000 com o governo Lula. Houve de novo um boom  das commodities  durante a pandemia, até ano passado, tão grande como o que houve nos anos 2000. Só que esse boom das commodities  só serviu para o Brasil conseguir tapar o buraco naqueles anos. Ela não pôde mais fomentar processo de desenvolvimento nenhum. Ou seja, não se trata de uma reprodução de mais do mesmo, se trata de uma reprodução descendo a ladeira, se trata de uma reprodução que caminha para cenários sociais, políticos, econômicos muito mais drásticos no futuro próximo.   6° pergunta - Marcos/Revista Barravento:  Gustavo, indo agora mais para o final, vou tentar sintetizar aqui algumas questões - que eu acredito que possam ser sintetizadas, porque muitas das questões que a gente tinha pensado previamente já foram abarcadas de uma forma ou de outra ao decorrer dessa exposição, mas pensando agora na questão de um certo projeto de reindustrialização e nas disputas que existem dentro das esquerdas em torno de uma possibilidade de projeto de reindustrialização. Eu falo isso pensando em certas figuras, claro, não me remeto aqui à academia, mas a figuras atuantes politicamente, penso no Ciro, em todo esse pessoal mais ligado ao desenvolvimentismo e tal, e que vê no Estado uma possibilidade de uma outra coisa. Pelo menos hoje, diante desse marco que você delimitou de possibilidades muito reduzidas em relação ao que foi o Estado brasileiro antes, pensando nisso, como é que você enxerga a intervenção estatal, pensando no problema da reindustrialização, da necessidade de uma reindustrialização?   Resposta - Gustavo Machado/Canal Orientação Marxista:  Certo. Essa coisa é bastante curiosa. Eu mesmo - hoje menos, mas um tempo atrás - eu assistia muito as entrevistas do Ciro Gomes, por exemplo. E era muito curioso, quando ele fazia o diagnóstico dos problemas, muita coisa eu concordava com ele. Muita coisa. É até interessante desse ponto de vista. Agora, quando vinha as soluções, eu às vezes ficava pensando assim, “será que ele acredita mesmo que dá para reverter todo esse cenário que ele acabou de descrever, com essas medidas?” Porque, por exemplo, quando a gente fala em industrialização no Brasil, tem gente que não entende nada disso, acha que está falando de um setor da economia, não, está falando da produção de riqueza de toda a sociedade.   A questão da desindustrialização do Brasil pode ser resumida na seguinte frase: uma desindustrialização relativa. Todos os setores que existem são industriais em alguma medida, inclusive o agroexportador. Mas significa redução da cadeia de valores do capitalismo produzido aqui no Brasil. E redução da cadeia de valores para todos os agentes sociais, trabalhadores e capitalistas. Significa que a gente tem menos indústrias com tecnologia intensa, com alto valor agregado. E [isso] se deve a vários fatores que se agravaram nas últimas décadas. As transformações tecnológicas que nós tivemos no século XX - primeira metade do século XX - elas levaram a setores de ponta que demandavam que as suas unidades produtivas fossem instaladas razoavelmente próximas do local de consumo. Não dava para você produzir automóvel lá nos Estados Unidos e transportar. Até dava, mas o preço que ia chegar aqui era exorbitante.   Para você de fato alimentar o mercado brasileiro com automóvel, tinha que ter montadora aqui. Para você de fato alimentar o mercado interno brasileiro com eletrodomésticos, geladeira, fogão, televisão, equipamento de som, tinha que ter mercado interno aqui. Tinha que ter unidades [produtivas] instaladas aqui. As últimas transformações tecnológicas, os setores de maior valor agregado não precisam mais disso.   Primeiro a gente teve nos anos [19]70 - ah, o quê? As pessoas chamam [assim], a classificação pouco me importa - a “terceira revolução industrial” nos anos [19]70, que abriu caminho para os setores cuja base é semicondutores. Hoje, praticamente, todo eletroeletrônico virou um computador. Uma televisão hoje é um computador, por exemplo. Até uma máquina de lavar hoje é, em grande medida. São todos digitalizados. São produtos muito mais leves, produtos que ocupam muito menos espaço. Celulares. Hoje a forma de computador mais usada são celulares.   