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  • Antiintelectualismo e defesa da pobreza em Jones Manoel: o debate sobre consciência de classe

    Por Krishna Edmur Fonte: Lenin Speaking to the Workers of the Putilov Factory by Isaak Brodsky. Jones postou um vídeo, na última segunda, debatendo as diferentes vias para se tornar um comunista em que opõe saber e sentir, apontando a importância da posição de classe no processo de tomada de consciência. O youtuber instrumentaliza esse debate importante pra tecer críticas ao que vem chamando de academicismo e no caminho acaba fazendo um elogio à pobreza. Nesse texto busco demonstrar seus erros. 1. COMO JONES COLOCA O DEBATE Em termos gerais, Jones aponta que enquanto oque chama de proletário, por sofrer diariamente as mazelas do capitalismo, tem maior facilidade em atingir uma consciência de classe comunista, porque acima de compreender, sentem a exploração. Os acadêmicos por outro lado, que chegam ao comunismo pelo convencimento, mas em sua posição de classe privilegiada – no sentido de não sofrer com falta de dinheiro que gera muitos outros problemas – mantém um vício pequeno-burguês. E para superar esse vício, um intelectual tem que se revolucionar. 2. QUAL O VERDADEIRO DEBATE ENTRE SABER E SENTIR? OU: SOBRE AS DIFERENTES VIAS PARA A TOMADA DA POSIÇÃO DE MUNDO REVOLUCIONÁRIA Para responder a essa questão, antes temos que resolver alguns erros presentes na análise de Jones. A) O PROLETÁRIO Ao retratar o proletariado como classe revolucionária Marx está se referindo majoritariamente aos trabalhadores ligados aos diversos ramos desenvolvidos com a Revolução Industrial. Uma das características desse proletariado era a miséria que viviam, mas isso não é a única coisa que os tornava proletários, nem tampouco revolucionários. Quando Marx percebe o proletariado como classe revolucionária e constrói as bases teóricas que,juntamente aEngels, veio a chamar de socialismo científico e tem como objetivo ser a posição ideológica desse movimento real, ele destaca como central para a condição de revolucionária do proletariado justamente a oposição entre desenvolvimento do capital e formas de relação de trabalho. Nessa, o trabalhador que produz tudo – e o proletariado que Marx analisava efetivamente era ponta de lança no processo de desenvolvimento do capital, justamente porque responsável pela produção direta das mercadorias de maior valor agregado do período - não obtém nada, tem que vender sua força de trabalho para se sustentar e vive uma vida miserável. Além disso, há outro elemento, sendo ele, sim, o central, que vou abordar mais à frente. B) O QUE TORNA O PROLETARIADO REVOLUCIONÁRIO Analisando o desenvolvimento do capital, em especial as lutas do operariado de seu tempo, Marx pôde compreender o que fazia o proletariado ser um potencial revolucionário. Uma classe que produz tudo, logo, tem grande capacidade de parar o processo produtivo e gerar um caos. Uma classe que tende a se rebelar, na medida em que é jogada à miséria a ponto que não resta a eles nada além de lutar com todas as forças pra sair dessa condição. Uma classe marcada pela posição de confronto com o capital, de modo que a melhoria de suas condições de existências é tolhida pela ganância pelo lucro. Em geral, uma classe que tendia a uma união, na medida em que todos partilhavam misérias semelhantes morando amontoados em bairros operários ou dentro das próprias fábricas. Unindo capacidade de parar o processo produtivo à vida miserável que os levavam a se rebelarem, e a forma coletiva como partilhavam os problemas e as lutas, tem-se aí uma possibilidade posta para o caminho da revolução. Marx não criou sua teoria revolucionária e em seguida buscou o agente revolucionário pra efetivá-la. Na verdade, ele viu o agente em ação e o embasou teoricamente, tornando sua teoria a face ideológica do movimento proletário. Marx cumpre outras tarefas diversas das intelectuais? SIM! Mas essas tarefas o movimento cumpriria facilmente sozinho, sem Marx. O diferencial do autor é construir a ideologia do que o proletariado efetivava nas lutas práticas. C) ELOGIO À POBREZA A priori, em termos gerais, é isso que determina a condição do proletariado - ao menos aquele do século XIX analisado por Marx - enquanto classe revolucionária. Quando Jones em seu vídeo quer opor o pequeno-burguês ao proletário, em geral ele narra casos em que comenta da pobreza de uma pessoa. Se ser pobre tornasse as pessoas proletários, Marx não fundaria a internacional dos trabalhadores. Com a quantidade de pobres em Londres no período a AIT seria dominada por mendigos. Como comento acima, Marx estava de olho no trabalhador fabril não porque era o mais miserável. 2.1- ACERCA DO VERDADEIRO DEBATE ENTRE SENTIR E SABER Existe efetivamente uma diferença, não só na forma que o proletariado toma a posição revolucionária se comparado às demais parcelas da população, como também na função que cumprem rumo à revolução. Pra não causar confusão em torno das diversas concepções do que é a tomada de consciência de classe, tomarei termos mais objetivos. E aqui vou largar o “operariado”, ponta de lança do movimento comunista no século XIX e início do XX, para falar de “trabalhador” em geral, pois o que vou tratar tende a valer para trabalhadores em geral, salvo exceções, e não só para a ponta de lança. A primeira coisa a ser entendida é que um processo revolucionário exige duas forças presentes, que em certa medida caminham mais ou menos juntas, uma é a força dos trabalhadores postos em luta, a outra é a posição ideológica revolucionária. Sem qualquer um dos dois é impossível uma revolução. Vemos casos de trabalhadores em luta, como na Alemanha Nazista, que sem posição ideológica revolucionária apoiaram Hitler e o colocaram no poder. Ou casos de ideologias que defendem a revolução, que sem trabalhadores em luta são irrelevantes para a maior parte da população. Tomemos caso a caso. 2.1.1- TRABALHADORES A) SOBRE SENTIR NA PELE, OU, O QUE COLOCA OS TRABALHADORES NO CAMPO DA LUTA Em geral, é impossível determinar com exatidão quando os trabalhadores vão entrar em processo revolucionário. Em texto que não recordo a origem, mas suspeito ser uma entrevista concedida já ao fim da vida, Marx chega a se referir às grandes insurreições como forças naturais justamente pela imprevisibilidade de quando e onde vão acontecer. No entanto, isso não quer dizer que é impossível determinar a força que impele os trabalhadores à luta. Essa motivação, na verdade, é quase consenso entre os grandes teóricos da tradição marxista: os trabalhadores tendem a se rebelar quando são submetidos a piora das condições de vida, ao passo em que o contrário também é verdadeiro, em períodos de prosperidade econômica revertida em melhorias das condições de vida da classe, os trabalhadores se põe menos na luta política. B) ENTRE A LUTA POR MELHORES CONDIÇÕES DE VIDA E A LUTA PELA REVOLUÇÃO: SOBRE O PROCESSO DE CONVENCIMENTO Os trabalhadores em luta, no geral, tendem a ter como pautas questões práticas de sua vida, justamente porque é a busca por melhorias na qualidade de vida que os colocam na luta. No entanto – e aqui entra o debate sobre o “sentir” pela via correta –, esses trabalhadores estão mais propensos, justamente por já lançados à luta, a serem convencidos por uma posição de mundo específica. Na verdade, qualquer classe quando em luta está mais propensa a ser convencida sobre certa pauta política, mas o que torna o trabalhador o representante verdadeiro da luta comunista é o outro aspecto decisivo para o proletariado do XIX ser visto como classe revolucionária para Marx, que no início do texto informei que abordaria mais à frente. O confronto entre capital e trabalho no capitalismo assume o seguinte contorno: o interesse da classe trabalhadora é diametralmente oposto aos interesses do capital. Na medida em que a valorização do capital se dá pela extração de mais valor do trabalhador, quando o trabalhador sai em luta reivindicando melhores salários, ou mesmo outras melhorias em suas condições de vida, ele está disputando com o capital a parcela de mais valia que será espoliada de sua atividade. Nessa medida, o capital que em sua forma de ação, tende sempre a buscar mais lucro, e o trabalhador, que tende sempre a buscar melhores condições de vida, são antagônicos. E justamente a posição antagônica como classe assalariada é o que diferencia a classe trabalhadora das demais classes, sendo entre os que citei acima, o elemento decisivo para que essa seja a classe revolucionária. Isso porque enquanto outras classes, quando em luta, podem atingir seus objetivos sem ferir o capital, a luta por melhores condições de vidas, mesmo que não de forma decisiva, é uma luta contra o capital. Marx esclarece a questão em seu texto sobre a greve dos tecelões da Silésia. Exatamente por isso, quando os trabalhadores estão em luta é mais fácil que sejam convencidos pela via revolucionária de derrubada do capital; cabe ao movimento ideológico, tal como Lenin fez em seu “Paz, Pão e Terra” - a verdadeira realpolitik -, demonstrar que a única forma definitiva de melhoria das condições de vida se dá na e com a revolução socialista. Esse é o “sentir”, que torna a classe trabalhadora mais propensa à revolução. 