O pathos moderno em “Pai contra mãe”, de Machado de Assis - Ana Cotrim
- rodrigovieiraferre
- 12 de fev.
- 31 min de leitura
Atualizado: 2 de abr.

Apresentação
Rodrigo Vieira Ferreira (Barravento)
Em consonância temática com a crônica de Roberto Arlt recentemente publicada pela Revista Barravento - a escravidão no Brasil -, Machado de Assis publica no ano de 1906 o conto Pai contra mãe, obra que trata dos impasses vividos por Cândido Neves, homem branco, pobre, pai e caçador de escravos e das querelas vivenciadas por Arminda, mulher negra, grávida e escrava fugida. E é particularmente sobre esse conto, publicado originalmente no volume de contos Relíquias da casa velha, que a professora Ana Cotrim (UnB) se debruça em seu artigo O pathos moderno em “Pai contra mãe”, de Machado de Assis, agora publicado pela Barravento[1].
Tendo já publicado outros trabalhos a partir da análise do conto Pai contra mãe, Ana Cotrim visa, no texto que se segue, analisar particularmente a presença do pathos neste conto de Machado de Assis, categoria que diz respeito, nas palavras da autora, a “uma força que se manifesta ao mesmo tempo no movimento social e no coração ou alma individual, pertence simultaneamente ao humano como gênero ou forma social e como indivíduo”. Em outros termos, trata-se da figuração de forças sociais em disputa em determinado momento histórico nos destinos individuais dos personagens artisticamente criados.
Isto posto, alicerçada nas elaborações de György Lukács acerca do realismo na literatura[2], a autora nos apresenta como os personagens do conto machadiano - Cândido e Arminda - encarnam em seus destinos individuais forças sociais em conflito no Brasil escravocrata, donde, naquelas circunstâncias sócio-históricas, prevalece aquela força social encarnada por Cândido Neves: a naturalização e a legitimidade social da escravidão, então em voga, a tortura e a repressão brutal sofridas pelas pessoas escravizadas, em suma, prevalece a desumanização de Arminda - e, portanto, a desumanização de toda a população escravizada - frente a sua desesperada e impossibilitada tentativa de se fazer humana.
Dessa maneira, o artigo em tela, que de imediato se insere no eixo temático Ideologia, Arte e Cultura do site da Barravento, cumpre dupla tarefa: apresenta as elaborações próprias da autora a partir da análise rigorosa do texto de Machado e, ao fazê-lo, exprime e advoga pela relevância deste conto machadiano. Assim sendo, até buscaríamos convencer o leitor a travar contato com o conto Pai contra mãe, porém, estamos certos de que a leitura do artigo de Ana Cotrim já o fará. Boa leitura!
[1] Agradecemos abertamente à professora Ana Cotrim pelo interesse em publicar seu artigo na Revista Barravento.
[2] Ainda a respeito da produção intelectual da autora sobre o realismo na literatura, convidamos o leitor a ouvir o episódio de podcast intitulado Especial - O Realismo Literário de György Lukács, publicado em duas partes pelo Ontocast. Ademais, na 1° parte do episódio, por volta dos 59 minutos, a autora comenta especificamente sobre o conto Pai contra mãe.
***
O PATHOS MODERNO EM “PAI CONTRA MÃE”, DE MACHADO DE ASSIS
Ana Cotrim*
I.
Nas suas formulações sobre o realismo literário, é conhecida a ênfase de György Lukács no caráter típico da obra, seguindo a célebre definição de Engels, em carta a Margareth Harkness, segundo a qual a literatura realista se constitui de “personagens típicos em situações típicas”. Em diversas ocasiões, o pensador húngaro aproxima a tipicidade ao pathos antigo. Em O romance como epopeia burguesa, a fim de definir esse termo que, como tantos outros termos gregos antigos, abrangem uma significação mais ampla e profunda do que as suas traduções modernas, Lukács recorre à acepção oferecida por Hegel, na Fenomenologia do Espírito, para quem essa palavra seria intraduzível:
Segundo os antigos, pode-se designar com a palavra pathos as potências gerais que não se manifestam apenas para si, em sua independência, mas que são igualmente vivas no coração humano e agitam a alma humana até em suas mais profundas regiões. (Hegel, apud Lukács, 2011, p. 208)
Quer dizer que o pathos significa uma força que se manifesta ao mesmo tempo no movimento social e no coração ou alma individual, pertence simultaneamente ao humano como gênero ou forma social e como indivíduo. Lukács comenta a passagem hegeliana: “Portanto, o pathos não é simplesmente idêntico à paixão: decerto, ele se exterioriza na paixão, mas é ao mesmo tempo ‘uma potência da alma, legítima em si, um conteúdo essencial da racionalidade’” (Lukács, 2011, p. 208).
Na épica e na tragédia antigas, as paixões dos personagens individuais coincidem imediatamente com forças sociais, devido à unidade do universal com o particular na vida mesma, dada pela ausência de separação e dicotomia entre público e privado. No período homérico, essa unidade é tal que, na sua figuração poética, a paixão de um personagem concentra a finalidade de todo um povo. Marx diz sobre esse período que os povos se organizavam como numa “democracia guerreira”, em que todos os homens são armados e não existe uma força capaz de obrigar o povo a agir em oposição a seus próprios interesses. Ainda havendo uma hierarquia interna, a ação dos chefes só poderia confirmar e fomentar o interesse do povo. Assim, por exemplo, na ação e no destino de Heitor se funde a luta e o destino de toda a Troia: sua morte é o fim da cidade. Na Ilíada, os acontecimentos que se seguiriam à sua morte não são desenvolvidos e, no que se refere ao destino dos troianos, a narração termina com a demanda de Príamo pelo corpo do filho morto. De fato, não é necessário que se figure a tomada, o saqueio, a fuga etc., porque a sua morte significa já o fim do povo.