São bens que podem ser produzidos em um local só do mundo e transportados para cá ou meramente montados aqui. Até na indústria automotiva, o carro elétrico, se você não produz a bateria aqui, você abastece o mercado interno brasileiro com 80% menos de trabalho em toda a cadeia de produção, porque o grosso está na produção da bateria e de mecanismos digitais, semicondutores, que são todos feitos lá fora. Então, o que a gente tem é uma redução da produção de riqueza aqui dentro do Brasil. Aí é muito curioso, por exemplo: o governo Lula faz um projeto de reindustrialização que dá subsídios, por exemplo, para o setor siderúrgico. Olha, mas o setor siderúrgico, já tem uma capacidade instalada que atende mais do que o suficiente para atender o mercado interno brasileiro, até porque o uso de aço tem reduzido, os veículos se transformam cada vez [mais], demandam menos aço. Coisas que antes utilizavam aço, sei lá, latas de óleo, não precisa mais, agora é tudo indústria química, plástico, dentro da cadeia do petróleo.   Então, não tem o que ampliar no setor siderúrgico brasileiro. E não fosse bastante, a China tem hoje um setor de meios de produção altamente organizado. O aço chinês só não fale o setor siderúrgico brasileiro inteiro porque existem tarifas que impedem que ele seja simplesmente transportado de lá e vendido aqui, senão ele chegava aqui mais barato. Ora, o que vai fazer o setor siderúrgico [brasileiro] com esses subsídios no setor siderúrgico? Eles vão embolsar e vão transferir para o mercado estrangeiro, vão comprar títulos da dívida interna brasileira, vão ver se tem algum "setorzinho" de serviços, alguma coisa aqui dentro do Brasil que possibilita aquilo ali ser aplicado. No máximo, [vai] abrir as fábricas de fertilizantes no Brasil, estou extremamente favorável, acho que é positivo, mas é uma coisa “desse tamanhinho”. E você está falando de uma indústria de fertilizantes que nem é voltada para exportação, que nem é capaz de atender o agronegócio brasileiro interno.   [Aos] setores de alta tecnologia, não há nenhum projeto do Brasil entrar em absolutamente nada. Não há projetos estruturados. Lembrando que o Brasil tem alguns pontos de partida. O Brasil tem, por exemplo, a Embraer, que é uma indústria de tecnologia de ponta que poderia servir de ponto de partida para o desenvolvimento de outros setores. Porque dentro da indústria aeroespacial, hoje a gente tem software  avançado, a gente tem alguns equipamentos eletroeletrônicos avançados, a gente tem sistemas que poderiam ser usados na navegação, a partir daí, e na indústria ferroviária.   O Brasil, pouca gente sabe - quando eu digo que a gente perdeu oportunidades - tinha uma das maiores indústrias navais do mundo no início do século XX. O Brasil hoje não tem mais indústria naval. O Brasil tinha marcas consolidadas no setor eletroeletrônico. Na época a CCE [Comércio de Componentes Eletrônico] tinha má fama, mas [a] Gradiente era de umas marcas de eletroeletrônico mais renomadas dentro do Brasil. Foram todas para o ralo. Você tinha que ter um projeto de desenvolvimento, evidentemente, que partisse de polos que ainda sobrevivem no Brasil, para a gente não começar do zero, como a Embraer. Você ia ter que reestruturar o setor aeroespacial no Brasil. A Embraer tem condições hoje de construir um avião que concorra com as versões menores do Boeing 737 e do Airbus A320, que são os aviões que são usados na aviação comercial do Brasil hoje. Ela já produz o E-195, que já está a uma capacidade de 80, 90 passageiros para igualar esses aviões.   