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Introdução a "Carta a um Camarada" de V.I. Lenin - por J. Chasin

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    Murphy Stay
  • 2 de fev.
  • 10 min de leitura
CAPA REVISTA ENSAIO ANO IV - Nº 8
CAPA REVISTA ENSAIO ANO IV - Nº 8


José Chasin

Em certa passagem de Um Passo Em Frente, Dois Passos Atrás, V. I. Lênin, remontando ao itinerário de seus escritos voltados às questões de organização, assegura que suas ideias fundamentais “foram desenvolvidas no editorial do Iskra (nº 4) Por Onde Começar? e em Que Fazer?, e, finalmente, explicadas pormenorizadamente, quase sob forma de estatutos, na Carta A Um Camarada” (Ob. Escolhidas, Ed. Avante!, Lisboa, 1977, Tomo 1, p. 244).

Por Onde Começar?, escrito e publicado em maio de 1901, é, sob via de inúmeras edições, um texto facilmente encontrável e amplamente conhecido. Exprime, como proposta central, a criação de um “periódico político para toda a Rússia”, que não seja “somente um propagandista coletivo e um agitador coletivo, mas também um organizador coletivo”. Sendo imprescindível reter que o jornal é tomado como o ponto de partida concreto para a criação da organização partidária desejada, e como o fio capital ao qual se ater ao longo do incessante desenvolvimento daquela: “o primeiro passo prático em prol da criação da organização desejada e, finalmente, o fio fundamental ao qual poderíamos nos atar para desenvolver, aprofundar e ampliar incessantemente esta organização deve ser a fundação de um periódico para toda a Rússia. Necessitamos, acima de tudo, de um periódico” (Ob. Escogidas, Ed. Progresso, Moscou, 1975, Tomo I, p. 478-480).

O conhecidíssimo Que Fazer?, de princípios de 1902, fortemente divulgado e infinitamente referido e citado – a favor ou contra –, no mais das vezes de modo ritualista, impróprio ou distorcido, é sempre oferecido como o tratado definitivo e inultrapassável das concepções do autor enquanto “criador do partido de vanguarda”. E isto mesmo em contraste com o próprio subtítulo da obra – Problemas Candentes do Nosso Movimento – que a data e localiza, e até contra a palavra expressa de Lênin que, em 1907, no Prólogo à recompilação “12 Anos”, é categórico na determinação do equívoco de se fazer uso ou referir Que Fazer? de modo indiscriminado: “O erro principal dos que hoje polemizam com Que Fazer? consiste em que desligam por completo esta obra de uma situação histórica determinada, de um período concreto do desenvolvimento de nosso partido que de há muito passou. (...) Que Fazer? é o sumário da tática iskrista e da política iskrista em matéria de organização durante os anos 1901 e 1902. Um ‘sumário’, nem mais nem menos. Quem se dê ao trabalho de ler o Iskra de 1901 e 1902, indubitavelmente se convencerá disto. E quem julgar este sumário sem conhecer a luta do Iskra contra o economicismo, à época predominante, e sem compreender esta luta, não fará mais que lançar palavras ao vento”. E, como se não bastassem tais precisões, Lênin adita ainda mais para acentuar o caráter polêmico da obra: “Ora muito bem, tampouco no II Congresso pensei erigir em algo ‘programático’, em princípios especiais, minhas formulações feitas em Que Fazer?. Pelo contrário, empreguei a expressão vergar o mastro para o outro lado, que mais tarde se citou tão amiúde. Em Que Fazer? se endireitava o mastro que havia sido entortado pelos economicistas; isso eu disse (vejam-se as atas do II Congresso do P.O.S.D.R. de 1903, Genebra, 1904), e precisamente porque endireitamos com toda energia os entortamentos, nosso ‘mastro’ será sempre o mais reto. O sentido destas palavras é claro: Que Fazer? retifica polemicamente o economicismo, e seria errôneo examinar o conteúdo desta brochura à margem de sua tarefa” (O. Completas, Ed. Cartago, B. Aires, 1960, Tomo XIII, pp. 95/6 e 101).

