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Festa da abolição da escravatura - Roberto Arlt

  • Foto do escritor: Murphy Stay
    Murphy Stay
  • 9 de dez. de 2024
  • 5 min de leitura

Atualizado: 15 de jan.

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Tradução: João Paulo Veloso Matos

Roberto Arlt foi um escritor argentino vinculado às vanguardas hispano-americanas. Filho de imigrantes pobres, cresceu em uma Buenos Aires marcada pela intensa imigração e pela transformação urbana. Considerado um precursor do existencialismo e figura importante do teatro argentino [1], Arlt publicou romances, novelas, contos, crônicas e peças de teatro. Suas obras mais conhecidas, Os Sete Loucos (Los Siete Locos) e O Brinquedo Raivoso (El juguete rabioso), se destacam pelo uso do grotesco e pela abordagem de temas como humilhação, marginalidade, infâmia, traição e a vida nas cidades modernas e na sociedade burguesa


As Aguafuertes Cariocas são uma série de crônicas que Arlt publicou em jornais argentinos, nas quais ele tece uma visão crítica e irônica da sociedade e do cotidiano urbano brasileiro. Em "Festa da Abolição da Escravatura" (Fiesta de la abolición de la esclavitud), Arlt, com sua perspectiva de estrangeiro, explora os contrastes sociais no Brasil e a permanência das marcas do passado escravista no Rio de Janeiro da década de 1930.


Essa crônica, escrita de um ponto de vista estrangeiro, evidencia, por meio do contraste, como a história da escravidão no Brasil é banalizada. Numa perspectiva histórica, a abolição da escravatura ocorreu "ontem". O país viveu a maior parte de sua história desde a colonização sob um regime escravocrata, que durou cerca de 400 anos. Na década de 1930, a história do trabalho livre ainda era algo recente, e o Brasil permanecia permeado por relações sociais herdadas do escravismo, assim como ainda ocorre nos dias de hoje. Isso tudo está profundamente enraizado na formação da sociedade brasileira. A violência extrema era vista apenas como forma de manter a ordem, e os matizes, como diz a crônica, nos fazem ver como os maltratos da dominação do escravizado eram o mínimo a se esperar do trabalho de um capataz. Está tudo tão entranhado nessa sociedade, que o anormal, o que é considerado castigo, é agir além da frieza do ofício de capataz. Com um estilo de escrita seco, Arlt retrata uma sociedade que não resolveu os problemas gerados pelo escravismo, se recusa a criticá-los e naturaliza tais problemas através da indiferença ou até mesmo da justificativa reacionária.


***

(Quarta-feira, 13 de maio de 1930)

 

Almocei na companhia do senhor catalão a quem não nomearei por razões que vocês podem imaginar. Me disse: 

— O 13 de maio é festa nacional... 

— Ah! É mesmo? E continuei colocando azeite na salada. 

— Festa da abolição da escravatura. 

— Entendi. 

E como o assunto não me interessava muito, agora eu dedicava a minha atenção a medir a quantidade de vinagre que punha nas folhas. 

— Semana que vem, faz quarenta e dois anos que a escravidão foi abolida. 

Dei um pulo tão grande da cadeira, que metade da garrafa de vinagre foi parar na salada. 

— Como é? — respondi espantado. 

— Sim, quarenta e dois anos, sob a regência de Dona  Isabel de Bragança, aconselhada por Benjamin Constant. Dona Isabel era filha de Dom Pedro II. 

—Quarenta e dois anos? Não é possível! 

— 13 de maio de 1888 menos 1930: 42 anos...

— Ou seja... 

— Que qualquer negro de cinquenta anos que você encontrar hoje pelas ruas foi escravo até os 8 anos de idade; o negro de 60 anos, escravo até os 18. 

— Então: essas mulheres negras velhas? 

— Foram escravas... 

— Mas não é possível! Você deve estar equivocado. Não seria o ano de 1788... Veja: eu acho que está equivocado. Não é possível. 

— Rapaz, se não acredita em mim, olha por aí. 

 

Na associação.

 

Assim que terminei de almoçar, me dirigi à associação e perguntei no balcão aos meninos: 

— Qual é o feriado de 13 de maio? 

