Carta de Marx a Freiligrath - 29 de fevereiro de 1860
- Barravento Revista
- 6 de fev.
- 5 min de leitura

Apresentação
Rafael Jácome (Barravento)
Como Gustavo Machado aponta em seu livro “Marx e a História”, a pesquisa não deve se justificar por si mesma. Ela deve ter um objeto claro: o desenvolvimento da razão como forma de compreensão e transformação do mundo, como forma de negação da ideologia e como um dos motores centrais para a classe e seus movimentos revolucionários, para que estes não caiam nas mistificações operadas pela ideologia dominante da sociedade burguesa. Em suma, como todos os demais elementos que nossa classe se vale no seu processo de organização, a razão cientifica atende a determinações da mundanidade e é necessário que essa mundanidade se expresse em fina conexão com nossas aspirações de classe. Direta ou indiretamente.
Entretanto, se é verdade que num polo temos uma mistificação da ciência, como se a atividade científica fosse por si autossuficiente, num outro polo temos a mistificação das organizações de classe, da qual esta mesma ciência deve beber e nutrir. Fato é que organizações proletárias, apesar de necessárias, também possuem seu caráter mundano, transitório e seus limites se tornam explícitos na medida que elas perdem seu caráter de utilidade naquilo que tanto a atividade intelectual, quanto a cotidianidade da luta nos demonstram; a necessidade de superação do capitalismo ou seremos nós mesmos “superados” enquanto humanidade.
Em alguns círculos militantes impera a máxima “a prática é o critério da verdade”, mas por vezes tal jargão aparece na fraseologia praticista como uma defesa irrestrita do impulso voluntário pouco refletido, do esforço não cientificamente fundamentado ou da reflexão limitada de uns poucos, se tornando quase um sacrilégio aceitar o caráter transitório do que existe somente como meio e não como finalidade em si mesma; nossas formas organizativas.
É curioso pensar o quanto o velho Marx, um dirigente substancialmente imerso nas lutas de seu tempo, articulador internacional do movimento proletário e, como consequência também disto tudo, um exímio intelectual voltado para os dilemas humanos de seu tempo e dos nossos, não passaria no crivo desse praticismo e seria condenado pelos arautos da “ação” (como o foi).
Claro, a condenação hoje somente aconteceria se não soubessem quem é Marx de antemão, visto que até mesmo ele foi mistificado, seja como intelectual de gabinete (“um leão sem juba”), seja como um dirigente romanticamente apegado a “efemeridade” organizativa. Ao contrário desses arquétipos simples o refinamento de Marx vai em outro rumo, como ele mesmo coloca: "Por partido eu entendia o grande sentido histórico que a palavra contém."
Sem mais delongas, cabe apontar que Marx era tanto o pesquisador refinado, quanto o militante e, mais precisamente, era a síntese de ambos. Uma síntese tão rica no plano da intelectualidade e da ação cotidiana, ao ponto de refletir sobre qual ênfase adotar (organizadamente ou não) a depender da conjuntura, como vemos no texto.
Com a palavra, Marx.
***
Caro Freiligrath,
Foi muito agradável receber a tua carta. Mantenho relações de amizade com poucas pessoas, mas gosto de conservar os amigos. Os que o foram em 1844 mantiveram-se até agora. Quanto à parte oficial da tua carta, verifico que se baseia em equívocos grosseiros…
Quero acentuar, desde já, que, a partir do momento em que a “Liga”, mediante proposta minha, foi dissolvida em Novembro de 1852, nunca mais pertenci a qualquer organização secreta ou pública e ainda hoje não pertenço a nenhuma. Assim, o partido, dentro dessa noção essencialmente efêmera, deixou de existir para mim, há oito anos. As conferências sobre economia política que fiz, depois de publicar a minha obra (Outono de 1859), perante alguns operários escolhidos, onde havia antigos membros da Liga, nada tinham de comum com uma organização fechada, muito menos fechada que as conferências do Sr. Gerstenberg, no seio da comissão Schiller.