2.2- SABER, OU, SOBRE O MOVIMENTO IDEOLÓGICO Resta então tratar da outra parcela que compõe o movimento comunista, a chamada parte consciente do processo revolucionário. Se os trabalhadores são os agentes da revolução, o movimento ideológico não apenas convence os agentes – propensos a serem convencidos - da necessidade pela revolução, como também os arma para atingirem esse objetivo. Sendo assim, enquanto o caminho da classe trabalhadora à posição revolucionária perpassa necessariamente pelas lutas por melhores condições de vida – que ao fim, são engendradas a partir do que “sentem na pele” - a parcela que constrói a base ideológica desse movimento não chega à luta revolucionária da mesma forma. No movimento ideológico, o que os joga na luta revolucionária é, em geral, o convencimento político, que pode vir de diversas formas, muitas vezes pelo convencimento racional no debate de ideias ou quando busca dar respostas a um problema posto, e percebem que essas respostas são possíveis apenas com uma revolução socialista. Alguns desses casos - entendendo a diferença de estatura e relevância entre as diferentes figuras - são: Marx, Engels, Lukács, Lenin, Caio Prado Junior, José Paulo Netto e Mauro Iasi. De acordo com Lafargue, Marx costumava dizer que qualquer um que fosse isento de posições políticas prévias, ao analisar a sociabilidade do capital seria partidário do comunismo. Mas para entender esse debate da maneira correta, devemos ter clareza que o que o pauta não é a identidade de um indivíduo, de modo que nada impede, por exemplo, que um trabalhador isolado, se deparando com diferentes posições de mundo entre na luta revolucionária pelo convencimento lógico racional da necessidade da revolução. Não conheço a vida pessoal do Jones, então tomo minha situação como exemplo. Sou estudante mestrado, logo, acadêmico, mas na concepção de Jones sou também um proletário. Vejam bem! Não gosto de falar sobre minha vida pessoal quando não convém, mas serve de exemplo aqui. Eu sou pobre! Criado em uma família do lúmpen, desde o berço vivendo sob condições degradantes tive contato com tudo que a vida à beira da miséria no Brasil pode oferecer. E mesmo assim, não me tornei comunista pela “sensibilidade”, mas pelo convencimento lógico racional. Na época com 14 anos minha primeira namorada me explicou o que era socialismo para além da única coisa que eu pensava sobre: “todas as casas, carros e roupas tem que ter a mesma cor” e pior, todas cinza! Daquela época até os 16 fui sendo convencido, ao ponto que criei afinidade pelo socialismo. Com 16 já na universidade fui pela primeira vez ler algo de um comunista, comecei com o manifesto, passei por alguns outros livros, enquanto acompanhava os debates no facebook. Apesar de na época já achar ser comunista, percebi que fui ser convencido mesmo da posição com Lenin, em Esquerdismo. Ali já não havia mais volta. Tudo graças ao trabalho de Maria Beatriz. Sem ela - que hoje alça grandes voos no mundo acadêmico, e vem se tornando grande pesquisadora – eu jamais teria sequer entrado na universidade. Mil beijos, Bia! 3- O QUE ESTÁ EM DEBATE, OU, SOBRE “TRAZER A CLASSE TRABALHADORA PARA A LUTA” A grande questão que esse debate traz, na verdade, foi pouco comentada por Jones, que instrumentalizou o debate em torno de seus interesses políticos, que se vistos de fundo, vão contra o que é desenvolvido pela polêmica. Quando se diz que a classe trabalhadora “sente”, na verdade, o que se está dizendo é que NÃO EXISTE OUTRA FORMA da classe trabalhadora como corpo coletivo - não um trabalhador isolado – tomar consciência, ou, objetivamente, se pôr em movimento e optar pela revolução, senão pelo que sente na pele. Ou seja, o que joga a classe trabalhadora na luta é o que sente na pele. Não essa besteira, que da forma que é colocada no vídeo, o pobre parece ser mais revolucionário por uma suposta superioridade moral abstrata. Enfim, isso é uma crítica direta àqueles que julgam ser possível, a partir do convencimento político, colocar os trabalhadores em movimento na luta por algo. No fim das contas, oque determina se os trabalhadores vão se rebelar ou não, é, em geral, o quanto estão sendo empurrados a condições de vida degradantes e o tempo que vão aguentar essas condições. Sendo assim, se os trabalhadores não estão em luta, é impossível que o movimento ideológico incida sobre suas consciências a ponto de fazer a classe insurgir em grande revolta. 4- O QUE O TEXTO DO JONES PROPÕE ENTÃO AFINAL? A partir da instrumentalização do debate verdadeiro sobre tomada de consciência de classe, Jones na verdade apresenta duas conclusões ao individualizar o debate como problema de identidade dos sujeitos que compõe seu partido, e cumprir dois objetivos. O primeiro é a desmoralização da figura do intelectual sob a insígnia de acadêmico - e os acadêmicos têm diversos problemas que devem ser debatidos, mas da maneira correta, indagando por exemplo sobre a dificuldade que têm em trabalhar coletivamente em grandes grupos de pesquisa, potencializando a obtenção de resultados, como ocorre nas áreas de ciências biológicas; ou mesmo sua incapacidade de responder aos problemas postos na vida cotidiana das classes trabalhadoras -, em que, se anos atrás as críticas de Jones miravam principalmente seu suposto descolamento da realidade com pesquisas supostamente irrelevantes – ambos com certo grau de verdade -, hoje o ataque é direcionado aos aspectos de suas vidas pessoais. O que é atacado principalmente, na verdade, é a condição financeira desses acadêmicos, que os torna, segundo Jones, entre outras coisas, tendenciosamente elitistas, machistas, racistas e insensíveis às dificuldades dos trabalhadores. A segunda é sobre a necessidade de proletarizar o partido. Se os grandes problemas de sua organização são resultado dos problemas próprios à condição de pequena burguesia acadêmica de seus dirigentes (com um foco excessivo sobre seus salários), nada mais correto que buscar a solução nessa proletarização. No entanto, quando confunde, como mostra em seu vídeo, proletário com pobre, o youtuberestá, ao fim e ao cabo, fazendo um elogio à pobreza, dizendo que, no geral, o problema do PCB é quem tem dinheiro, e a solução é encher a organização de proletariado (que para Jones é o mesmo que pobre). É a partir disso que propõe que o PCB se torne um partido de massas, que acima de tudo consiga se infiltrar no seio da classe trabalhadora e trazê-la para a luta, contra o “apassivamento da luta de classes do PT”. Deixando de lado o perfil intelectualizado da militância, mirando o que é relevante de verdade. Se ao produzir os roteiros para seus vídeos, Jones se preocupasse mais em entender o que está debatendo do que em enviesar o debate para parecer certo diante de seu público, certamente saberia que isso é impossível enquanto esses trabalhadores estão distantes das ruashá décadas. 5- UM OLHAR ACERCA DA FIGURA DE JONES MANOEL É canalha, e acima de tudo burra, qualquer posição que avalie Jones sem reconhecer a grandeza da função que o youtuber – e aqui sem juízo de valor negativo – cumpre, como fazem muitos de seus camaradas, e agora rivais. Acusando-o de não estar presente nas lutas reais – a ladainha mais velha da história do MCI – como Bakunin acusava Marx durante a comuna, são reacionários ao tecer uma crítica de sua força na internet. Como se tornar-se uma figura pública a partir dos mais novos meios de comunicação, fosse em si um problema. Ser honesto é reconhecer que a despeito das discordâncias, Jones deu um passo necessário para aqueles que desejam incidir sobre qualquer revolucionário. Quando analisamos por exemplo a figura de Marx e sua influência no movimento proletário podemos compreender isso. No momento da fundação da AIT, que tem suas origens no movimento proletário insurgente na Inglaterra com as crises de 1858, Marx foi um dos poucos convidados não proletários, se não o único. E seu convite advém justamente do reconhecido trabalho propagandístico do alemão, em especial o trabalho jornalístico que desenvolvia há mais de uma década. Jones definitivamente atinge um público considerável, e o valor disso deve ser reconhecido, está um passo à frente da maioria dos comunistas hoje no Brasil no caso de uma repentina insurgência, ser aquele a ser convidado pelos próprios trabalhadores a participar do movimento. E por isso, a crítica ao personagem deve ser implacável, porém pelos seus erros, não acertos. Não proponho aqui uma disputa da consciência do youtuber, que pelos diversos erros que apresenta há anos, não parece ser disputável para uma posição correta. Comento apenas que, não errasse em quase tudo que se propõe a responder – se a régua é a posição da revolução - Jones seria um grande líder a ser seguido. Com isso em jogo a tarefa parece ser necessário se criar outras figuras como Jones Manoel, mas uma que não padeça de suas falhas incorrigíveis.

  • Carta de dentro do barril de cimento

    Yoshiki Hayama 1924 Carta de dentro do barril de cimento, de 1924, é uma síntese de parte estrutural e unificadora das ideias contidas nas expressões literárias do movimento proletário japonês, que durou até o início da década de trinta. Encerrado pela repressão policial, o movimento contava com militantes do partido comunista, integrantes da classe operária, e trabalhadores inseridos nas lutas sindicais, que se propagaram e tomaram corpo na época. Expor o conflito de classes, inserir a política na literatura e tecer as narrativas pelo ponto de vista do trabalhador, o texto é um exímio exemplo da aplicação de tais práticas, que conta ainda com a potência de ter sido escrito por um autor operário. Yoshiki Hayama trabalhou como marinheiro em banco de carga, trabalhador em uma central de energia elétrica, e, além de outros, como operário numa fábrica de cimento. Foi preso por crimes contra a paz e ordem pública, enquanto em atividades sindicais relacionadas ao partido comunista japonês. Alguns de seus contos mais famosos, como A prostituta (inbaifu 淫売婦) e As pessoas que vivem no mar (umi ni ikuru hitobito 海に生くる人々) foram escritos enquanto ele estava preso em Nagoya, (Sorte Junior 2021). Hayama foi um dos mais expressivos escritores proletários. Com sua escrita corporal, que alarga incômodos minuciosos e que comprime neles as grandes atrocidades contra a classe trabalhadora, o autor coloca as coisas como são. E seus escritos ecoaram pelas entranhas da luta de classes, inflamando trabalhadores, mas, figura complexa que era, abandonou a causa. Foi enviado para Manchúria em 1943, forte indício de apoio à guerra imperialista. Já não escrevia mais sobre trabalhadores. Em 1945, morreu em decorrência da pobreza Youzo Matsudo esvaziava barris de cimento. As marcas de cimento no resto do corpo não eram tão aparentes, mas os cabelos da cabeça e debaixo do nariz estavam completamente tingidos de cinza. Ao colocar o dedo no nariz, os pelos estavam enrijecidos como concreto. Queria remover o concreto mas, para acompanhar o misturador, que cuspia dez cargas por minuto, não tinha tempo de ficar com os dedos nas narinas. Enquanto ele se preocupava com os buracos do nariz, já deram onze horas. Nesse período, só havia o almoço e a pausa das três horas. No almoço, por causa