Ela só não entra, porque para você entrar, primeiro: não poderia ser uma empresa de capital quase totalmente privado, maior parte estrangeira, como é ela, que está preocupada com lucro rápido e precisa de ter uma retaguarda que garanta o mercado interno brasileiro. Mas [ainda sobre] os aviões da Embraer, vou te dar uma ideia: a Boeing, o 737, o protótipo inicial que eles vêm aprimorando, foi feito na passagem dos anos [19]50 para os [19]60. A Embraer reconstruiu aviões novos nas últimas décadas, foram construídos do zero e já estão no mercado. Com tecnologias extremamente avançadas em termos de design, em termos de projeto de asa, coisas nesse sentido. Então você teria que ter projetos arrojados nesse sentido. Vamos usar essa empresa como ponta de lança. O setor privado não quer saber? Então essa empresa tem que ser expropriada.   O mercado interno vai ser abastecido com esses aviões para que você garanta saída e essa tecnologia seja utilizada para a reconstrução da indústria naval brasileira e vários outros setores que estão associados à indústria aérea, setor ferroviário - o Brasil, que a malha ferroviária foi abandonada para fomentar uma indústria automobilística de caminhões e veículos de grande porte, que é muito mais caro [manter]. Enfim, teria que ter projetos dessa natureza. E isso, eu estou fazendo um esforço aqui para não precisar falar de revolução socialista, de nada disso. Um projeto de desenvolvimento nos marcos do capitalismo. Eles teriam que ter propostas, pelo menos para me escutar e falar “pago para ver”. Está entendendo? Isso não vai resolver o conjunto dos problemas sociais do Brasil, mas vale a pena apoiar isso aí.   Teriam que ter propostas nesse sentido, e não subsídio para setores industriais que já não têm mais para onde correr, tanto em termos tecnológicos quanto em termos de abastecimento interno, e menos ainda em termos de exportação. Então, quando o Ciro Gomes traça o quadro do Brasil, você fala assim “pô, uns 80% que você está falando aí, eu concordo”. Eu acho que o quadro é até pior do que esse [traçado por Ciro], mas agora, quando vêm as propostas, elas são muito tímidas, são “desse tamanhinho assim”. Você fala assim “pô, eu não consigo acreditar que esse cara acredita que essa proposta dele vai resolver o tamanho do problema que ele mesmo falou no momento anterior”. Percebe? Mas eu acho que a gente tem que conseguir mostrar para a população brasileira que o problema da desindustrialização relativa no Brasil é o problema da redução da cadeia de valores produzidos aqui dentro.   É da indústria que vem o valor que o comércio distribui. É da indústria que vem o valor que o serviço consome. O que faz [a] saúde? Consome equipamentos médicos. Você está entendendo? Os serviços consomem riqueza que já foi produzida. Um país só pode ser uma potência em serviços, os Estados Unidos [por exemplo], porque ele tem uma produção industrial dentro e, sobretudo, fora dos Estados Unidos, gigantesca, com o capital migrando para lá. A redução da indústria brasileira do ponto de vista do valor que ela agrega é uma redução de todos os outros setores, que eles não têm de onde arrancar valor. Eu acho que o centro do que os marxistas têm que saber falar em termos de teoria do valor para o Brasil é que teoria do valor, o núcleo central dela, é só o seguinte: não existe riqueza criada do nada. O centro dela [teoria do valor] é esse. Toda aquela complicação é para mostrar só onde ela foi produzida, como ela se redistribui, você está entendendo? Mas não existe setor bancário que vive de juros se esses juros não têm de onde arrancar esses juros. Não existe setor imobiliário que vive da renda se não tem de onde arrancar aquela renda que é paga ao setor imobiliário. Não existe excedente para o comércio se não tem de onde tirar as mercadorias que vão ser comercializadas. Não tem recurso nenhum para os serviços, se você não tiver de onde arrancar a riqueza, que os serviços vão consumir ao oferecer aquele serviço. Percebe?   