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Engels a Marx - 13 de abril de 1866

  • Foto do escritor: Murphy Stay
    Murphy Stay
  • 16 de dez. de 2024
  • 6 min de leitura

Atualizado: 13 de jan.



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Tradução: Pedro Sodré

 

 As correspondências trocadas entre Marx e Engels são parte fundamental do entendimento da tradição marxiana e marxista. Através delas percebemos o levantamento das questões principais em cada circunstância, o desenvolvimento das polêmicas e o polimento das visões que são expressas publicamente em seus textos clássicos. Não é absurdo dizer que um estudo sistemático das cartas de Marx e Engels e sua publicação em língua portuguesa figuram entre os desafios em aberto para o partido revolucionário no Brasil. Podemos ir ainda mais longe, sem atravessar a fronteira da fantasia, e afirmar que esse desafio em particular é um dos passos fundamentais para o amadurecimento do nosso movimento, uma vez que as cartas demonstram aspectos essenciais da forma de abordagem de Marx e Engels acerca da atuação e amadurecimento da política desenvolvida dentro dos organismos políticos do proletariado.

A carta de Engels que o leitor terá contato abaixo foi escrita em um contexto bastante interessante. Engels, que ainda vivia em Manchester, insistiu para que Marx tirasse um tempo de férias para se recuperar da crise de carbúnculos mais violenta que o velho Mouro havia enfrentado até então. A escolha do Mouro foi Margate, no litoral sudeste da Inglaterra. O ano de 1865 havia sido intenso para Marx, tanto do ponto de vista político quando do ponto de vista intelectual. Marx trabalhou intensamente na redação final do primeiro volume de seu Capital, ao mesmo tempo que dividia sua atenção e esforço nos trabalhos internos da recém-fundada Associação Internacional dos Trabalhadores. A conta veio na virada de 1865 para 1866, com carbúnculos que prejudicaram seus trabalhos políticos e intelectuais por mais de 5 meses, já que impediam Marx de ficar sentado por muito tempo, atrapalhavam suas noites de sono e lhe causavam dores lancinantes ao caminhar.

Do ponto de vista político, a correspondência em questão expressa a maneira como Engels percebia o movimento do tabuleiro das lutas de classes na Europa dos anos 1860. O tema fundamental da missiva engelsiana foi a atuação de Otto von Bismarck no cenário europeu naquele momento. O olhar atento de Engels acompanhou as ações de Bismarck na montagem da futura Guerra Austro-Prussiana, da Guerra Franco-Prussiana e da eventual unificação dos reinos germânicos e do povo alemão sob a hegemonia da coroa da Prússia. Além do mais, percebeu o papel que a pressão do Império Russo exercia nesse contexto, com a complacência dos já estáveis e avarentos ingleses.

O curto parágrafo da correspondência de Engels em que a questão do bonapartismo é tratada mostra que a luta de classes nunca figurou de maneira simplória aos olhos do General. Engels sabia que a luta de classes não era travada apenas entre as duas classes fundamentais da sociedade capitalista — a burguesia e o proletariado. A percepção engelsiana era mais sofisticada e atenta do que isso. Como notório conhecedor das ciências militares, Engels compreendia que o confronto entre as classes se assemelhava à mecânica do confronto entre dois grandes exércitos posicionados em um campo de batalha. Suas dinâmicas próprias extrapolavam o mero confronto bélico direto, com os acontecimentos desenvolvidos atrás das linhas de vanguarda influenciando diretamente a evolução no teatro de batalha principal. Os acordos, alianças, traições e golpes que ocorrem nesse cenário e alteram as lideranças dos exércitos do capital refletem a realidade complexa dos confrontos intraclassistas que incidem sobre as dinâmicas de acúmulo e reprodução do capital e interferem nas táticas desenvolvidas pelo partido revolucionário em cada momento e circunstância.

Compreender o sentido da concepção de bonapartismo mobilizado por Engels e por Marx perpassa por refletir sobre esse sistema de relações. A validade de sua aplicação ao contexto das lutas de classes contemporâneas no Brasil e no restante do mundo é uma questão em aberto, assim como o reflexo e implicações dessa compreensão para o desenvolvimento das táticas do proletariado atuante na luta de classes. Assim, não seria o retorno do bufão Trump à Casa Branca, a tentativa de autogolpe na Coreia do Sul e os desdobramentos das investigações sobre o 8 de janeiro no Brasil um conjunto de elementos que nos fazem considerar a validade da afirmação de Engels de que “o bonapartismo realmente é a verdadeira religião da burguesia moderna”?

 

ENGELS A MARX

Em Margate

 

[Manchester], 13 de abril de 1866

 

Caro Mouro,

 

[...]