Lembras-te, certamente, de eu ter recebido uma carta dos dirigentes da Liga dos Comunistas de Nova Iorque, que conta numerosas ramificações (entre os dirigentes, figurava Albrecht Komp, diretor do General Bank, 44, Exchange Place, Nova Iorque). Nessa carta, que te passou pelas mãos, pediam-se para, em certa medida, reorganizar a Liga. Entretanto, passou-se um ano e, quando respondi, disse-lhes que, desde 1852, não tinha relações com nenhuma organização e mostrava-me firmemente convencido do fato de os meus trabalhos teóricos serem mais úteis à classe operária do que uma colaboração com organizações já sem razão de ser no continente. Depois disso, na Neue Zeit londrina de Scherzer, foi, por várias vezes, violentamente atacado, embora sem me nomearem, mas de maneira a ninguém poder enganar-se quanto à pessoa visada, e tudo por causa dessa “inatividade”…
Por conseguinte, desde 1852, não conheço nada do que seja um “partido’, no sentido da tua carta. Se tu és poeta, eu sou crítico e, na verdade, estava farto das experiências vividas de 1849 a 1852. A “Liga”, como a “Sociedade das Épocas”, de Paris, e como muitas outras, não passou de um episódio na história do partido que nasce espontaneamente do solo da sociedade moderna.
… O “sistem of mockery and contempt” (sistema do escárnio e do desprezo), como Louis Simon o designou, em 1851, na Tribune, foi a única ação que continuei depois de 1852, contra o “bluff” democrático da emigração e o jogo da revolução. O teu poema contra Kinkel e as cartas que me escreveste na mesma altura demonstram como estavas perfeitamente de acordo comigo.
De resto, isso nada tem a ver com os processos em tribunal.
Tellering, Bangya e Fleury nunca pertenceram à Liga.
As tempestades, sem dúvida, levantam lama, nenhum período revolucionário cheira a água de rosas, em certos momentos apanha-se toda a espécie de dejetos. Aut, aut (Adiante!). De resto, quando se pensa nos gigantescos esforços dirigidos contra nós por todo o mundo oficial que, para nos perder, não se contentou em aflorar o código penal, mas nele chafurdou profundamente; quando se pensa nas calúnias divulgadas pela “democracia da imbecilidade”, que nunca pôde perdoar ao nosso partido a superioridade de inteligência e caráter em relação a ela; quando se conhece a história contemporânea de todos os outros partidos e quando, por último, nos interrogamos sobre aquilo de que, realmente, se poderia acusar o partido em bloco (e não as infâmias de um Vogt ou de um Tellering, que podem ser rebatidas nos tribunais) teremos de chegar à conclusão de que o partido, neste século XIX, se distingue brilhantemente pela sua decência e dignidade.
É possível evitar a lama no mundo e nos negócios da burguesia? A lama tem é aí o seu lugar de eleição.
… A meu ver, a infâmia honesta ou a honestidade infame da moral solvente (e ainda, como o demonstra cada crise comercial, com reservas muito equívocas) em nada é superior à infâmia abjeta que nem as comunidades cristãs primitivas, nem o Clube dos Jacobinos, nem a nossa “Liga” defunta conseguiram eliminar do seu seio. Só quando se vive no meio burguês é que se costuma perder a noção da infâmia respeitável ou da infame respeitabilidade…
Manifestei sem reservas a minha opinião e espero ver-te aderir a ela no essencial. Tentei, por outro lado, dissipar o equívoco quanto ao “partido”, como se esta palavra significasse para mim uma “Liga” desaparecida há oito anos ou uma redação de jornal dissolvido há doze. Por partido eu entendia o grande sentido histórico que a palavra contém.
Marx: Carta a Freiligrath, de 29 de Fevereiro de 1860. Mehring: “Correspondência entre Freiligrath e Marx”, pp. 42-46, Stuttgart, 1912.O presente texto foi retirado da coletânea Sobre Literatura e Arte (Editorial Estampa).
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*A presente publicação foi retirada do portal Critica Desapiedada.




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