Na Atenas clássica, estabelecida a nova unidade social, definida agora por critérios locais, e não mais de laços consanguíneos – como ainda prevalecia no período homérico – e as contradições que acompanham tal forma social: um princípio de oposição entre interesse público e interesse privado, advindo do desenvolvimento da propriedade privada; o trabalho escravo; a conseguinte formação de uma força separada do próprio povo, a garantir certos interesses gerais que poderiam ser ameaçados por interesses particulares; enfim, na pólis ateniense, emergem as contradições no interior de um mesmo povo que impossibilitam figurar poeticamente um único personagem que encarne a paixão de todo o povo. Contudo, na tragédia, as paixões dos personagens em conflito coincidem ainda, diretamente, com forças sociais ou valores universais em disputa. Representando conflitos vividos na cidade em decorrência da transformação mesma da forma social, um tema que aparece na tragédia é justamente a contradição entre os valores da cidade, como a justiça e o direito patriarcal, e os valores religiosos advindos do antigo direito de ordem matriarcal. A figuração desses conflitos encarnados em intensas paixões individuais traz aos espectadores uma maior consciência de sua própria conformação como povo.
Nesse rol estão Antígona e a trilogia Oresteia. Na primeira, a paixão que move a protagonista é a obrigação religiosa de realizar o ritual fúnebre para os parentes. A paixão que move seu antagonista, Creonte, então no governo de Tebas, é o direito da cidade, que proíbe o enterro de inimigos dentro dos seus muros. O destino de Antígona é mais um capítulo da maldição que acompanha a linhagem da casa real tebana, que tem em Édipo, seu pai, a figura mais famosa. Dos seus irmãos, fadados a mataram-se mutuamente, um deles, Etéocles, é considerado defensor de Tebas, enquanto o outro, Polinice, um agressor externo. O conflito se cria pela húbris ou desmedida a que Creonte leva a sua paixão, estendendo a proibição do ritual fúnebre para fora dos muros da cidade. A paixão de Antígona, diante disso, também é levada ao extremo, mas não à húbris, e sim ao desafio da autoridade – que se caracteriza na tragédia pela contraposição com a subordinação da irmã Ismene. Interessa-nos aqui a encarnação imediata de dois valores socialmente vigentes nas personagens de Antígona e Creonte, bem como o modo como esses valores movem suas almas a ponto de se conformarem como suas próprias paixões. Nessa história, o valor antigo, religioso e de matriz matriarcal, que aparece subordinado aos interesses da cidade, constitui, na figura de Antígona, o heroísmo, ao passo que o direito da cidade, encarnado em Creonte, se conforma como vilania. Isso se dá pelo modo individual como os personagens vivem suas respectivas paixões: enquanto Antígona aceita a restrição e procura fazer valer o direito religioso conforme à posição que a cidade lhe confere, enterrando Polinice fora dos muros de Tebas – e apenas se rebela quando esse direito lhe é negado –, Creonte padece da húbris e busca impor a lei da cidade para além de sua própria determinação e, por isso, de maneira contrária a ela mesma.
A Oresteia figura uma sequência de crimes que culmina com o julgamento de Orestes. Na última peça da trilogia, o julgamento significa e traz à tona precisamente o embate entre os direitos patriarcal da cidade, com seu sistema de justiça, e os valores derivados das ligações consanguíneas antes vigentes. O crime que dá início a esse conjunto de tragédias é o sacrifício de Ifigênia pelo pai, Agamenon, no contexto da guerra de Troia. A mãe de Ifigênia, Cliptemnestra, que nas tragédias encarna o vínculo consanguíneo, vinga a morte de sua filha assassinando o pai. Seus filhos mais novos, Electra e Orestes, exilados durante a infância justamente a fim de evitar sua vingança, se unem na idade adulta para vingar a morte do pai, assassinando a mãe. Com esse crime, Orestes passa a ser perseguido pelas Fúrias, deusas do matriarcado, que buscam castigá-lo, demandadas pelo espírito de Cliptemnestra. Ele se refugia no templo de Apolo, que o defende, encarnando aqui o direito citadino, patriarcal. No julgamento final, o que está em disputa é: qual é o pior crime, o assassinato do marido pela esposa ou o assassinato da mãe pelo filho? O júri composto de cidadãos não alcança solucionar o problema, chegando a um empate. O voto de Atena, a deusa sem mãe, que nasceu adulta da cabeça do pai, Zeus, deusa da cidade, desempata, absolvendo Orestes e determinando que as Fúrias se recolham e passem a ser adoradas regularmente em um templo próprio, chamando-se a partir de então as benevolentes (eumênides). Vence o direito patriarcal: o pior crime é o assassinato do marido, do rei. Todo esse caminho significa que as leis da antiga organização por vínculo consanguíneo, segundo as quais nada pode ser pior que o matricídio, persistem como direito secundário, submetido às leis próprias da cidade. As Fúrias são pacificadas e obrigadas à passividade, o que sentem como sua derrota. Ativamente, regem Atena e Apolo. Vemos no empate do júri o quanto esses valores religiosos ainda eram caros aos cidadãos e como buscavam compatibilizá-los, embora subordinadamente, às leis da nova ordem social. A Oresteia conta essa história, e traz aos espectadores uma maior clareza de sua forma social de existência.