Então, Bismarck executou seu golpe do sufrágio universal [1], mesmo que ainda sem Lassalle. Parece que, após alguma demonstração de relutância, a burguesia alemã irá acompanhá-lo, pois o bonapartismo realmente é a verdadeira religião da burguesia moderna. Está se tornando cada vez mais claro para mim que a burguesia não possui as qualidades necessárias para governar diretamente, e que portanto, a menos que haja uma oligarquia como aqui na Inglaterra capaz de assumir, por um bom salário, a gestão do Estado e da sociedade no interesse da burguesia, uma semiditadura bonapartista é a forma normal; ela promove os grandes interesses materiais da burguesia mesmo contra a burguesia, mas não lhe permite nenhuma participação no próprio governo. Por outro lado, essa ditadura em si é, por sua vez, compelida a adotar, contra sua vontade, esses interesses materiais da burguesia. Então, agora temos Monsieur Bismarck adotando o programa da Associação Nacional [2]. Sua execução é reconhecidamente outra questão, mas Bismarck dificilmente será impedido pela burguesia alemã. Um alemão, que acaba de retornar de lá, relata que já encontrou muitos que morderam a isca; de acordo com a Reuter, a população de Karlsruhe aprovou o assunto, e o constrangimento ilimitado do Kölnische Zeitung [Gazeta de Colônia] sobre o caso é uma indicação clara de uma mudança de curso iminente.

Que Bismarck tem acordos diretos com os russos, entretanto, é mais uma vez provado primeiramente pelo fato de que não apenas o The Times, mas também a Reuter, está começando a mentir em nome da Prússia, em completo contraste com seu costume atual. Há um método nas traduções erradas com as quais os telegramas estão agora mais infestados do que nunca. Até pouco tempo atrás, contra a Prússia. Agora contra a Áustria. Reuter telegrafa: “A Áustria só seguiria o plano se todas as províncias austríacas (isto é, incluindo as não alemãs) estivessem representadas”. No original alemão, apenas diz: condicional às regiões da Áustria serem representadas também. — Além disso: de acordo com o Bromberger Zeitung [Gazeta de Bromberger] e o Ostsee-Zeitung [Gazeta do Mar Báltico] (este último um órgão russo), os russos continuam a reunir mais tropas nas províncias do sudoeste, do Reino da Polônia [3] ao Prut, fazendo isso muito lentamente e discretamente; os soldados estão todos esperando mover-se com a Prússia contra a Áustria, e aqueles no Warta repetem que seu papel é ocupar Posen para que os prussianos de lá possam marchar para longe.

Os russos podem, incidentalmente, deixar Scheleswig-Holstein para os prussianos por enquanto, já que a Paz de Viena [4] e a anexação, afinal, salvaram a questão principal para eles: o Tratado de Londres e, portanto, a sucessão na Dinamarca. Se eles têm o Sound, o que Kiel significa para eles?

Em todo o caso, seu melhor caminho é ficar em Margate até que você não sinta mais nada na parte afetada e esteja em geral convencido de uma mudança acentuada para melhor.


                Escreva logo.

                Seu,

F. E.

 

[1] Em 9 de abril de 1866, o governo prussiano apresentou à Dieta Federal uma proposta de que um parlamento totalmente alemão fosse convocado por sufrágio universal para decidir a questão da reforma da Confederação Germânica.

[2] A Associação Nacional (Deutscher National-Verein) era um partido da burguesia liberal alemã que defendia a unificação da Alemanha (sem a Áustria) em um estado centralizado sob a supremacia da monarquia prussiana. Sua reunião inaugural foi realizada em Frankfurt am Main em setembro de 1859. A Associação Nacional foi dissolvida em 1867, após a Guerra Austro-Prussiana de 1866 e o estabelecimento da Confederação da Alemanha do Norte.

[3] O Reino da Polônia — o território polonês anexado ao Império Russo em concordância com a decisão do Congresso de Viena de 1815.

[4] O Tratado de Viena, que concluiu a guerra de 1864 travada pela Prússia e Áustria contra a Dinamarca, confirmou uma série de tratados e convenções anteriores sobre a Dinamarca, Schleswig e Holstein, em particular as cláusulas do Protocolo de Londres de maio de 1852 sobre a sucessão dinamarquesa. No Protocolo, o Imperador da Rússia foi nomeado como um dos requerentes legais ao trono dinamarquês (sendo descendente de Charles Peter Ulrich, Duque de Holstein-Gottrop, que reinou na Rússia como Pedro III). Os requerentes renunciaram a seus direitos em favor do Duque Christian de Glücksburg, que foi nomeado herdeiro do Rei Frederico VII. Isso criou um precedente para as reivindicações do imperador russo ao trono dinamarquês no caso de extinção da dinastia Glücksburg. Download do arquivo com escrito original:



 
 
 

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