Dito de forma positiva: Que Fazer? “está consagrado à crítica da ala direita, não já no que tange às correntes literárias, senão à organização socialdemocrata” (Ibid., p. 94).

E é precisamente na objetivação deste seu propósito que a obra, de forma natural e de modo que não poderia ser outro, destila e vai se entretecendo com certos universais, que só nesta precisa medida podem e devem ser reconhecidos e tomados a propósito da formulação geral do partido operário.

De toda maneira ressalta-se, aqui, a imensa divulgação que tiveram e têm, e o enorme prestígio que foi e é conferido a Que Fazer? e a Por Onde Começar?.

Destino precisamente inverso teve Carta A Um Camarada. Raríssimas têm sido suas aparições editoriais e, para não correr algum risco de exagero, digamos que quase nunca ela é referida ou citada.

Ao que saibamos, não há edição de Obras Escolhidas de Lênin (sejam em quantos volumes forem) em que figure. O mesmo ocorrendo nas infinitas antologias, brochuras e folhetos que procuram, sob critério temático, selecionar, organizar e divulgar a obra leniniana.

Praticamente, abstraída uma que outra publicação fragmentária, o texto sobrevive apenas nas edições das Obras Completas, escondido, portanto, da esmagadora maioria dos leitores, como a sofrer uma efetiva conspiração de ocultamento e silêncio.

Fique, desde logo, descartada a hipótese de que tal ocorrência decorra de mera casualidade, ou de algum destes “inocentes” e “incompreensíveis” acidentes de que a história “seria tão rica”.

Quanto a esse aspecto, não se aspira, aqui, a determinações mais amplamente concretadas, bastando deixar consignado, com plena transparência, o vínculo entre a aguda marginalização sofrida pela Carta A Um Camarada e os propósitos, conveniências e métodos do stalinismo.

E não foi à toa que este texto foi despejado ao limbo do esquecimento, onde permanece por décadas; consistindo esta primeira edição em língua portuguesa um esforço circunscrito de resgatá-lo. Carta A Um Camarada, por algumas de suas explicitações, facilita o acesso à pedra angular da expressão leniniana do partido de vanguarda, o que contraria fundamentalmente os adeptos e defensores de sua consolidada contrafação stalinista.

Carta A Um Camarada Sobre Novas Tarefas de Organização – este seu nome integral – é, pois, um documento perigoso.

Escrito em setembro de 1902, portanto pouco mais de meio ano após o término da elaboração de Que Fazer?, Lênin esclarece no próprio texto, como verá o leitor, que a Carta “Primeiramente andou, em cópias, de mão em mão, e se propagou pela Rússia como uma apresentação dos pontos de vista do Iskra sobre a questão da organização. Depois disso, a União Siberiana, em junho do ano passado (1903), a reimprimiu e a divulgou numa considerável quantidade de exemplares. Dessa forma, a Carta transformou-se plenamente em propriedade pública e agora não há nenhum motivo que impeça a sua publicação. As razões que me levaram a não publicá-la antes (precisamente a sua extrema falta de elaboração literária, o seu caráter de ‘rascunho’) estão superada s pois exatamente sob essa forma de rascunho dela tomaram conhecimento os militantes russos. Ademais, há uma razão mais importante para a reimpressão dessa carta sob a forma de rascunho (fiz somente as mais necessárias correções estilísticas): o seu significado como ‘documento’”. E o líder russo, em nota de pé de página, esclarece o caráter documental do escrito: “Depois que meus oponentes, mais de uma vez, expressaram o desejo de utilizar essa carta como documento, passei a considerar qualquer mudança, de minha parte, na reimpressão – para expressar-me o mais delicadamente – como incômoda”. Os oponentes acima referidos, não é inútil frisar, especialmente em nossos dias, são, por deliciosa ironia, os componentes da redação menchevique do Iskra, que assumira em novembro de 1903.