E posso até ilustrar com exemplos recentes do noticiário brasileiro, por exemplo - não quero mudar para esse tema não, viu, gente? É só um exemplo - a guerra tarifária agora do Trump.  O pessoal [diz] “Ah, mas o que a China exporta para o Estados Unidos é só 2% do PIB da China”. Vocês estão de brincadeira comigo. 2% é porque o PIB, na metodologia do PIB, ele soma o excedente do banco, soma o excedente do comércio. Ora, esses 2% do PIB da China estão alimentando ali 20 milhões de trabalhadores, que vão deixar de consumir no comércio, que vão deixar de consumir nos serviços, em todos os demais domínios, empresas que vão deixar de pegar financiamento, que não vai produzir juros para os bancos. Não é 2% da economia, é muito mais do que isso - ainda que o problema seja ainda maior para dentro dos Estados Unidos, não vou entrar nisso agora.   Então, o problema da industrialização do Brasil é isso: é da redução da riqueza produzida aqui dentro. Isso [se] enraíza para todos os setores da sociedade. Daí, para quê pesquisa, desenvolvimento e extensão na universidade pública se nós não usamos isso para nada e o Estado mal está dando conta de absorver capital e consumir o que o capital demanda para ele manter o patamar em que ele está? “Fecha essa porcaria”, entendeu? “Vamos formar só tecnólogos para operar essas tecnologias que estão aí”. E por aí a gente vai descendo a ladeira ano após ano, tempo após tempo. Então eu acho que é sim uma discussão fundamental e que a gente tem que conseguir passar para a sociedade que é muito maior o problema do que se fosse um setor dentre dez que está caindo. A gente está falando aqui da redução da economia brasileira no seu conjunto e que nenhuma dessas propostas que vão aí do Haddad ao Ciro Gomes não passam de subsídios tímidos em setores de pouco valor agregado, situados, assim, na periferia da cadeia de produção de valores do capitalismo de hoje. E que, às vezes, eu tenho dúvida se eles acreditam na efetividade daquilo ali.   7° pergunta - Rodrigo/Revista Barravento:  Gustavo, já estamos, então, caminhando para o final da nossa conversa. Talvez, de arremate, você já até comentou algumas questões que eu vou te perguntar agora, na sua última fala, sobre explicar para a classe trabalhadora como se dão esses processos, que não é apenas uma questão de falha da gestão do Estado. E aí a pergunta que fica é: como fazê-lo? Como ganhar o coração e mente dos trabalhadores e o que nós, comunistas, podemos e devemos fazer diante desse contexto [em] que, em grande medida, a classe trabalhadora se aliou a uma esquerda que tem quase que uma crença de fé mesmo, de cunho religioso, de que o Estado será capaz de resolver todos os problemas, ditos estruturais, enfim, os problemas que nós sentimos na vida cotidiana? Então, como fazê-lo?   Resposta - Gustavo Machado/Canal Orientação Marxista:  Antes de eu dar um pitaco sobre essa questão, eu também vou fazer um “parênteses” aqui: não pode parecer que eu tenho aqui a fórmula e a chave mágica de todos [os problemas], está longe de ser verdade. Eu admito várias dificuldades. Eu admito várias dificuldades que existem atualmente, ligadas, por exemplo, à fragmentação da classe, envolvendo a terceirização que se torna generalizada, trabalhos feitos em casa, vários sistemas hoje digitalizados com trabalhos dispersos ao longo do país inteiro. Eu não nego que existem vários problemas e que nós temos algumas mudanças de fundo na conformação da classe trabalhadora. É muito contraditório: não é que está existindo menos trabalhador assalariado, e nem sequer [menos trabalhadores] industriais, para ser bem sincero. Na verdade, essas revoluções tecnológicas que estão aí, elas atingem em cheio o setor de serviços e o setor de mais elevada qualificação, [atingem] mais do que o trabalho manual, por exemplo. Então, existem dificuldades que eu não nego que elas existem, elas têm que ser estudadas e a gente tem que entender as melhores formas de intervenção em meio a cada uma delas. E eu estou longe de achar que eu tenho todas as respostas para essas questões e tudo mais, mas alguns pontos eu acho que dá para ser comentados sem o menor pudor.   