da fome, primeiro por ter de limpar o misturador e não ter tido folga, não pode levar a mão ao nariz, e portanto, não o limpou. Quando estava terminando, tirou de dentro do barril de cimento uma pequena caixa de madeira, a qual moveu com as mãos esgotadas “O que será?” pensou com leve suspeita, mas não podia se preocupar com aquilo. Com a pá, ele pesou o cimento na caixa medidora. Depois transferiu o cimento da caixa para o barco, para logo transferir de novo. “Mas espera! Não há como uma caixa sair de um barril de cimento.” Pegou a caixa e arremessou dentro do bolso de seu avental. A caixa estava leve. “Pela leveza, não deve ter dinheiro”. Ele não tinha tempo para pensar, esvaziar o próximo barril, pesar a próxima caixa medidora. O misturador começou a girar inutilmente. O concreto terminou e chegou o horário de encerramento. Ele lavou o rosto e as mãos com a água da mangueira de borracha no misturador. Com a marmita enrolada no pescoço, ele voltou para seu cortiço pensando em comer e beber. A usina dava na rua Hachibu. O monte Ena, elevando-se na escuridão da noite, estava coberto de neve branca. De repente, o corpo completamente suado começou a sentir frio. Sob seus pés o rio Kiso rugia enquanto mastigava a espuma branca. "Ah, não! Eu não consigo! Minha esposa está de novo com a barriga inchada…" Ele pensou nas crianças rastejando, nas crianças que nasceram para enfrentar esse frio, pensou na esposa que dará a luz nessa bagunça e ficou completamente desapontado. Dentre os um iene e noventa centavos de salário diário, come duas medidas de arroz de cinquenta centavos por dia, e veste e vive com noventa centavos. "Idiota! Como você pode beber? " Mas, ele lembrou da pequena caixa dentro do bolso. Esfregou o cimento da caixa com a barra da calça. Não havia nada escrito nela. Estava firmemente pregada. “É sugestivo estar pregada desse jeito.” Ele golpeou a caixa no topo de uma pedra. Como ela não quebrou, por estar inserido nesse mundo, ficou com vontade de pisar e quebrar, e pisou desesperadamente. Dentro da pequena caixa havia um pedaço de papel embrulhado em trapos, em que estava escrito: Eu sou uma trabalhadora que costura sacos de cimento para a N Cimento Company. Meu namorado trabalhava colocando pedras no triturador. Sendo assim, na manhã do dia sete de outubro, no momento de colocar uma grande pedra, ele ficou preso junto a ela no triturador. Os colegas tentaram ajudar mas, como se estivesse afogando dentro d'água, meu namorado afundou debaixo da pedra. A pedra e o corpo dele se desfizeram em finas pedrinhas vermelhas que caíram na correia. A correia levou para o cilindro de trituração. Lá, foi despedaçado junto com as balas de aço, enquanto gritava uma voz amaldiçoada em meio ao som afunilado. E então foi cozido e transformado em cimento de qualidade. Seus ossos, a sua carne e a sua alma se transformaram em pó. Meu namorado virou cimento por completo. Tudo que restou foram os trapos das roupas de trabalho. Estava costurando uma bolsa para ele. Meu namorado virou cimento. No dia seguinte, escrevi esta carta e guardei dentro do barril. Você é um trabalhador? Como você é um trabalhador, fique com pena de mim e por favor me dê uma resposta. Gostaria de saber para que serve o cimento dentro desse barril. Em quantos barris de cimento meu namorado se transformou e quantas pessoas vão usá-lo? Você é o estucador, ou será que é o arquiteto? Eu não aguentaria ver meu namorado virando o corredor de um teatro ou a parede de alguma mansão. Mas como posso impedir isso? Você, se você é um trabalhador, por favor não use o cimento nestes locais. Na verdade, não importa. Use em qualquer lugar. Em qualquer lugar que meu namorado esteja incorporado, tenho certeza que fará coisas boas. Não importa, ele tinha temperamento firme, com certeza fará um bom trabalho. Ele era gentil, uma boa pessoa. E era um homem viril. Ainda era jovem. Tinha acabado de fazer dezesseis. Eu não sabia o quanto ele me amava. E, no entanto, em vez de vesti-lo com uma mortalha, coloquei-o em um saco de cimento! Ao invés de entrar num caixão, ele acabou entrando no forno rotativo. Por que eu…Devo entregá-lo. Ele está enterrado no leste, no oeste, longe e perto. Se você for um trabalhador, por favor me responda. Em troca, darei a você a roupa de trabalho rasgada que meu namorado usava. São neles que a carta está envolvida. Os trapos estão encharcados de pó de pedra e do suor daquele homem. Com que força ele já me abraçou com essas roupas de trabalho? Eu estou te implorando. Se você não se importar, informe-me a data e a hora em que usou este cimento, o local específico em que o usou, o local em que o usou e seu nome. Por favor, cuide-se. Adeus. Matsudo Yozo lembrou-se do barulho das crianças ao seu redor. Enquanto via o endereço e o nome no final da carta, soltou um gemido num suspiro com o sake derramado em sua tigela. "Vou ficar bêbado feito louco e quebrar tudo para ver!", Gritou. "Então você acha que pode encher a cara e ficar enfurecido? E o que será das crianças?", disse a esposa. Ele viu o sétimo filho na grande barriga de sua esposa.

  • Não existe isso de “civilização ocidental”

    Tradução e nota introdutória por Pedro Viana (Mestrando em História Global pela UFSC) Para os atentos leitores latino-americanos e os demais do chamado Sul Global (aí incluídos africanos e asiáticos) o que se chama de “civilização ocidental” pode ser algo estranho aos olhos, apesar de familiar aos ouvidos. E justifico: o que se chama de civilização ocidental no Sul Global é um caleidoscópio disforme de ideias e práticas trazidas pela expansão europeia, seja pela Conquista da colonização ou seja pelas mais diversas interferências políticas, militares e econômicas promovidas pelas grandes potências do Atlântico Norte. Contudo, isso nos leva a uma enorme questão de fundo para entender como isso foi possível. O que é o ocidente? Se para alguns tecnicistas a resposta pode ser um simples “tudo que está ao oeste do meridiano de Greenwich”, porém, aí questionamos: não é a Europa continental um dos melhores exemplos de ocidente por excelência? A pura e simples localização geográfica não é o determinante usado por pensadores de diversas áreas. Um exemplo atualíssimo explicita a complexidade do termo ocidente. O atual conflito entre Rússia e Ucrânia em diversos momentos parece ser cada vez mais uma guerra do Ocidente contra a Rússia e da Rússia contra o Ocidente. Mas não é a Rússia parte constituinte do que convencionamos chamar de Europa/Ocidente (inclusive, ocupando 40% do território daquele continente)? Não faz a Rússia parte da grande esfera cristã e branca? Em grande parte sim, mas não no todo. Para os defensores do que chamamos de Ocidente, o mesmo é um conjunto de valores e práticas, de estética e organização social, de arranjos políticos e comportamentos de sujeitos e grupos. Se formos analisar historicamente a ideia do que hoje chamamos de Ocidente têm raízes mais fortes na religião e na política do que na raça e na geolocalização. Para o intelectual Edward Said (1935 - 2003) o Ocidente seria uma negativa daquilo que se concebe como Oriente. Ainda no mesmo gradiente, o autor argumenta que o Ocidente criou a sua antítese, o Oriente, para definir a si mesmo como a negação de tudo que seria oriental. Um processo inicialmente organizado na brutal reação da cristandade à expansão e consolidação da religião islâmica, que hoje chamamos de Cruzadas (um movimento permanente de assédio militar, político e religioso de forças cristãs europeias contra sociedades islâmicas, entre os séculos XI e XIII. Atualmente historiadores debatem uma radicalização das visões islâmicas após as Cruzadas em grande parte como reação à estas), mas que também têm raízes nas interações entre o mundo greco-romano e suas contrapartes mais ao sul e leste (Pérsia, Egito, China, Índia, etc.), mas também no sentido norte (os diversos povos eslavos, germânicos e túrquicos dentro e fora da esfera imperial). Se pensarmos na contemporaneidade, existem argumentos que de fato definem o Ocidente muito além da geografia. Aí estaria a Europa (excluindo a Rússia, Turquia e os Balcãs) e a América do Norte (EUA e Canadá) por excelência. Mas também Austrália, Israel, Nova Zelândia, Japão e, quando muito Coréia do Sul. Isso por causa do compartilhamento de valores, estética, organização social (aqui incluídos papéis de gênero, família, etc.) alinhamento geopolítico, religião, cultura, língua, raça e, para Sebastian Conrad (1966 - presente), também o entrelaçamento histórico e o uso da memória social. Pensando nessa definição mais comum de Ocidente, se faz forte o pensamento de que alguns dos principais valores defendidos pelas bandeiras ocidentais não se configuram regra, existindo exceções em diversos casos. Apenas para fins de exemplo, podemos citar que os ideais ocidentais de liberdade e igualdade ocidental não inibiram o surgimento da escravidão negra, indígena e asiática nos EUA e Israel e seus racismos tão exacerbados que poderiam ser comparados às sociedades de castas às quais buscam se opor (ao menos na arena do discurso). Outro exemplo pode ser conferido às práticas políticas japonesas que historicamente foram diametralmente opostas ao valor democrático do ocidente. No ano de 2016, quando da saída da Grã-Bretanha da União Europeia no chamado Brexit, uma velha ideia das tradicionais classes políticas de alguns países oriundos do falecido Império Britânico apoiaram a criação de uma confederação de Estados sob o argumento principalmente econômico mas também histórico-cultural de um suposto ocidente anglófono. Quais seriam estes? Grã-Bretanha, Canadá, Austrália e Nova Zelândia (a sigla proposta para essa confederação é CANZUK). Destes, apenas dois estão na região geográfica ocidental e apenas um na Europa, coração do dito ocidente. Mas por que não foram sugeridos outros países que fizeram parte do Império e apresentam perspectivas ainda melhores de crescimento econômico como Nigéria, Cingapura e Índia? Os críticos dessa proposta argumentaram que os discursos favoráveis a tal confederação apenas maquiavam as verdadeiras intenções de seus proponentes: esconder o declínio econômico e ideológico da Grã-Bretanha, dar fôlego ao saudosismo imperial e unir apenas os