Nos dois casos, tanto de Antígona como de Orestes, Sófocles e Ésquilo criam ações que colocam seus personagens diante de dilemas: o conjunto de situações que enfrentam conduzem-nos ao extremo, de modo que os conflitos vividos na cidade são trazidos à tona nas suas pessoas: encarnam-se nas suas paixões. Assim, não é apenas o seu grau de paixão, o extremo que se condensa em seus caracteres, mas também as situações criadas que impulsionam o afloramento desses conflitos que, de outro modo, poderiam permanecer subjacentes e mesmo ocultos na vida social. Sem a singular disputa dos irmãos por Tebas, sem a húbris de Creonte, sem o sacrifício de Ifigênia e a sequência de crimes e vinganças que acarreta, a paixão dos personagens não afloraria. Desse modo, o pathos se realiza na tragédia antes de tudo pelas ações criadas, diante das quais os personagens manifestam o seu elevado grau de paixão, e assim expressam como seus conflitos individuais os conflitos vividos pelo conjunto da sociedade.
Como indicamos anteriormente, no caso da épica e da tragédia gregas, os personagens encarnam imediatamente, no conjunto das ações criadas, ou bem o interesse de todo um povo, ou bem valores e interesses contraditórios no interior de um povo. Com o desenvolvimento moderno e a conseguinte separação entre público e privado, a literatura perde a possibilidade de fazer encarnar em seus personagens diretamente valores éticos, públicos, universais. Entretanto, de acordo com a formulação de Engels seguida por Lukács, a literatura realista continua se caracterizando por “personagens típicos em situações típicas”. Quer dizer que os artistas modernos seguem criando ações e situações diante das quais os personagens manifestam, por suas ações, seu elevado nível de paixão. Agora de maneira indireta, já que nenhum caráter coincide imediatamente com os interesses do conjunto da sociedade ou com um dos valores ou forças sociais em luta.
O pathos antigo se apoiava na ligação imediata entre o privado e o público na pólis e, ao mesmo tempo, na unidade imediata, nos personagens da epopeia e do drama antigos, do universal e do particular, do típico e do individual. Na vida moderna, esta unidade imediata é inatingível. A separação entre as funções sociais e as questões privadas condena toda poesia burguesa do “cidadão” a uma universalidade abstrata: é precisamente por causa disso que esta poesia perde seu pathos no sentido antigo da palavra. Mas este fechamento no privado e o isolamento entre os indivíduos – que, como diz Marx, é “a realização completa do materialismo da sociedade civil” – tornam-se não um fenômeno casual, mas uma lei universal; e, por isso, a busca do pathos da vida moderna só pode ter sucesso, até certo ponto, seguindo esta direção. Assim, ainda nas palavras de Marx, “quando o sol universal se põe, a borboleta procura a luz da lâmpada do particular”. (Lukács, 2011, pp. 208-209)
Na vida mesma, separa-se o universal, abstrato (a esfera do Estado e da vida pública, as “funções sociais”) das particularidades concretas, a vida material, prática (que Marx denomina, seguindo ironicamente a denominação moderna, a sociedade civil). Essa separação de universalidade e particularidades na vida mesma – e a prioridade da vida material e prática sobre a sua forma política, o Estado – é o que direciona a literatura ao material da vida privada, porque é nessa esfera que as atividades e ações realmente determinantes da vida social têm lugar. Assim, figuras que ocupam altos postos no Estado perdem paulatinamente, em especial na prosa, o protagonismo literário. Vale notar que esse é um impulso próprio da literatura, que busca criar uma ação verdadeira e, por conseguinte, se volta à esfera da vida em que ela acontece.
Segundo Lukács, a necessidade de se voltar aos materiais da vida privada acarreta uma dificuldade aos escritores, precisamente no que se refere à construção da ação. Por um lado, o pathos moderno só pode ser alcançado na vida privada; por outro, a universalidade não aparece imediatamente no conjunto das ações da vida privada, não se expressa na média social:
(...) este grande realismo na figuração do desenvolvimento social pode se encarnar na obra de arte somente quando se vai além do âmbito da realidade cotidiana "média" e o escritor atinge o pathos da vida privada (Balzac) ou "o materialismo da sociedade burguesa" (Marx). Mas este pathos só pode ser encontrado por meio de caminhos muito indiretos e complexos. (Lukács, 2011, p. 209)
A literatura realista figura destinos sociais como destinos individuais, o que a representação do estado médio não pode alcançar, mas sim as ações extremas, movidas por uma grande intensidade de paixão:
O caráter contraditório da sociedade capitalista se manifesta por toda parte e a humilhação e depravação do homem impregnam toda a vida na sociedade burguesa, tanto subjetiva quanto objetivamente; por isso, quem vive uma experiência apaixonada e profunda até o fim torna-se inevitavelmente objeto destas contradições, um rebelde (mais ou menos consciente) que se põe contra a ação despersonalizadora do automatismo da vida burguesa. (Lukács, 2011, p. 210)
Trata-se, assim, da difícil tarefa de criar uma ação verdadeira, ou seja, um conjunto de situações, relações e conflitos de tal modo extremos que conduzam os personagens a experimentar um elevado grau de paixão, e nas suas paixões e destinos figurem-se as forças sociais em conflito e o destino dos grupos sociais assim representados. O que confere, portanto, o pathos na literatura moderna, é a ação criada – uma criação que passa agora por caminhos indiretos e complexos, uma vez que trabalha o material da vida privada.
II.