O primeiro deles: domina hoje uma esquerda que insiste em achar que dá para apresentar uma solução para os problemas que afligem hoje a massa da população, dos trabalhadores, por um viés puramente institucional e desenvolvimentista. E pior, não é que isso é apenas um discurso, isso é o que dominou os governos, por exemplo, na Europa, no Brasil e na América Latina ao longo das últimas décadas. Eu, inclusive, não tenho dúvida de que essa é uma das bases que deu gás à ultradireita. Não só, tá? Eu acho que tem outras coisas também. Eu sei que tem muitos preconceitos na sociedade, várias coisas aí que também alimentaram [a ascensão da ultradireita]. Eu acho que há setores médios na sociedade em descenso social, desesperados, que também foram alimentados por esses setores.   Mas, se você parar para analisar, hoje nós temos uma esquerda dominante que não tem nada a dizer, ela só defende as instituições que estão dadas. As pessoas querem mudança e a esquerda faz o quê? “Não, nós temos que defender esse Estado democrático de direito”. Veja, acho que tem que defender as liberdades democráticas ao máximo, mas isso é completamente diferente do que defender toda a institucionalidade que ancora o Estado democrático de direito, tipicamente capitalista, com todas as suas características. Está entendendo? Se tornaram o quê? O bastião, a esquerda hoje se tornou o suprassumo do conservadorismo. Ou seja, é quem se coloca na porta de frente de defesa das instituições, de defesa daquilo que o mundo vem vivenciando nas últimas décadas e que tem gerado uma série de problemas, crises, das mais diversas naturezas, que fazem com que hoje a maioria da população esteja indignada.   É uma esquerda, sobretudo uma esquerda dita marxista, onde o socialismo aparece para os dias de festa, e que sempre respondem a mesma coisa quando se coloca isso. “Ah, mas a revolução não está dada para amanhã”. A questão não é essa. Eu não sei quando vai ou não vai ser dada uma revolução. Eu não sei, eu não tenho a chave da história na minha mão. O que eu sei é o seguinte: qual é a situação e o que nós temos que fazer e o que nós temos que construir a partir disso. Está entendendo? Nunca vai estar dada uma situação em que processos revolucionários possam ser guiados no sentido de uma socialização dos meios de produção, no sentido de um trabalho que seja feito de forma planejada, consciente. Nunca vai estar dado se nós não construirmos isso.   E também colabora muito para [o predomínio dessa posição] uma esquerda que se diz marxista,   mas que faz apenas um trabalho de denúncia dos problemas imediatos que todo mundo sabe, e depois dá saltos gigantescos sem mostrar a conexão daqueles problemas com a sociedade que nós vivemos, percebe? Não adianta nada eu chegar aí e falar assim “o Brasil precisa do socialismo”. Mas por que? De onde isso aí surgiu? Você pega e coloca a culpa nos setores capitalistas, mas sem mostrar por que eles têm culpa, onde está, quais os vínculos, quais as conexões. A gente precisa ter propaganda, precisa ter o discurso afiado, precisa conhecer o Brasil a fundo, as especificidades do Brasil, as inúmeras cisões que são produzidas, fazer disputas de propaganda permanente em todos os espaços existentes, procurando dar uma compreensão às pessoas, das características da sociedade que a gente tem e, sobretudo, atuar de forma organizada dentro desses espaços.   