países do antigo Império Britânico que são de maioria branca e cristã e se encaixam melhor no conceito de democracia liberal ocidental. De qual maneira explicar a massificação do conceito de civilização cristã ocidental elaborado pelo intelectual espanhol Miguel de Unamuno (1864 - 1936) sem passar por essa longa percepção do uso de valores como liberdade (para um grupo), propriedade (privada), religião (cristã), raça (branca), economia (auto regulada), sistema político (liberal) e cultura (erudita eurocentrada)? O mesmo Miguel de Unamuno, basco de nascença e defensor cultural das minorias espanholas, não exitou em apoiar o golpe do general Francisco Franco que mergulhou os campos descritos por Miguel de Cervantes (1547 - 1616) em O Dom Quixote com sangue de seus compatriotas. Unamuno, cabe lembrar, faleceu pouco depois do início da Guerra Civil e seus valores de liberdade e racionalidade foram facilmente transplantados pelo fascismo falangista e a brutalidade de Franco. O que talvez Unamuno jamais tenha admitido em vida é que a sua defesa da integridade nacional espanhola, da religião cristã, da raça branca e do imperialismo europeu deram munição para as armas dos teóricos que justificaram regimes fascistas atrozes no Ocidente que, no caso espanhol, foram responsáveis, inclusive, pelo massacre de seu próprio povo basco. Apesar de não se deter especificamente nas interações das sociedades ditas ocidentais com suas contrapartes, Kwame Anthony Appiah (1954 - presente) em artigo de 2016 para o jornal britânico The Guardian trouxe à cena o uso dos valores ocidentais como uma alternativa para a humanidade tendo em vista um presente e futuro compartilhado em escala global. Appiah é nascido em Gana, sendo filho de um nobre ganês com uma atriz aristocrata britânica, passou grande parte da sua vida entre Accra e Londres e atualmente é presidente da Academia Americana de Artes e Letras dos EUA. Tendo uma biografia que em si mesma demonstra a complexidade das relações humanas contemporâneas, Appiah busca fazer um recuo para compreender a criação do ocidente e um avanço propositivo em direção ao futuro humano. Para ele, a alternativa de futuro humano não passa pela imposição unilateral dos valores ocidentais por meio da dominação ideológica como se fez até hoje. Appiah propõe uma rede capaz de inserir e aprimorar valores do Ocidente tendo em vista uma característica que parece há muito perdida pelos ideólogos ocidentais: o aprendizado e a melhoria de um intercâmbio de ideias com outras formas de pensar de sociedades fora do chamado Ocidente. Uma verdadeira prática de alteridade que, apesar de, por muito tempo, intencionalmente apagada dos manuais de História do pensamento ocidental, foi o que possibilitou a formulação própria de uma ideia de ocidente. Tendo isso em mente o autor dispara: Não há ocidente exatamente por suas bases históricas não serem ocidentais, exatamente pela interdependência da comunidade humana de modos de se pensar coletivamente em escala planetária e não apenas em um grupo ocidental em detrimento de todo o resto (aqui podemos falar que o “resto” do mundo, isto é, o lado não ocidental, corresponde a cerca de mais de 80% da população e das massas de terra mundiais). O tanto que os intelectuais ocidentais se debruçaram sobre a tentativa de elucidar o que é o ocidente e quais são os seus símbolos definidores é uma pista da própria fragilidade do conceito de ocidente que, longamente reiterado, deve ser repetido para que as pessoas não se esqueçam que ele existe simplesmente para disfarçar a sua não existência. Link original < https://www.theguardian.com/world/2016/nov/09/western-civilisation-appiah-reith-lecture >. Segue abaixo o artigo Não existe isso de civilização ocidental, de Kwame Anthony Appiah na íntegra: "NÃO EXISTE ISSO DE CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL" Como muitos ingleses que sofriam de tuberculose no século 19, Sir Edward Burnett Tylor viajou para o exterior por indicação médica, em busca do ar mais seco das regiões mais quentes. Tylor veio de uma próspera família de negócios Quaker, então ele tinha recursos para uma longa viagem. Em 1855, com 20 e poucos anos, ele partiu para o Novo Mundo e, depois de fazer amizade com um arqueólogo quaker que conheceu em suas viagens, acabou cavalgando pelo interior do México, visitando ruínas astecas e pueblos empoeirados. Tylor ficou impressionado com o que chamou de “a evidência de uma imensa população antiga”. E sua estada no México despertou nele um entusiasmo pelo estudo de sociedades distantes, antigas e modernas, que durou pelo resto de sua vida. Em 1871, ele publicou sua obra-prima, Primitive Culture, que pode reivindicar ser o primeiro trabalho da antropologia moderna. Primitive Culture era, em alguns aspectos, uma desavença com outro livro que tinha “cultura” no título: Culture and Anarchy, de Matthew Arnold , uma coletânea lançada apenas dois anos antes. Para Arnold, a cultura era a “busca da nossa perfeição total por meio do conhecimento, em todos os assuntos que mais nos interessam, do que de melhor se pensou e disse no mundo”. Arnold não estava interessado em nada tão restrito quanto o conhecimento de classe: ele tinha em mente um ideal moral e estético, que encontrava expressão na arte, na literatura, na música e na filosofia. Mas Tylor pensou que a palavra poderia significar algo bem diferente e, em parte por razões institucionais, ele percebeu que sim. Tylor acabou sendo nomeado para dirigir o Museu da Universidade de Oxford e, em 1896, foi nomeado para a primeira cadeira de antropologia de lá. É a Tylor mais do que a qualquer outra pessoa que devemos a ideia de que a antropologia é o estudo de algo chamado “cultura”, que ele definiu como “aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, artes, moral, lei, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem como membro da sociedade”. A civilização, como Arnold a entendia, era apenas um dos muitos modos de cultura. Hoje em dia, quando as pessoas falam sobre cultura, geralmente é a noção de Tylor ou de Arnold que elas têm em mente. Os dois conceitos de cultura são, em alguns aspectos, antagônicos. O ideal de Arnold era “o homem de cultura” e ele teria considerado a “cultura primitiva” um oxímoro. Tylor achou absurdo propor que uma pessoa pudesse carecer de cultura. No entanto, essas noções contrastantes de cultura estão interligadas em nosso conceito de cultura ocidental, que muitas pessoas pensam que define a identidade do povo ocidental moderno. Então, deixe-me tentar desvendar algumas de nossas confusões sobre a cultura, tanto tyloriana quanto arnoldiana, do que passamos a chamar de ocidente. Alguém perguntou a Mahatma Gandhi o que ele achava da civilização ocidental e ele respondeu: “Acho que seria uma ideia muito boa”. Infelizmente, como muitas das melhores histórias, esta provavelmente é apócrifa; mas também como muitas das melhores histórias, sobreviveu porque tem sabor de verdade. Mas minha própria resposta teria sido muito diferente: acho que você deveria desistir da própria ideia de civilização ocidental. É, na melhor das hipóteses, fonte de muita confusão e, na pior, um obstáculo para enfrentar alguns dos grandes desafios políticos de nosso tempo. Hesito em discordar até mesmo do Gandhi da lenda, mas acredito que a civilização ocidental não é uma boa ideia, e a cultura ocidental não é uma melhoria. Uma razão para as confusões que a “cultura ocidental” gera, vem das confusões sobre o ocidente. Temos usado a expressão “ocidente” para fazer trabalhos muito diferentes. Rudyard Kipling, o poeta do império da Inglaterra, escreveu: “Oh, o oriente é o oriente e o ocidente é o ocidente, e nunca os dois se encontrarão”, contrastando a Europa e a Ásia, mas ignorando todos os outros lugares. Durante a Guerra Fria, “o ocidente” era um lado da cortina de ferro; “o oriente” era seu oposto e inimigo. Esse uso também efetivamente desconsiderou a maior parte do mundo. Frequentemente, nos últimos anos, “oeste” significa o Atlântico Norte: a Europa e suas ex-colônias na América do Norte. O oposto aqui é um mundo não ocidental na África, Ásia e América Latina – agora apelidado de “sul global” – embora muitas pessoas na América Latina também reivindiquem uma herança ocidental. Esse jeito de falar dá conta do mundo todo. Claro, muitas vezes também falamos hoje do mundo ocidental para contrastá-lo não com o sul, mas com o mundo muçulmano. E os pensadores muçulmanos às vezes falam de maneira paralela, distinguindo entre Dar al-Islam, o lar do Islã, e Dar al-Kufr , o lar da descrença. Eu gostaria de explorar mais essa oposição. Porque os debates europeus e americanos hoje sobre se a cultura ocidental é fundamentalmente cristã herdam uma genealogia na qual a cristandade é substituída pela Europa e depois pela ideia do Ocidente. Essa identidade civilizacional tem raízes que remontam a quase 1.300 anos. Mas, para contar a história completa, precisamos começar ainda mais cedo. Para o historiador grego Heródoto, escrevendo no século V aC, o mundo foi dividido em três partes. A leste ficava a Ásia, ao sul um continente que ele chamava de Líbia e o restante era a Europa. Ele sabia que pessoas, bens e ideias podiam viajar facilmente entre os continentes: ele próprio viajou pelo Nilo até Assuã, e em ambos os lados do Helesponto, a fronteira tradicional entre a Europa e a Ásia. Heródoto confessou estar intrigado, de fato, sobre “por que a terra, que é uma, tem três nomes, todos de mulheres”. Ainda assim, apesar de sua perplexidade, esses continentes eram para os gregos e seus herdeiros romanos as maiores divisões geográficas significativas do mundo. Mas aqui está o ponto importante: não teria ocorrido a Heródoto pensar que esses três nomes correspondiam a três tipos de pessoas: europeus, asiáticos e africanos. Ele nasceu em Halicarnasso - Bodrum na Turquia moderna. No entanto, nascer na Ásia Menor não fazia dele um asiático; isso o tornou um grego. E os celtas, no extremo oeste da Europa, eram muito mais estranhos para ele do que os persas ou os egípcios, sobre os quais ele sabia bastante. Heródoto usa a palavra “europeu” apenas como adjetivo, nunca como substantivo. Por um milênio depois de sua época, ninguém mais falou dos