Machado de Assis, como grande realista da literatura moderna, foi mais de uma vez caracterizado por contemporâneos seus como um grego. É uma infelicidade, embora nenhuma casualidade, que essa maneira de o designar apareça em contextos de racismo ou preconceito colonial. Segundo Brandão (2001, p. 351), “Graça Aranha, em discurso na Academia Brasileira de Letras, chamou-o ‘um helênico no meio dos bárbaros que deslumbras’”. Além dele, também Antônio Salles, “por ocasião da morte de Machado de Assis, em setembro de 1908, escreveu que se tratava de uma ‘alma grega, exilada em nossos lares’” (Brandão, 2001, p. 351). Vemos que essas formulações opõem o caráter grego que atribuem a Machado ao comum do povo brasileiro, ele está exilado, entre bárbaros. Em sentido próximo, mas acrescido da determinação racial, José Veríssimo escrevia no Jornal do Comércio, por ocasião do 30º dia do falecimento de Machado:
São tanto mais de admirar e até de maravilhar essas qualidades de medida, de tato, de bom gosto, em suma de elegância, na vida e na arte de Machado de Assis, que elas são justamente as mais alheias ao nosso gênio nacional e, muito particularmente, aos mestiços como ele. (...). Mulato, foi de fato um grego da melhor época, pelo seu profundo senso de beleza, pela harmonia de sua vida, pela euritmia da sua obra. (Apud Azevedo, 2008)
Aqui a alma helênica de Machado se dissocia não só do “gênio nacional”, mas “muito particularmente” dos “mestiços como ele”, ou seja, da negritude. Em carta a J. Veríssimo, Joaquim Nabuco lhe dirige a seguinte crítica:
Eu não teria chamado o Machado mulato e penso que nada lhe doeria mais do que essa síntese (...). O Machado para mim era um branco, e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho, isso em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só vi nele o grego. (Apud Azevedo, 2008)
O racismo do autor da carta, sabemos, não lhe é exclusivo, bastando recordar o fato conhecido de Machado ter nascido pardo e morrido branco.
Ora, se olharmos para a sua obra, podemos observar que nosso autor poderia ser descrito como tão grego quanto negro, e mais: não apenas esses traços não são contraditórios, como se potencializam mutuamente. Quero dizer que o seu olhar arguto para a realidade da escravidão, para a peculiar desumanização que permeia as relações sociais no interior da forma social escravocrata é o que lhe confere a profundidade e universalidade com que apreende e figura a sociedade brasileira. Sua capacidade de encontrar e representar a essência humana das pessoas que são desumanizadas na sociedade fundada na escravidão, bem como o núcleo ativo da desumanização lhe permite alcançar o pathos moderno.
É esta afirmação que pretendo demonstrar pela análise do conto “Pai contra mãe” (Relíquias da Casa Velha, 1906)[1]: busco evidenciar a sua veia negra, ou seja, o viés que o conduz a desenhar a peculiar fisionomia humana da personagem escravizada, Arminda, explicitando o núcleo social de sua desumanização; bem como a unidade do destino desta personagem ao destino de toda a sua classe, o seu pathos, pelo qual essa veia negra faz-se também grega – não, portanto, no sentido apenas da elegância e da medida, mas no sentido de alcançar a unidade do individual ou particular com o universal. A marca do artista genial, que reside na inventividade e na criação de uma ação verdadeira a partir dos materiais da vida privada, tem nesse conto uma amostra significativa. Centramos nosso exame na figura de Arminda, por ser uma personagem que, a despeito do pouco desenvolvimento que encontramos no que tange ao seu caráter e personalidade, concentra em si, pelo movimento da ação, das interrelações com os demais personagens e pela peculiaridade do narrador, o pathos e o destinos de toda a classe.
Arminda apresenta de imediato uma peculiaridade, a de ser pouquíssimo desenvolvida em termos de construção da sua subjetividade e história pessoal. Na verdade, ela aparece como figura viva apenas ao final do conto e, contudo, é a “mãe” do título. O que sabemos dela e de sua história pode ser sintetizado como se segue: Arminda é uma mulher mestiça escravizada na cidade do Rio de Janeiro, que está grávida e foge da escravidão, permanecendo escondida na cidade, e, alguns meses depois da fuga, é capturada e devolvida ao seu proprietário. A violência desse aprisionamento e o seu pavor de retornar à escravidão a levam a abortar. Sua entrada no conto se dá no momento da captura, sendo referida antes como objeto de um anúncio de recompensa. Dos fatos de sua vida, anteriores e posteriores ao episódio da captura e do aborto, sabemos muito pouco: que fugira meses antes e, por ela mesma, pela breve narração da sua súplica ao sujeito que a prende, sabemos que o seu dono é brutal, usa de violência física, de tal modo que grávida não conseguiria suportar. Nada mais. Na verdade, ela aparece como elemento da história de Cândido Neves, branco (livre) e pobre, que tem o ofício de pegar escravos fugidos, e é o “pai” do título. Toda a narrativa é centrada na história dele, e, no entanto, ela aparece no título com igual relevância e o sobrepuja na impressão que o conto causa a nós, leitores.
Podemos dizer que ela se constitui como uma verdadeira “pessoa moral”[2] – para usar o termo com que Machado define o caráter concreto e ativo (definidor das suas ações) de um personagem – cujo pathos é retratado ao modo de uma pintura, que lança luz apenas a um momento de toda ação, mas a um momento que sintetiza passado e futuro, o significado do todo. A paixão que move Arminda, pretendemos mostrar, é o amor de mãe, a maternidade, que constitui o motor de sua ação e a tragédia de seu destino: ela foge para livrar a si e seu filho da escravidão, e é impedida de ser mãe pela mesma instituição da escravidão. Embora o significado da vida de Arminda nos seja dado como por um único facho de luz, toda a construção da narrativa, a ação centrada em Cândido Neves, sua consciência, as demais personagens e o peculiar papel do narrador concorrem para determinar o significado da vida de Arminda.