— Abolição da escravidão. 

— Quando isso aconteceu? 

— Em 13 de maio de 1888. 

— 1888... 1888... 1930... menos 1888... não tem discussão! 42 anos. Mas não é possível... 1888... 

— Amigo — disse alguém com toda naturalidade — meu pai foi capataz de escravos. 

Eu fiquei gelado e pálido. 

— Se precisa de fatos... 

Olho para esse homem como olharia para o filho de um carrasco da prisão de Sing-Sing; logo, me controlando rapidamente, pego em seu braço e digo: 

— Venha aqui: preciso falar com você. Por qual preço se vendia um escravo? 

— Vejamos... variavam muito os preços, dependia das localidades, estado físico e aptidões do escravo. Em São Paulo, por exemplo, um escravo custava dois contos de reis, ou seja, seiscentos pesos argentinos; em Minas, o mesmo escravo constava de 5 a 6 contos de reis. Um escravo estropiado pelos castigos, 200 pesos argentinos... mas não é possível fixar uma tarifa exata porque o escravo não era vendido individualmente. Por exemplo: você precisava de dinheiro, juntava os seus escravos e os levava ao mercado. Leia o senhor a "A escrava Isaura" de Alencar, um romancista brasileiro que retratou bem a escravidão. Então. Como eu lhe dizia, levavam o escravo ao mercado e o vendiam a quem fizesse o melhor lance. 

Aqui, no Rio de Janeiro, o mercado de escravos ficava na rua Primeiro de Março, em frente à drogaria de Granado. 

Eu ouço como se estivesse sonhando. 

— E é verdade que os castigavam? 

— Sim, quando não obedeciam, com um chicote. Ora, havia fazendas onde maltratavam o escravo, mas eram poucas. 

("Castigar com chicote" e "maltratar" é uma coisa muito distinta, quer dizer, que dar vinte ou trinta chibatadas num escravo não era maltratá-lo, mas castigá-lo"). 

 

Os matizes.


À noite me encontro com o senhor catalão e digo para ele: 

— É verdade que castigar é uma coisa e maltratar é outra? 

— Claro, homem de Deus! Castigar... quer dizer, o açoite era de uso corrente em todas as fazendas para manter a ordem mais fundamental. Maltratar um escravo era, por sua vez, trocar o uso da chibata pelo de instrumentos pontiagudos, cortantes... rasgar os braços com golpes, perfurá-lo... como o senhor se dá conta, é simplesmente uma questão de matizes. 

— Sim... entendi... de matizes... e os patrões? 

— Os patrões?... Devia ser muito selvagem quem se incumbia de um escravo. Pra que? Se pra isso tinham feitores. O feitor era o capataz responsável pelos escravos, geralmente também escravo, mas que era liberado dos trabalhos brutais para fazer seus companheiros trabalharem e castigá-los. Esse escravo era o terror dos outros. Cumpria a ordem do senhor ao pé da letra. Se lhe ordenavam dar cinquenta chibatadas a um escravo e este morria na chibatada número trinta e nove, o outro dava as onze restantes... uma questão de princípios, amigo. A obediência absoluta. 

— Quer dizer que esses brancos velhos, de aspecto respeitável, que a gente encontra em carros particulares... 

— Foram senhores de escravos. Leia o que escreveram Alencar e Ruy Barbosa... 

— Mas eu fui nas livrarias e me disseram que não existia livros sobre a escravidão. 

— É normal. Deixa que eu consigo pra você... mas faça isso: vá a algum porto e converse com algum negro velho, desses que você viu arrumando as redes... 

— Essas mulheres negras velhas, tão simpáticas, as pobres? 

— Também foram escravas... mas vá e converse... 

 

Não me decido.

 

E ainda não resolvi falar com um ex-escravo. Não sei. Me dá uma sensação de terror entrar no "País do Medo e do Castigo". O que me contaram me parecem histórias de romances... prefiro acreditar que o que escreveu Alencar, tremendo de indignação, é uma história acontecida num país de fantasia. Acho que é melhor. [1] Castagnino, R. H. (1964). El teatro de Roberto Arlt. Monografías y tesis, VI. pp.7-11

 

 

 

 
 
 

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