Eu estou longe de acreditar que eu tenho resposta para todas essas questões, mas nós não vamos ganhar corações e mentes meramente defendendo as instituições. Nós vamos defender o que foram os direitos acumulados pela classe trabalhadora ao longo da história. Isso é diferente de defender as instituições, percebe? Eu quero liberdade para me organizar, óbvio que sim. Quero liberdade para me organizar, para lutar pelo que é meu, para poder fazer propaganda, disputar os processos, atuar. Isso sim. É completamente diferente de defender o aparato jurídico, estatal, político existente. E, sobretudo agora, que a gente vive um momento que o próprio capital, para continuar o processo de acumulação, ele está pondo abaixo vários dos preceitos que foram consolidados ao longo das últimas décadas, dos anos [19]70 para cá, inclusive com possibilidades de abrir mão mesmo de regimes democráticos capitalistas burgueses, para regimes mais autoritários. A gente cai em um ledo engano se a gente acha que vai garantir isso que a gente está perdendo, segurando defensivamente nas instituições que são justamente o alvo da indignação de boa parte das pessoas. A gente tem que mostrar para elas o vínculo dessas instituições com o setor privado, como elas estão organicamente ligadas umas para às outras, como elas se beneficiam desse sistema. Então, [temos que mostrar] essa vinculação entre o Estado e o setor privado como parte de um mesmo sistema e, principalmente, mostrar como várias coisas ordinárias que nós temos na nossa vida hoje [se articulam], [coisas] que a gente se acostuma - juros, renda, preço, lucro, etc. [Temos que] conseguir mostrar para as pessoas, ainda que de formas não teóricas, de formas mais palatáveis e tudo, a vinculação que existe entre aquilo ali com a disputa pelo trabalho excedente que a classe trabalhadora a nível mundial produz e reproduz todos os dias. Essa é a briga Estados Unidos/China. Percebe? Essa é a briga entre o setor agroexportador brasileiro com algum setor incipiente da indústria voltada para o mercado interno ou com o setor bancário do Brasil. Nós temos que saber levar essas discussões adiante, fazer propaganda, estudar mais por parte dos setores que intervêm na realidade, no sentido de estar qualificado para fazer essa disputa. O que foi, em certo sentido, o que a ultradireita fez ao longo dos últimos 15, 20 anos. “Ah, Gustavo, mas as pessoas não vão querer saber disso, não vão querer entender”. Cara, a ultradireita hoje organizou milhões de pessoas com discussões teóricas de liberalismo. Você está entendendo? É claro que isso vai para o povão, para a massa da população, de forma mais palatável, mas conseguiu ganhar a massa de pessoas de que “a previdência pública não presta”, que “o bom é a previdência privada”, que “o problema é o grau de intervenção estatal”, com discursinhos arranjados e um argumento encadeado de por que “o livre mercado vai ser bom para todo mundo e vai resolver o problema de todas as pessoas”. Conseguiu ganhar uma pancada de pessoas. Só que a gente não consegue sair da detecção dos problemas para o vínculo estrutural com a sociedade no seu conjunto. É aí que a gente se engasga - para quem está bem intencionado, querendo fazer uma transformação revolucionária. E o grupo majoritário [da esquerda] nem pensa nisso. É a detecção dos problemas e uma saída institucional que já tem sido colocada à prova há décadas e fracassou no Brasil, na América Latina, na Europa, no mundo.   Então, eu acho que a tarefa que está colocada imediatamente é criar um grupo de pessoas organizadas, grande, numericamente significativo, que possa fazer uma disputa sobre isso na sociedade, fazer uma disputa sobre isso no Brasil, para que as pessoas no seu conjunto possam conhecer essa posição. Aí é que nós vamos contar com as contradições do capitalismo, com as crises e tudo, para que as pessoas possam fazer experiência. Não é que a gente vai falar e todas elas vão acreditar em nós. Elas podem achar um absurdo, mas elas entendendo o que está sendo dito, elas podem fazer uma experiência e tirar suas conclusões. Mas se você não explica, ninguém tira conclusão nenhuma, aconteça o que acontecer. Vocês estão entendendo? Então, eu acho que passa por isso. Não estou negando várias questões que tem aí. Nós vamos ter que ter linhas, vamos ter que saber entender. Por exemplo, hoje a gente tem