O conto começa com uma espécie de prólogo do narrador em terceira pessoa, que está num momento posterior à abolição, acerca de instrumentos e práticas que deixaram de existir com o fim da escravidão: “A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais” (Machado de Assis, 2008, p. 2). O prólogo consiste numa apresentação de “alguns aparelhos” e de um ofício que fizeram parte da instituição da escravidão, e o narrador comenta que os aparelhos são mencionados apenas porque se vinculam a este ofício, o ofício de pegar escravos fugidos, que, saberemos, será assumido pelo protagonista Cândido Neves. O narrador refere três desses aparelhos: o ferro ao pescoço, o ferro ao pé e a máscara de folha de flandres. Descreve esta última:
A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. (Machado de Assis, 2008, p. 2)
Ao mesmo tempo em que considera que esse aparelho é grotesco, cruel e nos traz concretamente a sua dimensão de instrumento de tortura, pontua a sua efetividade na manutenção da “ordem social e humana”, bem como seu papel na preservação de duas virtudes entre os escravos: a sobriedade e a honestidade. Ao indicar que a honestidade entre escravos é não roubar do proprietário, o narrador pressupõe a honestidade da própria escravidão, a “ordem humana”. O final da descrição, mostra um peculiar cinismo: “Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.” (Machado de Assis, 2008, p. 2, grifo meu). A passagem transmite um desdém do narrador pelo tema, como se se tratasse meramente de máscaras, e não de todo o conjunto de relações de violência que compõe a ordem escravista, e que este objeto condensa. Abordagem semelhante se verifica na sua descrição do ferro ao pescoço:
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado. (Machado de Assis, 2008, p. 2)
O ferro ao pescoço aparece aqui como um objeto cuja finalidade é garantir a ordem, a propriedade. Assim como a máscara, é hediondo, mas serve a um bem. Quando diz que era “menos castigo que sinal”, embora pesasse, nos faz pensar se uma pessoa que fosse efetivamente sujeita a tal aparelho diria o mesmo.
Na passagem para a narrativa propriamente dita, o narrador se volta à questão da fuga dos escravos, que já vinha preparada pela apresentação do ferro ao pescoço:
Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. (Machado de Assis, 2008, p. 2, grifos meus)
O tom entre irônico e cínico do narrador aqui se evidencia nos termos grifados, que moderam, em alguma medida, a violência a que estavam submetidos os escravos, contrariando a própria apresentação dos aparelhos de tortura com que o conto se inicia. A afirmação de que “grande parte era apenas repreendida” porque se tratava de propriedade, que custou dinheiro, oculta uma verdade com outra: de fato, os escravos se caracterizam como propriedades, e com efeito, não era sempre interesse do proprietário matá-los ou mutilá-los a ponto de não servirem mais. Contudo, considerar que isso mitigava a sanha violenta dos proprietários é antes de tudo falso e, ademais, desconsidera a violência do próprio fato da escravidão. O modo engraçado, irônico, com que enuncia, “dinheiro também dói”, parece ser um elemento de sedução do leitor, como se falasse com liberdade e franqueza, sem comprometimento com este ou aquele interesse, sem receio de ofender, sem necessidade de ocultar. Mas toda sua forma de abordar explicita os horrores da escravidão ao mesmo tempo em que busca naturalizá-la, ao menos para o passado: tratava-se da “ordem humana”.
Esse prólogo se conclui com a apresentação do ofício – a que se ligam os tais aparelhos – de pegar escravos fugidos. O narrador pontua que fugiam muito, às vezes ainda no próprio comércio, antes de serem vendidos – o que denota, contra a sua própria teoria, que não é preciso “apanhar pancada” para desejar fugir. Os proprietários lançavam anúncios em jornais oferecendo recompensas a quem prendesse e devolvesse o escravo fugido. Esses anúncios traziam nome, idade, traços físicos e objetos ou roupas que estivessem portando; às vezes ofereciam uma cifra determinada, às vezes apenas a promessa de bom pagamento. Além disso, “Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse” (Machado de Assis, 2008, pp. 2-3). (Vale recordar que a uma pessoa escravizada era proibido usar sapatos...).
O narrador passa então aos sujeitos que se dispunham a assumir tal ofício:
Ora, pegar escravos fugidos era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem. (Machado de Assis, 2008, p. 3)
Para o narrador, o ofício não é nobre em sua prática, isto é, não se pode dizer que seja elevado o ato mesmo de caçar, prender e arrastar de volta ao dono um escravo que fugira; entretanto, seguindo raciocínio análogo àqueles sobre máscara e ferro, seria nobre em sua finalidade: é um instrumento de manutenção da lei e da propriedade, um meio de pôr ordem à desordem, por isso carrega a elevação das “ações reivindicadoras”.
Por suas asserções, podemos atribuir a esse narrador alguns traços: é um homem branco, condescendente com a instituição da escravidão ao menos para o passado, considerando-a como “ordem humana”, conforme a lei e a garantia da propriedade; deve pertencer à classe proprietária ou assimilar-se ideologicamente a ela; é de se supor, por falar com tal naturalização de uma instituição que já teria sido superada em seu tempo, que comungue com o processo da abolição conservadora[3]. Parece tratar-se, portanto, de um tipo que se aproxima dos narradores desconfiáveis de Machado, muito bem caracterizados quando em primeira pessoa, mas cujos traços podem ser percebidos também em diversos narradores em terceira pessoa, pelos seus comentários, diálogos com o leitor, asserções sobre os personagens, suas ênfases e tons. Trata-se de um tipo de narrador cuja concepção e posição estão sob a mira crítica do autor, crítica que se constrói pela ação narrada.