europeus como um povo. Então, a geografia que Heródoto conhecia foi radicalmente reformulada pela ascensão do Islã, que irrompeu da Arábia no século VII, espalhando-se com espantosa rapidez para o norte, leste e oeste. Após a morte do profeta em 632, os árabes conseguiram em apenas 30 anos derrotar o império persa que se estendia pela Ásia central até a Índia, e arrebatar províncias do resíduo de Roma em Bizâncio. A dinastia omíada , que começou em 661, avançou para o oeste no norte da África e para o leste na Ásia central. No início de 711, enviou um exército através do estreito de Gibraltar para a Espanha, que os muçulmanos chamavam de al-Andalus, onde atacou os visigodos que haviam governado grande parte da província romana da Hispânia por dois séculos. Em sete anos, a maior parte da Península Ibérica estava sob domínio muçulmano; só em 1492, quase 800 anos depois, toda a península estava novamente sob a soberania cristã. Os conquistadores muçulmanos da Espanha não planejaram parar nos Pirineus e fizeram tentativas regulares nos primeiros anos de avançar para o norte. Mas perto de Tours, em 732 EC, Charles Martel, avô de Carlos Magno, derrotou as forças de al-Andalus, e esta batalha decisiva acabou efetivamente com as tentativas árabes de conquistar a Europa franca. O historiador do século 18 Edward Gibbon, exagerando um pouco, observou que se os muçulmanos tivessem vencido em Tours, eles poderiam ter navegado pelo Tâmisa. “Talvez”, acrescentou, “a interpretação do Alcorão fosse agora ensinada nas escolas de Oxford, e seus púlpitos pudessem demonstrar a um povo circuncidado a santidade e a verdade da revelação de Maomé.” O que importa para nossos propósitos é que o primeiro uso registrado de uma palavra para europeus como um tipo de pessoa, até onde eu sei, vem dessa história de conflito. Numa crónica latina, escrita em 754 na Espanha, o autor refere-se aos vencedores da Batalha de Tours como “ europenses”, europeus. Então, simplesmente, a própria ideia de um “europeu” foi usada pela primeira vez para contrastar cristãos e muçulmanos. (Mesmo isso, no entanto, é uma simplificação. Em meados do século VIII, grande parte da Europa ainda não era cristã.) Agora, ninguém na Europa medieval teria usado a palavra “ocidental” para esse trabalho. Por um lado, a costa do Marrocos, lar dos mouros, se estende a oeste da Irlanda. Por outro lado, houve governantes muçulmanos na Península Ibérica – parte do continente que Heródoto chamou de Europa – até quase o século XVI. O contraste natural não era entre o Islã e o Ocidente, mas entre a cristandade e o Dar al-Islam , cada um dos quais considerava o outro como infiel, definido por sua descrença. A partir do final do século 14, os turcos que criaram o império otomano gradualmente estenderam seu domínio a partes da Europa: Bulgária, Grécia, Bálcãs e Hungria. Somente em 1529, com a derrota do exército de Solimão, o Magnífico, em Viena, teve início a reconquista da Europa oriental. Foi um processo lento. Não foi até 1699 que os otomanos finalmente perderam suas possessões húngaras; A Grécia tornou-se independente apenas no início do século XIX, a Bulgária ainda mais tarde. Temos, então, uma noção clara da Europa cristã - a cristandade - definindo-se pela oposição. E, no entanto, a mudança da “cristandade” para a “cultura ocidental” não é direta. Por um lado, as classes educadas da Europa cristã tiraram muitas de suas ideias das sociedades pagãs que as precederam. No final do século 12, Chrétien de Troyes, nascido a algumas centenas de quilômetros a sudoeste de Paris, comemorou essas raízes passadas: “A Grécia já teve a maior reputação de cavalheirismo e erudição”, escreveu ele. “Então a cavalaria foi para Roma, assim como todo o aprendizado, que agora chegou à França.” A ideia de que o melhor da cultura da Grécia passou por Roma para a Europa Ocidental tornou-se gradualmente, na Idade Média, um lugar-comum. Na verdade, esse processo tinha um nome. Foi chamado de “ translatio studii ”: a transferência do aprendizado. E foi uma ideia surpreendentemente persistente. Mais de seis séculos depois, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, o grande filósofo alemão, disse aos alunos da escola secundária que dirigia em Nuremberg: “A base do estudo superior deve ser e permanecer a literatura grega em primeiro lugar, a romana em segundo. ” Assim, desde o final da Idade Média até agora, as pessoas pensaram no melhor da cultura da Grécia e de Roma como uma herança civilizacional, transmitida como uma preciosa pepita de ouro, desenterrada da terra pelos gregos, transferida, quando o império romano os conquistou, para Roma. Dividido entre as cortes flamenga e florentina e a República veneziana no Renascimento, seus fragmentos passaram por cidades como Avignon, Paris, Amsterdã, Weimar, Edimburgo e Londres, e finalmente se reuniram – remendados como os cacos quebrados de uma urna grega – nas academias da Europa e dos Estados Unidos. Existem muitas maneiras de embelezar a história da pepita de ouro. Mas todas elas enfrentam uma dificuldade histórica; isto é, se você quiser fazer da pepita de ouro o núcleo de uma civilização oposta ao Islã. Porque a herança clássica que a identifica foi compartilhada com o aprendizado muçulmano. Na Bagdá do califado abássida do século IX, a biblioteca do palácio apresentava as obras de Platão e Aristóteles, Pitágoras e Euclides, traduzidas para o árabe. Nos séculos que Petrarca chamou de Idade das Trevas, quando a Europa cristã deu pouca contribuição ao estudo da filosofia clássica grega e muitos dos textos foram perdidos, essas obras foram preservadas por estudiosos muçulmanos. Grande parte de nossa compreensão moderna da filosofia clássica entre os gregos antigos só temos porque esses textos foram recuperados dos árabes por estudiosos europeus na Renascença. Na mente de seu cronista cristão, como vimos, a batalha de Tours colocou os europeus contra o Islã; mas os muçulmanos de al-Andalus, por mais belicosos que fossem, não achavam que lutar por território significava que não se podia compartilhar ideias. No final do primeiro milênio, as cidades do Califado de Córdoba foram marcadas pela coabitação de judeus, cristãos e muçulmanos, de berberes, visigodos, eslavos e inúmeros outros. Não havia rabinos e estudiosos muçulmanos reconhecidos na corte de Carlos Magno; nas cidades de al-Andalus havia bispos e sinagogas. Recemundus (em árabe Rabi ibn Sid al-Usquf), bispo católico de Elvira, foi o embaixador de Córdoba nas cortes dos impérios bizantino e romano. Hasdai ibn Shaprut, líder da comunidade judaica de Córdoba em meados do século X, não foi apenas um grande estudioso da medicina, foi o presidente do conselho médico do califa; e quando o imperador Constantino em Bizâncio enviou ao califa uma cópia da De Materia Medica de Dioscórides, ele aceitou a sugestão de Ibn Shaprut de traduzi-la para o árabe, e Córdoba tornou-se um dos grandes centros de conhecimento médico da Europa. A tradução para o latim das obras de Ibn Rushd, nascido em Córdoba no século XII, deu início à redescoberta europeia de Aristóteles. Ele era conhecido em latim como Averroes, ou mais comumente apenas como “O Comentarista”, por causa de seus comentários sobre Aristóteles. Portanto, as tradições clássicas destinadas a distinguir a civilização ocidental dos herdeiros dos califados são, na verdade, um ponto de parentesco com eles. Mas a história da pepita de ouro estava fadada a enfrentar dificuldades. Essa história imagina a cultura ocidental como a expressão de uma essência – um algo – que foi passando de mão em mão em sua jornada histórica. As armadilhas desse tipo de essencialismo são evidentes em uma ampla gama de casos. Se você está discutindo religião, nacionalidade, raça ou cultura, as pessoas supõem que uma identidade que sobrevive através do tempo e do espaço deve ser impulsionada por alguma poderosa essência comum. Mas isso é simplesmente um erro. Como era a Inglaterra na época de Chaucer, pai da literatura inglesa, que morreu há mais de 600 anos? Pegue tudo o que você acha que era característico dela, qualquer combinação de costumes, ideias e coisas materiais que tornavam a Inglaterra caracteristicamente inglesa naquela época. O que quer que você escolha para distinguir o inglês agora, não será isso. Em vez disso, com o passar do tempo, cada geração herda o rótulo da anterior; e, a cada geração, a gravadora vem com um legado. Mas à medida que os legados se perdem ou são trocados por outros tesouros, o rótulo segue em frente. E assim, quando alguns de uma geração se mudam do território ao qual a identidade inglesa já esteve ligada – se mudam, por exemplo, para uma Nova Inglaterra – o rótulo pode até mesmo viajar para além do território. Identidades podem ser mantidas unidas por narrativas, em suma, sem essências. Você não pode ser chamado de “inglês” porque há uma essência que esse rótulo segue; você é inglês porque nossas regras determinam que você tem direito ao rótulo por estar de alguma forma conectado a um lugar chamado Inglaterra. Então, como as pessoas do Atlântico Norte e alguns de seus parentes ao redor do mundo se conectaram a um reino que chamamos de ocidente e ganharam uma identidade como participantes de algo chamado cultura ocidental? Isso ajudará a reconhecer que o termo “cultura ocidental” é surpreendentemente moderno – certamente mais recente do que o fonógrafo. Tylor nunca falou sobre isso. E, de fato, não tinha motivos para isso, pois estava profundamente ciente da diversidade cultural interna até mesmo de seu próprio país. Em 1871, ele relatou evidências de bruxaria na zona rural de Somerset. Uma rajada de vento em um pub havia soprado algumas cebolas assadas espetadas com alfinetes para fora da chaminé. “Um”, escreveu Tylor, “tinha o nome de um irmão magistrado meu, a quem o mago, que era o dono da cervejaria, tinha um ódio especial... e de quem aparentemente ele planejava se livrar esfaqueando e assando uma cebola representando-o.” Cultura primitiva, de fato. Assim, a própria ideia de “ocidente”, para nomear um patrimônio e objeto de estudo, não surge realmente até a década de 1890, durante uma era aquecida do imperialismo, e ganha aceitação mais ampla apenas no século XX. Quando, por volta da época