Mas se, de alguma maneira remota, a forma descuidada da Carta incomodava ao autor, nenhuma restrição manifestava quanto às teses nela expostas. Ao inverso, não só assume integralmente o texto, dado que é explicação pormenorizada de suas ideias fundamentais quanto às questões de organização, – tal como estampa na passagem antes citada de Um Passo Em Frente, Dois Passos Atrás –, como também assegura categoricamente a identidade do mesmo com seus demais escritos sobre o assunto, e com sua postura prática na esfera do organismo e dos confrontos partidários: “Comparando o Que Fazer? e os artigos do Iskra sobre questões de organização com esta Carta A Um Camarada, e esta última com o estatuto aprovado no II Congresso, os leitores poderão ter uma ideia clara sobre a continuidade de nossa ‘linha’ de organização, ou seja, da maioria dos iskristas e da maioria do congresso do partido”.

A Carta é, pois, na máxima distância de qualquer dúvida, uma peça autêntica e imprescindível, – como tal reiteradamente considerada pelo próprio autor –, para a legítima apreensão de seu pensamento quanto à orgânica do partido operário.

Mas o que há de tão especial, neste pequenino texto desse clássico da ciência e da prática?

A primeira vantagem da Carta A Um Camarada é que seu discurso flui como uma exposição verbal sem peias, na informalidade de um “rascunho”; algo que brota, no correr da pena, rico em exemplificações concretas. A Carta é o mais prático de todos os textos de Lênin dedicados à orgânica partidária. Nela vai simplesmente dizendo como se vê a coisa funcionando, “como a coisa deveria ser”. Esse “quase estatuto”, de que fala Lênin, é, na verdade, uma expressão oposta ao formalismo convencional, marcante por natureza, dos estatutos, – que deprime e estreita os conteúdos políticos decisivos, que têm, é óbvio, como é dito na própria Carta, de prevalecer. O que, desde logo, é uma pista imensa, positivamente subvertora da corruptela triunfante do pensamento leniniano.

Vencido o desalinhavo da peça e ultrapassado o jeitão de cipoal, sob o qual aparece a enumeração de modos e maneiras de organizar as atividades partidárias, o leitor terá, à sua frente, a evidência de que a concepção leniniana de partido político nada tem de um coágulo formal, de que não é regida ou fundada por qualquer equação desse tipo. De que é completamente infrutífero buscar, na Carta, – tal como também ocorre em o Que Fazer? e Um Passo Em Frente, Dois Passos Atrás, – os “princípios” ou receitas formais de organização, em geral imputadas a Lênin.

No lugar de disposições formalísticas, rígidas e esclerosantes, que perfazem toda a vil competência dos sabichões da mediocridade burocrática, Lênin alicerça a organização pelas funções variáveis no tempo e no espaço. O que, também de imediato, nos põe diante da possibilidade objetiva – dos partidos (no plural) – e não de uma única forma de dispositivo partidário leniniano, como demanda a perversa dogmática stalinista e neo-stalinista; esta última não poucas vezes travestida com saltos liberalizantes para trás – igualmente formais. Isto é, em face desta questão, ficam negativamente comprometidos tanto os que tudo limitam à denúncia tópica do “culto à personalidade”, como os “renovadores” da moda que “heroicamente” partem para o simples resgate, ingênuo, porém não inocente, dos contornos da decadência liberal que a história já enterrou, completamente desapercebidos de que não se trata, no plano das formas concretas de dominação, de meramente embandeirar a valoração genérica da democracia, mas, isto sim, de jardinar as novas formas da democracia por construir. Em ambos os casos, a generalidade abstrata, usada fora de lugar, faz a rima ardilosa do puro taticismo.

A afirmação particularizante do dispositivo partidário, – por meio das funções –, confere à concepção leniniana a maleabilidade objetiva de articular sempre natureza, as condições e as exigências de cada lugar e tempo com os propósitos finais de todo verdadeiro partido operário. Assim, inúmeras poderão e deverão ser suas singularizações, ficando rigorosamente preservadas as demandas da lógica imanente de cada realidade em especial, e garantida a teleologia última que, desse modo, está sempre no horizonte a iluminar e direcionar todo o itinerário a percorrer.