No caso presente, contudo, o narrador não é o foco principal: difere em relevância para a narrativa daqueles em primeira pessoa, como Brás Cubas, Bento Santiago e Matias Aires, que protagonizam as histórias. Qual seria, então, o propósito de figurar esse narrador, com essa espécie de apresentação do contexto social por meio de objetos particularmente grotescos? Considero que ele serve a duas finalidades na narrativa: primeiramente, trazer à luz o horror da escravidão, como instituição que tem na tortura um modus operandi, o meio principal de sua própria manutenção. A escravidão não sobrevive sem inspirar o terror do flagelo. A relevância disso para a narrativa é dar toda a dimensão daquilo de que os escravos fogem, particularmente, do que Arminda fugiu. Quando somos colocados na presença da Arminda grávida, já temos o espírito povoado desses horrores, sabemos precisamente do que ela pretende livrar a si e a seu filho ainda não-nascido.
Em segundo lugar, pelo viés do narrador, que expõe com clareza, mas naturaliza a escravidão como uma ordem humana e justifica a tortura como meio de manter tal ordem, somos preparados para compreender a consciência de Cândido Neves não como exceção, mas sim como um modo da consciência dominante. Sigamos a história deste, para então voltarmos a esse tema.
Como indicamos, Cândido Neves é um homem branco, livre, pobre, sem estudos; de sua personalidade, a primeira característica que nos é apresentada é chamada pelo protagonista e pelo narrador de caiporismo:
Cândido Neves – em família, Candinho –, é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não aguentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. (Machado de Assis, 2008, p. 3)
Caiporismo significa azar, má-sorte, ou seja, dar-se mal por motivos casuais, ou mesmo feitiços que possam ser lançados contra a pessoa, em suma, motivos externos à própria ação. Entretanto, a narração contesta essa ideia, contando as várias profissões que procurou abraçar, e das quais desistiu rapidamente por moto próprio, alegando a si mesmo diversas razões. O narrador oferece duas: a primeira, tipógrafo, demorava a aprender e pagava mal, ser caixeiro num armarinho lhe feria o orgulho pela obrigação de atender e servir. As demais são apenas mencionadas: “fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos” (Machado de Assis, 2008, p. 3). Claramente, Cândido não se dava à atenção detida por longo tempo, a estar parado, atender, servir, a obrigação constante, a monotonia desses empregos. Não se trata aqui de moralizar o personagem por sua antipatia ao trabalho assalariado; ninguém seria obrigado a gostar. Trata-se de observar sobre isso duas coisas: primeiro, que ele atribui seu insucesso a algo fora de si, ao caiporismo; segundo, que, diante de sua pobreza, a todas essas profissões ele preferiu a de “pegar escravos fugidos”:
Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. (Machado de Assis, 2008, p. 5, grifo meu)
Esse ofício era conforme as qualidades de Cândido Neves, forte, ágil, com boa memória e de “olho vivo”, e lhe trouxe um “encanto novo”. Observamos, desde já, que não há contradição em seu espírito, não há luta interna quanto a assumir esse ofício. Trata-se, afinal, de um ofício socialmente aceito e até bem-visto, como atesta o discurso do narrador no prólogo. Além disso, quando da captura de Arminda, o narrador comenta que “Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia” (Machado de Assis, 2008, p. 8, grifo nosso).
Cândido Neves, tendo adotado essa ocupação, apaixona-se e se casa com Clara, uma moça pobre e órfã que vivia com sua Tia Mônica e com ela costurava para fora. Casados, passaram a viver os três juntos. A situação era de uma pobreza remediada, os ganhos não eram regulares, mas quando vinham eram bons e compensavam o período que passava sem ganhar.
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. (Machado de Assis, 2008, p. 4)
Ambos queriam um filho, mesmo sabendo das dificuldades da vida, e contra os conselhos da Tia. Depois de algum tempo em que o filho “não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade”, Clara engravida, para grande felicidade do casal.
Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. (Machado de Assis, 2008, p. 4)
Machado constrói nessas e em outras passagens do conto a felicidade que trazem os sentimentos de maternidade e paternidade. Mesmo com toda a dificuldade que passavam, não abriam mão do filho, que significava uma grande realização.
O conflito começa a ganhar corpo quando os ganhos de Cândido Neves diminuem devido ao aumento da concorrência no interior desse ofício, que o narrador atribui ao desemprego. A pobreza faz com que emerja na casa, pela voz da Tia Mônica, a ideia de darem o filho para a Roda dos Enjeitados. Levado pelo desespero, Cândido revisa anúncios velhos e se lança em tentativas frustradas, como quando capturou um “preto livre” e tomou uma surra dos seus parentes.
Contudo, chegam à situação em que são despejados da casa pobre em que moravam. Tia Mônica consegue para os três um quarto de favor na casa de uma senhora rica e dois dias depois o filho nasce. Diante da situação extrema, ela convence o casal a entregá-lo à Roda. E aqui tomamos o primeiro contato com nossa heroína:
Naquela [noite] reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata. (Machado de Assis, 2008, p. 7)
Chama a atenção que a recompensa pela sua captura seja alta. É de notar também que Cândido atribua a dificuldade de encontrá-la a ter sido recolhida por algum amante, bem como o seu comportamento de dono. Sem sucesso, na noite seguinte, Cândido sai com seu filho em direção à Roda, abraçando-o, beijando-o e pretendendo demorar-se ao máximo, tal era o seu conflito interior. Nesse caminho, que procura encompridar entrando por ruas paralelas, dá-se seu encontro e o nosso com Arminda. Ao vê-la, sentiu uma grande comoção, pediu ao farmacêutico que guardasse o filho e foi atrás dela.
– Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.
– Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço! – Siga! repetiu Cândido Neves. – Me solte! – Não quero demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. (...) Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoutes, – cousa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoutes.
– Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves. (Machado de Assis, 2008, pp. 7-8, grifos meus)
Nota-se o apelo de Arminda à condição paterna de Cândido Neves. Arminda não tem nenhuma ciência do drama de Cândido, que estamos seguindo, e este não lhe responde; mas esse apelo indica a condição que está dada a nós, leitores: ambos vivem um mesmo drama; ambos querem salvar o próprio filho, Cândido, da Roda e da miséria; Arminda, da escravidão.
Seguimos detalhadamente a pobreza e a perspectiva de entregar o filho, vividas por Cândido; mesmo que não simpatizemos com suas escolhas ou com aspectos do seu caráter, há uma construção pela qual sua finalidade é justificada, legítima. O sentimento da paternidade, de um direito natural de criar o próprio filho, conviver e viver com ele, é um fundamento da legitimidade de seu objetivo.
Já os açoites e maldades do dono de Arminda, não conhecemos diretamente. Nesse contexto é que considero muito significativo o papel do prólogo: dá-nos a conhecer aquela peculiaridade da instituição da escravidão, a tortura. Cândido a culpa pela situação em que se encontra, arrastada grávida pelas ruas como um animal, e pelos açoites que “com certeza, ele lhe mandaria dar” – diz o narrador, em discurso indireto livre, sem comentar. Mas nós sabemos do que ela foge. As suas súplicas, reiterando os açoites, a condição de gestante que não impediria ou suavizaria nada, a maldade do dono, se somam à nossa imaginação habitada por máscaras e ferros. Mais ainda, sabemos do que ela quer livrar o filho. Alguém culparia uma pessoa que agisse, seja lá como for, para salvar o filho da tortura? Não a julgamos como Cândido, porque justificamos a sua fuga. Assim, para nós, leitores, a finalidade de Arminda compete com a de Cândido em teor e legitimidade. No interior do conflito, em que um dos lados vai perder o filho, os dois parecem se justificar. Essa igualdade entre eles se expressa também no título, “pai contra mãe”.
Contudo, na sociedade escravista, evidentemente, não existe igual legitimidade. Isso fica claro, novamente, pela afirmação do narrador de que Arminda percebeu que ninguém a viria salvar. Ao contrário. Machado lança luz para a igual legitimidade, a partir do núcleo humano dos sentimentos de paternidade e maternidade, e para o fato de que a ordem social escravista prevalece na vida, na lei seguida por todos os que lhe recusam socorro e na consciência naturalizante do narrador e de Cândido Neves. Nesta ordem social, o conflito só pode ter um vencedor, e esse vencedor só pode ser o elo mais forte, neste caso – simbolicamente – o “pai”, branco livre e pobre. É claro que Arminda é arrastada e devolvida ao dono, que paga a recompensa a Cândido:
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. (Machado de Assis, 2008, p. 8)
No campo do simbólico, diversos são os elementos que se poderiam aventar. A hierarquia patriarcal expressa na vitória do “pai”; a brincadeira com os nomes, Cândido, Neves, Clara, que denotam o branco; a oposição entre a classe dos homens livres e pobres e a classe escravizada. Contudo, considero mais profícuo perseguir a ideia de Arminda como núcleo humano capaz de desvendar todas as demais relações que compõem a sociedade escravista em seu caráter grotesco, e tendo como motor ou pathos desse núcleo humano a maternidade. É estar grávida, ser mãe, no interior da construção narrativa do drama de Cândido que traz à luz a sua humanidade. A condição de escrava é um obstáculo à realização da maternidade, uma relação que demanda a condição de sujeito. Na disputa do pai contra a mãe, aquele segue pai, esta termina não-mãe.
Não se trata de eternizar a maternidade como condição de humanidade da mulher. Esta relação está em foco nesse conto, como poderiam estar outras; ela é uma das formas de relação que, historicamente, são negadas pela condição de escravidão. O interessante é que Machado elege aqui este vínculo humano para trazer à tona, por um lado, toda a inumanidade da escravidão e das figuras, proprietárias ou não, que a impõem; e, por outro, toda a humanidade da figura de Arminda, que se nega à subserviência e exige sua vida própria: exige ser mãe. O destino de Arminda carrega um elemento trágico, porque a sua condição nega a sua natureza própria, humana.
Já Cândido, seu antípoda, mostra sua desumanidade pela ausência de conflito interno, de toda disputa em seus sentimentos – o que é preparado na narrativa, a começar pela opção do ofício. Embora tenha assistido a “todo esse espetáculo”, sua cabeça estava no filho que deixara com o farmacêutico. Em posse do dinheiro, ele voltou à farmácia, tomou o filho e levou-o de volta para casa, onde Tia Mônica o aceitou, já que trazia também o dinheiro e, tal como ele, condenou Arminda por fugir e abortar.
Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
– Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração. (Machado de Assis, 2008, p. 9)
O desfecho magistral do conto parece retomar a “ordem social e humana” do narrador na apresentação inicial, em que escravos fogem, sujeitos pobres e caiporas os pegam por recompensa e lojas exibem máscaras e ferros nas suas portas; uma ordem em que “nem todas as crianças vingam”. Cândido não pensou nessas palavras, sua atenção estava toda no filho, “não se lhe dava do aborto”. Essas palavras não foram pensadas, e sim batidas pelo seu coração. Sente-se legitimado, recompensado e realizado. Tudo está bem e conforme à ordem. Como Lukács nos mostra, nas obras de arte o desfecho lança luz a todo o enredo, conferindo-lhe significado. Aqui, terminamos com o sentimento de Cândido de legitimação e naturalização de um ato que contradiz o seu sentimento mais profundo, o amor parental.