da Primeira Guerra Mundial, Oswald Spengler escreveu o influente livro traduzido como A Decadência do Ocidente – um livro que introduziu muitos leitores ao conceito – ele zombou da noção de que havia continuidades entre a cultura ocidental e a cultura do mundo clássico. Durante uma visita aos Bálcãs no final da década de 1930, a escritora e jornalista Rebecca West relatou a sensação de um visitante de que “é desconfortavelmente recente, o golpe que teria esmagado toda a nossa cultura ocidental”. O “golpe recente” em questão foi o (falido) cerco turco de Viena em 1683. Se a noção de cristandade foi um artefato de uma luta militar prolongada contra as forças muçulmanas, nosso conceito moderno de cultura ocidental em grande parte tomou sua forma atual durante a Guerra Fria. No frio da batalha, forjamos uma grande narrativa sobre a democracia ateniense, a Magna Carta, a revolução copernicana e assim por diante. De Platão à OTAN. A cultura ocidental seria, em sua essência, individualista, democrática, liberal, tolerante, progressista, racional e científica. Não importa que a Europa pré-moderna não fosse nada disso, e que até o século passado a democracia fosse a exceção na Europa – algo sobre o qual poucos baluartes do pensamento ocidental tinham algo de bom a dizer. A ideia de que a tolerância era constitutiva de algo chamado cultura ocidental teria surpreendido Edward Burnett Tylor, que, como quaker, havia sido impedido de frequentar as grandes universidades da Inglaterra. Para ser franco: se a cultura ocidental fosse real, não gastaríamos tanto tempo falando sobre ela. É claro que, uma vez que a cultura ocidental pudesse ser um termo elogioso, ela também se tornaria um termo de desaprovação. Os críticos da cultura ocidental, produzindo um fotonegativo enfatizando a escravidão, a subjugação, o racismo, o militarismo e o genocídio, estavam comprometidos com o mesmo essencialismo, mesmo que vissem uma pepita não de ouro, mas de arsênico. Falar de “cultura ocidental” teve uma implausibilidade maior a ser superada. Ele coloca, no centro da identidade, todos os tipos de realizações artísticas e intelectuais exaltadas – filosofia, literatura, arte, música; as coisas que Arnold prezava e os humanistas estudam. Mas se a cultura ocidental estava presente em Troyes no final do século 12, quando Chrétien estava vivo, tinha pouco a ver com a vida da maioria de seus concidadãos, que não sabiam latim ou grego e nunca tinham ouvido falar de Platão. Hoje, a herança clássica não desempenha um papel maior na vida cotidiana da maioria dos americanos ou britânicos. São essas conquistas arnoldianas que nos mantêm unidos? Claro que não. O que nos une, com certeza, é o amplo senso de cultura de Tylor: nossos modos de vestir e de nos cumprimentar, os hábitos de comportamento que moldam as relações entre homens e mulheres, pais e filhos, policiais e civis, balconistas e consumidores. Intelectuais como eu tendem a supor que as coisas com as quais nos importamos são as mais importantes. Eu não digo que eles não importam. Mas eles importam menos do que sugere a história da pepita de ouro. Então, como superamos o abismo aqui? Como conseguimos dizer a nós mesmos que somos herdeiros legítimos de Platão, Tomás de Aquino e Kant, quando o material de nossa existência é mais Beyoncé e Burger King? Bem, fundindo a imagem tyloriana e a arnoldiana, o reino do cotidiano e o reino do ideal. E a chave para isso era algo que já estava presente na obra de Tylor. Lembre-se de sua famosa definição: começou com a cultura como “aquele todo complexo”. O que você está ouvindo é algo que podemos chamar de organicismo. Uma visão da cultura não como um conjunto solto de fragmentos díspares, mas como uma unidade orgânica, cada componente, como os órgãos de um corpo, cuidadosamente adaptado para ocupar um lugar particular, cada parte essencial para o funcionamento do todo. O concurso de música Eurovision, os recortes de Matisse, os diálogos de Platão são partes de um todo maior. Como tal, cada um é um acervo de sua biblioteca cultural, por assim dizer, mesmo que você nunca o tenha verificado pessoalmente. Mesmo que não seja sua comida favorita, ainda é sua herança e posse. O organicismo explicava como nossos eus cotidianos podiam ser polvilhados com ouro. Agora, existem totalidades orgânicas em nossa vida cultural: a música, as palavras, a cenografia e a dança de uma ópera se encaixam e devem se encaixar. É, na palavra inventada por Wagner, uma Gesamtkunstwerk, uma obra de arte total. Mas não existe um grande todo chamado cultura que una organicamente todas essas partes. A Espanha, no coração do “ocidente”, resistiu à democracia liberal por duas gerações depois que ela decolou na Índia e no Japão no “oriente”, lar do despotismo oriental. A herança cultural de Jefferson – liberdade ateniense, liberdade anglo-saxônica – não evitou que os Estados Unidos criassem uma república escravista e, posteriormente, fundamentada no apartheid racial. Ao mesmo tempo, Franz Kafka e Miles Davis podem viver juntos tão facilmente – talvez até mais facilmente – do que Kafka e seu compatriota austro-húngaro Johann Strauss. Você encontrará hip-hop nas ruas de Tóquio. O mesmo se aplica à culinária: os britânicos antes trocavam seu peixe com batatas fritas por frango tikka masala, agora, pelo que entendi, todos estão comendo um cheeky Nando's (rede de restaurantes fast-food britânicos especializada em pratos picantes com frango). Uma vez que abandonamos o organicismo, podemos adotar uma imagem mais cosmopolita na qual cada elemento da cultura, da filosofia ou culinária ao estilo de movimento corporal, é separável em princípio de todos os outros – você realmente pode andar e falar como um afro-americano e pensar com Matthew Arnold e Immanuel Kant, bem como com Martin Luther King e Miles Davis. Nenhuma essência muçulmana impede os habitantes de Dar al-Islam de assumir qualquer coisa da civilização ocidental, incluindo o cristianismo ou a democracia. Nenhuma essência ocidental existe para impedir que um nova-iorquino de qualquer ascendência aceite o Islã. As histórias que contamos que conectam Platão, Aristóteles, Cícero ou Santo Agostinho à cultura contemporânea no mundo do Atlântico Norte têm alguma verdade nelas, é claro. Temos tradições autoconscientes de erudição e argumentação. A ilusão é pensar que basta termos acesso a esses valores, como se fossem faixas de uma playlist do Spotify que nunca ouvimos direito. Se esses pensadores fazem parte de nossa cultura arnoldiana, não há garantia de que o que há de melhor neles continuará a significar algo para os filhos daqueles que agora olham para trás, assim como a centralidade de Aristóteles para o pensamento muçulmano por centenas de anos garante a ele um lugar importante nas culturas muçulmanas modernas. Os valores não são um direito de nascença: você precisa continuar se preocupando com eles. Viver no ocidente, não importa como você o defina, sendo ocidental, não oferece nenhuma garantia de que você se importará com a civilização ocidental. Os valores que os humanistas europeus gostam de defender pertencem tão facilmente a um africano ou a um asiático que os adota com entusiasmo quanto a um europeu. Por essa mesma lógica, é claro, eles não pertencem a um europeu que não se deu ao trabalho de entendê-los e absorvê-los. O mesmo, é claro, é verdade na outra direção. A história da pepita de ouro sugere que não podemos deixar de nos importar com as tradições do “ocidente” porque elas são nossas: na verdade, o oposto é verdadeiro. Eles só são nossos se nos importarmos com eles. Uma cultura de liberdade, tolerância e investigação racional: seria uma boa ideia. Mas esses valores representam escolhas a serem feitas, No ano da morte de Edward Burnett Tylor, o que aprendemos a chamar de civilização ocidental tropeçou em uma luta mortal consigo mesma: os Aliados e as Grandes Potências Centrais lançaram corpos uns contra os outros, marchando jovens para a morte a fim de “defender civilização". Os campos encharcados de sangue e as trincheiras envenenadas por gás teriam chocado as esperanças evolucionistas e progressistas de Tylor e confirmado os piores temores de Arnold sobre o que a civilização realmente significava. Arnold e Tylor teriam concordado, pelo menos, nisso: a cultura não é uma caixa a ser verificada no questionário da humanidade; é um processo ao qual você se junta, uma vida vivida com os outros. A cultura – como religião, nação e raça – fornece uma fonte de identidade para os seres humanos contemporâneos. E, como todos os três, pode se tornar uma forma de confinamento, erros conceituais subscrevendo erros morais. Mas todos eles também podem dar contornos à nossa liberdade. As identidades sociais conectam a pequena escala onde vivemos nossas vidas ao lado de nossos amigos e parentes com movimentos, causas e preocupações maiores. Eles podem tornar um mundo mais amplo, inteligente, vivo e urgente. Eles podem expandir nossos horizontes para comunidades maiores do que aquelas que habitamos pessoalmente. Mas nossas vidas também devem fazer sentido, na maior de todas as escalas. Vivemos uma era em que nossas ações, tanto no campo da ideologia quanto no campo da tecnologia, têm cada vez mais efeitos globais. Quando se trata da bússola de nossa preocupação e compaixão, a humanidade como um todo não é um horizonte muito amplo. Vivemos com sete bilhões de seres humanos em um planeta pequeno e em aquecimento. O impulso cosmopolita que se inspira em nossa humanidade comum não é mais um luxo; tornou-se uma necessidade. E para resumir esse credo posso contar com uma presença frequente em cursos de civilização ocidental, porque não acho que possa melhorar a formulação do dramaturgo Terence: um ex-escravo da África romana, um intérprete latino de comédias gregas, um escritor da Europa clássica que se autodenominava Terêncio, o Africano. Certa vez, ele escreveu: “ Homo sum, humani nihil a me alienum puto ”. “Eu sou humano, não acho nada humano estranho para mim.” Aqui há uma identidade que vale a pena manter. Esta é uma versão editada da palestra de Kwame Anthony Appiah na BBC Reith, Culture, a quarta parte da série Mistaken Identities, que está disponível no site da Radio 4 e no jornal The Guardian.