uma estrutura sindical que é completamente inadequada em relação à estruturação do trabalho no Brasil. Então, você pega uma empresa qualquer aí: “ah, organiza os metalúrgicos na empresa X”. Beleza, 60% para 70% dos trabalhadores ali são terceirizados e são sindicatos de outro setor, por exemplo. São vários limites dessa natureza que são colocados. Hoje você tem um grau de estabilidade no trabalho que é muito mais reduzido. Você ia em Contagem - eu que atuei muito a partir do PSTU no setor lá -, você ia há 15 anos nos setores industriais, você conversava com os trabalhadores que estavam ali naquela empresa ou em outra do lado há 15, 20, 30 anos. Hoje a pessoa fica um, dois, três anos na indústria e depois ela sai e está na Uber, depois ela sai e está trabalhando online, depois ela está fazendo uma outra coisa. E quem está lá não tem a menor perspectiva de continuar no longo prazo, para dar um exemplo. Então, existe, sim, uma série de mudanças que exigem de nossa parte reflexão, entender essas alterações e saber a melhor forma de intervir em meio a elas. E que eu estou longe de achar que tenho resposta para todas elas. Mas eu acho que alguns caminhos podem ser claramente indicados e, sobretudo, alguns problemas do que tem sido a prática dominante da débil esquerda brasileira ao longo das últimas décadas.   Considerações finais - Marcos/Revista Barravento:  Ok, Gustavo. A gente vai agora ao fim. Agradecemos enquanto Revista ao Gustavo pela entrevista a nós prestada. Acredito que tenha sido uma entrevista de muita valia. E, primeiramente, alguns comunicados. Como eu falei no início, essa entrevista vai ser transcrita e vai ser publicada no nosso site. E para acessar o nosso site, basta escrever lá no Google ou em um navegador semelhante: “Revista Barravento” e vai chegar no nosso trabalho. E segundo: para também acompanhar o que a gente vem publicando, os textos que a gente tem publicado de outras pessoas, [podem] acessar o nosso Instagram: @RevistaBarravento . E diante disso, terceiro ponto: deixamos agora esse espaço para que o Gustavo diga às pessoas os locais em que ele pode ser acompanhado, em que o trabalho dele pode ser visto, e [para que faça] suas considerações finais.   Considerações finais - Rodrigo/Revista Barravento:  E [deixamos esse espaço para divulgar] as novas empreitadas também, Gustavo. Você comentou sobre a nova edição que vem aí do ILAESE, [diga] onde pode ser encontrado, a publicação do livro que vai vir agora também, e tudo mais…   Resposta final - Gustavo Machado/Canal Orientação Marxista:  Perfeito. Rodrigo e Marcos, primeiro eu agradeço enormemente pelo espaço. Estou sempre inteiramente à disposição. Para mim é um prazer enorme estar conversando com vocês. Eu atualmente estou num período de transição. Eu terminei meu doutorado há algum tempo e estou trabalhando na publicação do texto. Vai sair um texto bastante melhorado em relação à versão original, que vai ser esse livro - “Marx e a Filosofia, o Capital como Crítica à Metafísica”. [Será] a primeira tentativa - da qual eu tenho conhecimento, tá? - de uma análise de conjunto dos três livros do Capital e o eixo que perpassa todo ele. A melhor forma de entender o Capital como crítica à metafísica, está ligado exatamente, penso, com a consciência ordinária das pessoas que, mergulhadas na sociedade capitalista, são sempre expostas a compreensões mais palpáveis e palatáveis que não coincidem com a forma que nossa sociedade funciona no seu conjunto. Então, “como o capitalismo produz essas formas de consciência no interior das pessoas” é um eixo que perpassa a análise, mas que vai estar orientada também por ter essa análise de conjunto da obra principal de Marx. Sobretudo, eu destaco os livros II e III, que são bastante negligenciados e que foi feita uma análise de peso e acredito que tem bastantes aspectos muito originais lá. Eu tenho dedicado muito tempo a isso. O texto, a editora já fez a revisão, só