Observamos que o “prólogo” não é um pano de fundo social, sobre o qual passeiam personagens como estados de ânimo. Ali estão contidos elementos sociais concretos que movem a vida e o destino dos personagens, bem como elementos da naturalização da escravidão na consciência do narrador, que o coração de Cândido espelha. Notamos também que a ação se constrói para alcançar uma situação extrema, em que cada um dos dois personagens vive a sua paixão no mais alto grau, e assim expõem, como traços de seus próprios caracteres e de suas vidas individuais, os traços próprios das classes que representam. O destino de Arminda desvela a ausência da condição de sujeito, e portanto da maternidade, que a escravidão significa; o destino de Cândido Neves expõe, por um lado, a dificuldade da classe de pessoas livres e pobres sobreviverem na sociedade escravista, e, por outro, a sensibilidade e a consciência justificadoras da escravidão, no interior da qual, paradoxalmente, têm vantagens e privilégios.
Outro aspecto essencial do pathos que esse conto alcança é o modo como ele traz à tona o vínculo determinativo entre as relações sociais objetivas e as subjetividades dos personagens. Cândido é forjado na sua pobreza e no seu privilégio com relação à classe escravizada. O sentido humano de seu caráter, que se mostra no amor ao filho, é rompido quando, na situação criada da contraposição com Arminda, tem a possibilidade objetiva e a tranquilidade subjetiva, advinda da aceitação social das suas ações “reivindicadoras”, de negar a ela aquilo mesmo pelo que luta para si. Arminda tem muito menos possibilidades objetivas: ou bem aceita a condição de escravidão para si e seu filho, e assim a sua desumanização; ou se rebela contra ela, e assim afirma sua humanidade. Não há, para ela, nenhuma terceira via. O seu heroísmo reside no fato de que, pela ação de fugir, reivindica a humanidade a si e ao filho. Mas esse mesmo heroísmo existe apenas na sociedade que estreitou ao mínimo ou a nada, pela escravidão, o escopo de vida e de humanidade de uma grande parcela de sua população.
Machado desvenda assim o significado vivo da escravidão, tanto a humanidade dos escravizados, impedida de se realizar, como o modo como ela molda os caracteres das outras parcelas da sociedade, explicitando o nível de desumanização que se imprime no caráter da classe dominante e seus parasitas no processo de impor a sua dominação. É com esse desvendamento que Machado alcança a unidade do destino individual e do destino universal, dos indivíduos e das classes que representam, ou seja, a tipicidade ou pathos moderno. Mas, como ficou dito, essa conexão é trazida pela ação, a peculiar colisão imaginada pelo escritor. Considero, assim, possível afirmar que a pena de Machado é grega porque negra, e vice-versa, ou a pena de “um fluminense que quer ser lacedemônio” (MACHADO DE ASSIS, 2011, p. 36), para usar, em outro contexto, as suas próprias palavras.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEVEDO, Sílvia Maria. “O ano da morte de Machado de Assis”. Jornal UNESP, nº 232, Ano XXI, abril de 2008, Suplemento. Disponível em:
https://www.unesp.br/aci/jornal/232/supled.php#:~:text=No%20caso%20da%20morte%20de,29%20de%20setembro%20de%201908. Acesso em 13/08/2020.
BRANDÃO, Jacynto Lins. “A Grécia de machado de Assis”. In MENDES, Eliana Amarante de Mendonça; OLIVEIRA, Paulo Motta; BENN-IBLER, Veronika (Orgs). O novo milênio: interfaces lingüísticas e literárias. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2001.
LUKÁCS, G. Arte e sociedade – Escritos estéticos de 1932-1967. Organização, introdução e tradução de Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2011.
MACHADO DE ASSIS. “Pai contra mãe” [Relíquias da Casa Velha, 1906]. Ministério da Educação e Cultura, Homenagem aos cem anos do falecimento de Machado de Assis. Obras Completas, São Paulo, 2008. Disponível em http://machado.mec.gov.br/, acesso em 10 de abril de 2019. Textos extraídos de Obra Completa de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
_______________. História de quinze dias, história de trinta dias. Organização de Sílvia Maria Azevedo. São Paulo, Editora UNESP, 2011.
_______________. “Eça de Queiroz: O primo Basílio” [O Cruzeiro, 1878]. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994.
Notas: * Ana Cotrim é professora da Universidade de Brasília, possui graduação, mestrado e doutorado em filosofia pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado em literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais. [1] As páginas deste texto referem-se ao PDF da edição digital referida bibliografia (2008).
[2] Em “Eça de Queirós: O primo Basílio”.
[3] O processo pelo qual a classe proprietária foi indenizada pela libertação dos escravos, manteve a propriedade das terras e o poder de impor a permanência dos recém-libertos em situação análoga à escravidão, ou a sua marginalização nas cidades, por meio do não-assalariamento deles. Esse processo pode levar a incluir-se, no discurso dessa classe, palavras contrárias à escravidão, defensoras da liberdade; mas, como vemos nas asserções do narrador, não deixa de naturalizar a existência pregressa da escravidão (o que é consistente com a intenção da classe de estendê-la na prática o mais possível). Sobre o processo da abolição conservadora e a posição da elite proprietária, ver, de Machado de Assis, a crônica de 19 de maio de 1888 da Gazeta de Notícias, Bons dias! (Pancrácio) e a crônica de 27 de setembro de 1887 da Gazeta de Holanda (Statu liber).




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