O enlaçamento das demandas do real e dos propósitos últimos mostra-se, assim, indissolúvel, e está reproduzido no significado da própria noção de função, que une uma situação dada, na subsunção à sua causalidade, a um objetivo a ser alcançado, ao qual o efetuador também é obrigado a se submeter.

Notar-se-á que a Carta está saturada pela preocupação de determinar a função dos órgãos e das individualidades que deles participam. Precisar as funções e garantir a mais alta especialização do desempenho delas é o que crivelmente obseda a Lênin. Mesmo uma leitura superficial de Que Fazer? reencontrará com toda a facilidade o mesmo critério organizativo.

Vale citar um trecho de uma intervenção de Lênin, no II Congresso do POSDR, sobre a questão dos estatutos, feita a 29 de julho (11 de agosto) de 1903: “A ideia fundamental dos estatutos é a  da divisão de funções. Por isso a divisão em dois centros não é o resultado de uma divisão espacial destes (Rússia e exterior), mas sim o resultado lógico desta divisão por funções. Ao Comitê Central pertence a função de direção prática. Ao Órgão Central, a direção teórica. Para unificação das atividades desses dois centros, para evitar dispersão entre eles e, algumas vezes, para a resolução de conflitos, é necessário um Conselho, que não deve ter absolutamente um simples caráter conciliador”.

O mesmo está, repetidas vezes, contido na Carta: “poderá e deverá existir em nosso partido dois centros diferentes: o OC (Órgão Central) e o CC (Comitê Central). O primeiro deverá dirigir ideologicamente, o segundo direta e praticamente”.

Em face daquilo que predominou e passou a imperar, ao longo do último meio século, as passagens acima mencionadas só podem levar o espírito dogmático ao escândalo e à perplexidade. Contudo, elas encerram o nódulo da autêntica concepção leniana do partido.

Nelas encontramos, de forma categórica, o critério organizativo por funções, e os dois grandes ramos fundamentais em que estas se subdividem: a função teórica e a função prática. Ramos que compreendem e implicam em dois centros dirigentes, distintos e solidários; lê-se na Carta: “o CC será sempre solidário com o OC em tudo que é fundamental e estará suficientemente livre para assumir o comando direto de todo o aspecto prático do movimento”.

Compreenda-se, desse modo, que o “dirigente ideológico do partido desenvolve as verdades teóricas, as situações táticas, as ideias organizacionais gerais, as tarefas gerais de todo o partido, neste ou naquele momento”. É, portanto, a cabeça pensante do dispositivo partidário. Sua especialização está no universo da razão, da elaboração científica, da reflexão competente.

Se tomamos, como é devido, – o trabalho como protoforma de toda a práxis social –, o OC realiza a prévia-ideação da ação política a ser desenvolvida, e o CC se encarrega de dirigir a sua efetivação.

O partido leniniano aparece, então, em seu fundamento, como a forja e a organização da razão (dialética, está visto) para todos os efeitos da política.

Só assim compreendido é que o dispositivo partidário propugnado por Lênin está em consonância com a famosa assertiva de que “sem teoria revolucionária não pode haver ação revolucionária”; afirmativa que habita todo o espírito de Que Fazer? e de Um Passo Em Frente, Dois Passos Atrás.

Se a contrafação stalinista expulsou a razão do partido, ou melhor, substituiu a racionalidade dialética pelo formalismo burocrático, se ao primado da ciência impôs o tolo império do estatuto, se em lugar da centralização pela razão fez vingar o centralismo democrático, de que não há rastro em nenhum texto importante de Lênin, e que só passou a qualidade de “princípio” em 1934, dez anos após a morte deste, se assim foi e o foi, não cabe culpa nenhuma a Lênin. Nem a nós. E se algum pecado tiver que ser expiado, a leitura da Carta A Um Camarada é um bom e fértil início. Quem terá medo de começar?

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