que eu estou dando “ok” na revisão e aproveitando para dar uma passada a limpo no texto no seu conjunto, vão ser dois volumes, mais de mil páginas, provavelmente. Estou trabalhando também no anuário do Ilaese - e é um anuário que nós publicamos não anualmente. chama anuário por causa do formato, viu, gente? -, que são séries de dados anuais. O Ilaese, que é o Instituto Latino-Americano de Estudos Socioeconômicos, o instituto que eu trabalho, a gente não tem forças pessoais e materiais suficientes para publicar todo ano, mas esse ano vai sair uma edição nova, que tem como novidade uma análise do capitalismo a nível mundial a partir das suas maiores empresas. Nós conseguimos dados - já está em cerca de 600, 700 - das maiores empresas do mundo em série histórica de 25 anos respeitando o peso dos respectivos países. Só de empresas chinesas são 130, 140, que nós fizemos um esforço hercúleo ao longo de 6, 7 anos para conseguir construir essa base de dados. E vai sair junto dela um anuário metodológico digital. Vai ter esse [anuário] impresso e vai ser divulgado [em formato digital] no site do Ilaese:  ilaese.org.br , nas minhas redes sociais, [e] no meu canal vou falar muito disso. E esse anuário metodológico apresenta a nossa metodologia, que é uma crítica ferrenha à pseudociência burguesa chamada macroeconomia. Então, é a primeira vez que nós vamos apresentar as primeiras formulações dessa metodologia nossa que procura aplicar uma metodologia marxista para a análise dos dados. Então, a gente faz recálculos, apresenta novos critérios em cima desses dados primários para analisar, por exemplo, o peso real do capital americano, chinês, europeu, brasileiro, etc., onde eles estão. [Para analisar] setores de tecnologia de ponta, o deslocamento da classe trabalhadora a nível mundial, a evolução da produtividade entre esses diversos países do mundo e os diversos setores, entre várias dessas questões. Então, o anuário vai ter uma parte nacional e uma parte internacional, também com artigos e com apresentação desses dados que a gente está apresentando de forma inovadora.   [Além disso] dou uns pitacos lá no meu canal - e eu estou me organizando agora para atuar de maneira mais sistemática -, que é o canal Orientação Marxista. Ainda estou no processo de transição aqui, comprando equipamento, melhorando, tentando tornar ele um pouquinho menos amador, mas todas as iniciativas que iniciei lá - curso do Capital, “enciclopédia marxista”, que comecei ano passado - vou dar vazão ao longo deste ano. Então por lá também dá para acompanhar alguma coisa. Por ora, como eu estou envolvido nessas coisas todas, eu estou escrevendo muito pouco para periódicos, etc. Pretendo voltar à ativa nesse sentido, mas vai ser mais a partir do final deste ano. Só essa tese aí, acho que eu já tenho aqui uns 20 ou 30 artigos possíveis de serem feitos, mas isso eu estou deixando um pouco mais para frente. E pretendo começar em breve também no portal Opinião, que é organizado pelo partido do qual eu faço parte, uma coluna fixa minha. A gente está organizando isso aí também, com temas mais leves, ensaísticos, textos menores. Devo começar a fazer isso a partir das próximas semanas também. Então, acho que é isso.   Considerações finais - Rodrigo/Revista Barravento: Beleza, Gustavo. Então, mais uma vez, muito obrigado. Nós agradecemos a você, em nome de toda a equipe editorial da Revista Barravento. E como a gente comentou, esse aqui vai ser o primeiro vídeo do canal do YouTube . Acho que não teria pessoa melhor para a gente estar estreando essa nossa empreitada. Então, é algo até novo para nós: para quem chegou até aqui, que possa seguir nas redes sociais, acompanhar o canal e curtir o vídeo, compartilhar e tudo mais. Agradecemos a quem chegou até aqui e principalmente ao Gustavo, por ter aceito prontamente o convite e ter feito essa conversa conosco hoje. Obrigadão.

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