  • O PCB “na encruzilhada de sua unidade contraditória”

    Por Fernando Savella Fonte: Canibalismo de outono, 1936, Picasso. Nas últimas semanas, escrevi e reescrevi muitos textos na tentativa de caracterizar e tornar mais claro para mim mesmo o processo de cisão do Partido Comunista Brasileiro. Não acredito, como alguns dizem, que essa seria a “maior crise” da história do Partido - basta uma olhada na história dos comunistas no Brasil para saber que já balançamos bem mais que isso. A verdade é que inúmeras relações de confiança (pessoal e política) foram quebradas, a construção passional de identidades contraditórias no interior do Partido se tornou a regra, velhos amigos rifando a dignidade uns dos outros em nome da construção de uma versão pura de um Partido que é tudo menos puro. É verdade que existiam inúmeras tensões que se expressavam mais ou menos como um conflito geracional, e que existiam diferentes concepções de forma partidária dentro do Partido. Mas tudo isso é natural, a divergência e sua intensidade não são problema se levarmos a sério as relações de camaradagem e a unidade dos comunistas. O que não é natural, e a meu ver não foi a causa da cisão mas sim seu ponto de precipitação, é a quebra da camaradagem e unidade no marco de levar às últimas consequências as divergências. Por que digo que não foi a causa? Bem, tanto do lado do PCB quanto do recente racha, o PCB- Reconstrução Revolucionária (PCB-RR), se produz uma narrativa que coloca na raiz do problema a quebra da unidade. O PCB-RR, em primeiro lugar, acusa o Comitê Central (CC), e mais especificamente seu burô, a Comissão Política Nacional (CPN), não apenas de descumprir resoluções do XVI Congresso (2021), mas de caçar os divergentes (que seriam “a minoria” no congresso) por meio de processos disciplinares. A participação de membros da CPN na Plataforma Mundial Anti-Imperialista (PMAI, pró-Rússia), o não estabelecimento da tribuna interna de debates permanente e da cotização progressiva, bem como um suposto descompromisso em cumprir com a linha política de autonomia classista aprovada no congresso; são todos pontos levantados ao longo do debate e no manifesto de fundação do PCB-RR, apontando para uma quebra da unidade forjada no XVI Congresso, por parte da própria direção do Partido. Do outro lado, em suas comunicações oficiais e mediações internas, o CC e direções estaduais acusam os membros do PCB-RR de quebra da unidade, destacando aí, também, os motivos da cisão. Apontam para a articulação já antiga, anterior ao XVI Congresso, de um grupo fracionista no interior do Partido, supostamente com o objetivo de “tomar de assalto” a direção a despeito de terem sido minoritários no espaço soberano de nosso partido, o congresso. A organização de instrumentos paralelos de agitação e propaganda (entre canais virtuais, editoras e plataformas online), produção literária com a finalidade de disputar a linha partidária por fora de seus espaços próprios e, por fim, o episódio fatídico das denúncias em redes sociais a partir de junho de 2023; são todos pontos levantados apontando para uma quebra da mesma unidade forjada nos últimos congressos, por parte de alguns dos principais quadros públicos do Partido, hoje organizados no PCB-RR. São inúmeros episódios e acusações que compõem o mosaico ultra-complexo do que tem significado o debate dentro e fora do Partido acerca de sua cisão. Cada militante privilegia um ou outro ponto ao formular sua posição, e os espaços coletivos têm sido marcados pelo debate exaustivo em torno de cada detalhe de cada decisão/ação dos dirigentes atuais de um ou outro lado da cisão. Aqui quero abordar algumas razões mais gerais, a começar explicando porque não acredito que a “quebra da unidade” seria, em si, causa da cisão por qualquer lado que seja. Dou duas razões: 1) o que está em jogo no PCB são duas temporalidades distintas; 2) não faz sentido defender a unidade através da cisão. O que está em jogo no PCB são duas temporalidades distintas É impossível ter militado no PCB pelos últimos anos e ainda estar surpreso com a intensidade e caráter da cisão. A contradição que a move esteve presente na nossa prática cotidiana como um fantasma pressuposto em cada diálogo entre bases e direções, entre Partido e coletivos. Não é uma contradição exclusiva entre CC e base partidária, ou entre PCB e cada coletivo em sua particularidade, mas uma contradição que opõe duas formas de construção do Partido que em geral se organizam em torno do famoso problema geracional. Trata-se de duas temporalidades distintas que nascem de concepções também distintas de ação, algo que nunca chegou a ser tratado explicitamente exceto em conversas paralelas entre os militantes. O camarada Gabriel Colombo criticou estes dias, em suas redes sociais, uma ideia que representa bem a oposição dessas temporalidades: a de que o Partido seria como um transatlântico, que demora a manobrar. É uma concepção vinculada a uma leitura de longa duração histórica e muito vinculada ao estado em que as lutas de classe se encontram atualmente. O movimento comunista, hoje, não pode ser nada mais do que vacilante, já que trata-se de um movimento diminuto e pouco representativo, não diretamente vinculado às tendências de movimentação próprias da classe trabalhadora. O movimento comunista não põe as massas em movimento, e nem é capaz de fazê-lo, independentemente das palavras de ordem que escolha, e os movimentos da classe trabalhadora em geral são movimentos conformes à ideologia e política dominantes. Desse ponto de vista, o fato de que demoramos alguns anos para superar determinadas deficiências e o fato de que algumas resistências corporativas entrarão em jogo, não são de especial importância para a dinâmica das lutas de classe. Seriam apenas ossos do ofício, de um partido em um momento de refluxo mundial das lutas de classe em voga desde os anos 1980. Sem dúvidas, essa concepção não agrada àquele que se considera um leninista “ortodoxo”. A outra temporalidade é precisamente o contrário da anterior, e leva consigo a ideia de que todo aspecto da luta é um aspecto urgente e que os movimentos e correções do movimento comunista devem ser rápidas e precisas, de forma a potencializar seus efeitos nas lutas de classe. Ao contrário de um transatlântico, o Partido poderia se assemelhar mais a um felino, talvez. O senso de urgência aqui não é gratuito. É muito socialmente demarcado pelo fato de que as soluções políticas para o genocídio de nossa classe, o desemprego, a precarização do trabalho, o enlouquecimento da subjetivação neoliberal, são necessariamente urgentes. Sua pressão é marcada pelo problema geracional muito especialmente porque a juventude se organiza por essa urgência, enquanto a “velha guarda” é legatária de outras lutas, pela sedimentação das lutas sindicais e outros instrumentos da luta política. Notem que essa contradição só faz sentido real no contexto do movimento comunista. Dentro do reformismo a urgência dos problemas sociais é combinada com a superficialidade e imediaticidade da disputa institucional, que funciona também sempre com base em resultados imediatos, sendo ou não do interesse objetivo da classe, e numa lógica de constante reação aos movimentos da classe dominante (portanto, sempre subordinados a ela). No movimento comunista, é necessário conjugar senso de urgência com estratégia racional e objetivação de interesses autônomos de classe (que não aparecem de forma homogênea e muito menos linear na experiência de cada trabalhador). É por essa contradição que podemos ver de maneira tão marcada, de um lado, as acusações de “imediatismo” imbuído nas manifestações em redes sociais e pedidos de antecipação de espaços internos, o apontamento de que logo teríamos a Conferência Política do PCB; e de outro, as acusações de “inércia” imbuída no atraso no cumprimento das resoluções, na demora das respostas e comunicações internas, falta de uma política “decidida” de oposição ao governo Lula-Alckmin, etc. Eu digo que essa é a principal razão da cisão por um motivo simples: os camaradas expulsos do CC em julho explicitaram diversos pontos objetivos para suas críticas públicas, muitas entre as que enumerei de início. Mas a grande maioria dos militantes que os seguiram no processo de cisão não o fizeram por se apropriar e conhecer de fato as ações de nosso CC, ter desenvolvido nos últimos anos uma leitura crítica do mesmo. Basta observar que são poucos aqueles que apontam aspectos adicionais para sua crítica, e quando o fazem, são precisamente críticas relacionadas ao problema da temporalidade e de suas consequências diretas. Isso é algo comum. Uma determinada pauta é levantada publicamente, mas seu apoio massivo se deve à homologia da mesma com outras experiências, e não porque ela secretamente já havia sido incorporada sistematicamente por todos os seus sucessivos partidários. Isso é especialmente visível quando observamos os principais pontos de tensão no desenvolvimento dos focos locais da cisão. A mesma oposição que era organizada entre bases e direções pela lentidão de repasses e comunicação, ou pela divergência sobre a altivez em determinadas frentes de atuação, hoje é organizada pelos argumentos levantados no processo de cisão. Se a coisa se tratasse de diferentes opiniões puramente sobre o comportamento correto ou incorreto do CC ou do PCB-RR, teríamos outras tendências no interior do Partido, muito mais diversamente distribuídas. Por isso mesmo me importaria muito pouco os pontos colocados na polêmica da PMAI, por exemplo, ou da tribuna interna permanente, se tivéssemos uma situação de maior coerência e de busca de consensos no interior do Partido. Também me preocuparia mais caso a falta de coerência e de busca de consensos no interior do Partido fosse puramente uma questão de egos ou de determinados oportunistas buscando uma ou outra posição de prestígio. Vejam camaradas, assim como a urgência tem uma razão de existir, também tem o senso de longa duração histórica e do “transatlântico”. O Partido é composto majoritariamente por trabalho voluntário, e eu mesmo já me deparei inúmeras vezes com a incapacidade de realizar certas coisas em velocidade na posição de dirigente, dadas limitações físicas minhas e de outros camaradas. Diversas vezes enfrentei críticas severas sobre a velocidade de determinada ação, ou sobre não ter dirigido o Partido de forma enérgica o suficiente para dar conta de determinada demanda. Se pegarmos as acusações do “giro à direita” (ao qual me dedicarei mais tarde), poderiam muito bem ser aplicadas ao PCB Campinas, local onde milito, por razões de inoperância de uma militância altamente precarizada no trabalho. O PCB Campinas deixou de participar ativamente de greves, atos, pequenas explosões políticas que poderiam sim ter sido aproveitadas e potencializadas. Mas o PCB Campinas não é um pequeno exército remunerado pronto a realizar qualquer manobra precisa, e sim um agrupamento de trabalhadores com poucas horas disponíveis por semana, que tocam suas tarefas permanentes em seu dia a dia a muito custo. O fato do PCB se organizar hoje (acredito ser correta essa crítica) como uma federação e não como um partido centralizado na forma clássica leninista é precisamente por conta da dificuldade das bases em organizar os trabalhos propostos centralmente pelo Partido e uma ineficiência de órgãos centrais que muitas vezes beira, sim, a irresponsabilidade para com o desenvolvimento do Partido em diferentes cantos do país. Com diferentes incidências, mesmo uma tarefa teoricamente simples como a distribuição de jornais se torna uma tarefa de difícil operacionalização a depender da dinâmica da militância em cada localidade e de sua sincronia com o processo centralizado da agitação e propaganda. A atuação sindical também é muito desigualmente distribuída por diferentes incidências em cada local de trabalho. Et cetera. Esses são problemas a serem superados, evidentemente. Não estou defendendo a continuidade de qualquer coisa, mas apontando para uma razão que não é tão visível e que não corrobora com o grande peso passional e decisivo do processo de cisão, de ambos os lados. Mas vamos para o segundo ponto. Não faz sentido defender a unidade através da cisão Este parece um ponto de crítica ao PCB-RR, mas na verdade é uma crítica ao PCB-RR e aos comitês do PCB. Como os dois lados se utilizaram de acusações sobre a quebra da unidade partidária, e esta está no centro do debate e das preocupações de todos os envolvidos, cabe avaliar o seu sentido, uma vez reconhecidas as razões de fundo da cisão (novamente, enquanto processo, e não enquanto intencionalidade de seus líderes). Aqui vou para a problemática da resolução do problema e dos equívocos que jogaram tudo para o ar. Por parte da estrutura partidária que hoje conforma, objetivamente, o PCB, o problema da unidade não é coerente com seu modus operandi. É claro que a defesa da unidade tem o seu limite explícito, que é lidar com um racha deflagrado, a saída de alguns militantes e a organização de um partido paralelo que inclusive reivindica o nome do PCB histórico. Não é possível ou aceitável, nessas condições, defender a unidade com uma outra organização que já é criada no marco de rejeitar e se opor ao PCB. A incoerência vem em sua ação interna, antes e depois da precipitação do racha. A manutenção da disciplina partidária, que deve mesmo ser mantida, foi e ainda é compreendida mais como uma imposição do que como um processo de convencimento, e a postura enérgica da “minoria”, i.e. os camaradas ou grupos de camaradas constituídos como oposições a determinados dirigentes vinculados ao CC e aos CRs, foi tratada sempre como desvio (chovendo acusações de “formação de tendência” em diversas localidades) e nunca como disputa legítima. Já estava sendo implantada na cultura política partidária uma concepção generalizada de duas ou mais alas dentro do Partido, e nunca de uma unidade obstinada na divergência. As diversas experiências dessa espécie se congregam hoje numa experiência compartilhada que dá sentido à adesão ao racha ou à proposta do congresso extraordinário: é a vontade universal de ser ouvido, estar em plenárias, estar no espaço democrático soberano do Partido, de ter suas críticas apreciadas, etc. Faço, aqui, minhas as palavras do camarada Jácome, com quem tenho a honra de compartilhar quase a integralidade de minha trajetória militante: “Os camaradas do CC atual e seus defensores, caso tivessem tido um compromisso com a disputa necessária para resolver os desafios colocados, teriam levado o último Congresso às consequências de um embate verdadeiro, mas, ao contrário, obviamente buscou coroar sua inaptidão com uma aliança congressual artificial entre setores inconciliáveis (lembrem-se, acordo não se faz sozinho); uma inaptidão em sentir os anseios da base que se arrastou durante anos e, por isso, deixou de ter a capacidade de captar, ditar a velocidade e os métodos para implementação das mudanças necessárias pro crescimento organizativo.” (Do texto “Crise”, publicado na Revista Barravento em 07 de agosto). O fato de que estão chovendo pedidos de plenárias em diversas localidades é menos evidência de uma articulação nacional fracionista do que do fato de que boa parte da militância sempre demandou por mais espaços amplos de discussão e alcançamos um ponto de precipitação pública dessa demanda por meio do esforço fracionista. Da parte daqueles que se organizam no PCB-RR, a relação com a unidade ainda é outra. Para além da contradição imediata entre a defesa da unidade e a criação de um partido paralelo, objetivamente dividindo o PCB, existem dois problemas ainda maiores. Primeiramente, é evidente a indisposição em participar dos espaços internos sem buscar alterar a correlação de forças para tal por fora desses mesmos espaços - o que configura, evidentemente, o fracionismo. O espaço da Conferência Política poderia ter sido usado para disputar o ponto de vista que acabou sendo transbordado para as redes sociais e que se tornou uma construção artificial de maioria para justificar a quebra última da unidade partidária. Vejam camaradas, não há qualquer evidência de que a posição defendida pelos camaradas do PCB-RR seja majoritária, de forma a recair sobre o CC a responsabilidade última por quebrar a unidade partidária. Seu caráter majoritário, se há algum, foi forjado na aparência de massas das redes sociais. Discordo, ainda assim, da leitura de que o fracionismo é uma manobra oportunista para tomar de assalto a direção do Partido. Trata-se de uma expressão latente de uma das temporalidades em jogo na nossa trajetória recente. Considero que os camaradas do PCB-RR, mesmo seus cabeças, agem por convicção no valor de suas divergências e no caráter inconciliável das mesmas. O que não significa estar de acordo com o transbordamento da estrutura partidária, e muito menos com a criação de um mais um PC no país. Em segundo lugar, a deflagração do racha foi, na prática, um racha também no seio do agrupamento de todos aqueles militantes que são críticos à atual condução do Partido. A tática adotada é divisionista neste outro nível pois implica que, além de dividirmos o PCB em dois, diminuindo radicalmente a potencialidade de ambas as organizações, as condições de disputa do PCB “que fica” estão radicalmente erodidas. Não porque agora estamos todos “na mão” de uma direção maquiavélica, mas porque dentro do Partido subsistem agora menos pontos de vista, menos mãos a trabalhar pelas lutas de classe capazes de disputar uma linha justa para o movimento comunista. E o mesmo é válido para o PCB-RR. Um dos princípios do centralismo democrático é a síntese da heterogeneidade das experiências e lutas da vanguarda da classe trabalhadora. Quanto mais dividimos, com base nessa mesma heterogeneidade, menor é a capacidade da classe de organizar sua vanguarda e menor é a capacidade dessa vanguarda para colocar a classe em movimento. É nesse sentido que digo que o leninismo “ortodoxo” que tem se desenvolvido no seio da cisão, por mais que se apóie nas letras de Lenin acerca da organização do partido nas primeiras décadas do século XX, buscando espelhá-la, agem como anti-leninistas, no sentido de secundarizar a capacidade organizativa de nossa classe. Os dois lados trabalham com um conceito que acredito ser deletério nesse processo: depuração. É como se o processo de cisão separasse o joio do trigo, e para qualquer um dos lados, permitisse que aqueles mais comprometidos ou portadores da linha correta agissem sem as amarras daqueles que pressionaram por uma linha rebaixada ou pelo descomprometimento, reformismo, etc. Se por um lado o CC sustenta tal narrativa acusando os fracionistas de tentarem liquidar o PCB enquanto tal, sem muito refinamento acerca da origem objetiva desse movimento, o PCB-RR em seu manifesto tenta dar sentido ao problema acusando o CC de operar um giro à direita na política partidária. Gostaria de me ater a esse tema antes de irmos aos finalmentes. E o giro à direita? No manifesto do PCB-RR, seus autores acusam o CC do PCB de operar um giro à direita. Apesar de giro, para além do manifesto, ser acusado em diversos momentos e com diversos outros exemplos corriqueiros, bem como implicando numa intencionalidade de determinadas direções individuais, vou me ater ao que o manifesto aponta explicitamente. O primeiro indício, argumentam, foi o abandono das candidaturas próprias e a adesão à campanha de Boulos e Guajajara em 2018. Por mais que se possa fazer um balanço negativo do campo político que se conformou em torno da candidatura e dos territórios sem medo, realmente não vejo como caracterizar esse apoio como parte de um giro à direita. Tratou-se, pela primeira vez, de uma candidatura psolista que congregou diversos movimentos sociais relevantes (entre eles o movimento sem teto e o movimento indígena), terreno fértil para o desenvolvimento de cooperações a serem disputadas na forma da hegemonia de nosso partido. Para além disso, alianças com o PSOL em diversos outros níveis nunca foram questionados e inclusive foram apoiados por dirigentes que hoje dirigem o PCB-RR, a exemplo das alianças no movimento estudantil com a juventude do MES. Eu apoio a aproximação com diversas outras forças cuja única ligação conosco é o chamado “campo de esquerda”, como partidos e figuras como Glauber Braga e José Genoíno, considero figuras importantíssimas do nosso lado das lutas de classe, compreendendo que determinados alinhamentos excedem o Partido e devem nortear inclusive nosso rol de alianças. Como defendi e sigo defendendo a nossa escolha em apoiar a candidatura de Boulos e Guajajara, nesses mesmos marcos defendi, por exemplo, o apoio à candidatura de Pedro Tourinho (PT) à prefeitura de Campinas em 2020, posição majoritária do Partido na cidade que sofreu forte resistência por parte da direção estadual. Que seguidismo é esse que se opõe a alianças com o campo reformista? E que crítica ao seguidismo é essa que parte, por si própria, do apoio a figuras e organizações do campo reformista? O exemplo seguinte é o apoio do PCB à chapa majoritária nas eleições da APEOESP (2023). Não elaboram os motivos para abordar a questão além de partir da suposição de que é evidente. O apoio à chapa majoritária se deu para respeitar os alinhamentos de nossa militância nas subsedes do sindicato, um movimento pensado para potencializar nossa atuação nas bases desse sindicato a partir da inserção no conselho estadual da entidade. É uma posição defendida inclusive por muitos camaradas da base que disputam o disputam. É evidente que uma aliança desse tipo gera uma série de desconfianças, e gerou, mas, novamente, parte dos mesmos que defendem intransigentemente uma série de outras alianças que podem ser acusadas de escusas, com organizações famosas por fraudes e por privilegiar o hegemonismo à construção do movimento comunista. Por fim, o que considero o ponto mais equivocado, a tática do PCB sob o governo Bolsonaro. A argumentação é que o PCB teria ficado subordinado às frentes de esquerda, à pauta do impeachment e deixando de puxar o que seriam as palavras de ordem e alinhamentos corretos, como a greve geral. Camaradas, mesmo frente às linhas majoritárias que buscavam pacificar as movimentações de rua até as eleições e, no máximo, chamar por uma solução institucional, o PCB defendeu intransigentemente em quase todo canto do país a manutenção das mobilizações - e quem construiu os atos sabe como se deu essa dinâmica frente ao campo democrático-popular - e com uma linha de denúncia da política econômica de Bolsonaro sintetizada no foco em seu governo militarista, e não em sua figura caricata (a palavra de ordem “Fora Bolsonaro e Mourão”). A participação do PCB nas frentes e fóruns se deu muito mais para potencializar nossa ação na tendência de mobilização de massas e disputar seu sentido do que um “seguidismo” inerte. É claro que não conseguimos hegemonizar o movimento com uma linha autônoma, mas cabe a pergunta: teríamos conseguido nos destacando dos demais partidos e movimentos? A adesão à frente Fora Bolsonaro foi central para diversas articulações locais, o crescimento do Partido e o nosso reconhecimento frente às populações - digo isso com muito conhecimento de causa, por ter organizado diretamente nossa participação nos atos e acompanhado seus efeitos. Adicionalmente, os autores do manifesto também parecem acreditar que é evidente que a palavra de ordem pela greve geral seria de alguma forma mais avançada, e aqui discordo novamente: em 2021 fazia menos de dois anos que passamos por uma greve geral totalmente fracassada, expressão de que o campo reformista não tinha qualquer pretensão de enfrentamento e de que o campo da esquerda radical não possuía qualquer nível de hegemonia dentro do movimento sindical. Não acredito ser consequente balizarmos uma política nacional por uma tática que sabidamente iria fracassar. Em 2021 não tínhamos qualquer condição superior àquelas de 2019 para viabilizar uma greve geral, ou mesmo um ensaio de greve geral. Já sob o governo Lula-Alckmin, tampouco o PCB efetivou um giro à direita ou subordinado ao novo governo. Basta observarmos a linha estampada no Jornal Poder Popular (JPP), principal suporte de circulação de nossa linha política. A edição de julho tem a manchete: “Governe quem governe, direitos se defendem”, dando continuidade a uma crítica já duradoura à política econômica do governo. Se o horizonte do PCB hoje fosse de fato uma revolução burguesa sob uma concepção etapista, não seria o caso de amaciar as críticas ao governo burguês e buscar compor com suas políticas? Especialmente sob um governo que se auto-compreende como um governo reformista de esquerda, democratizante, etc? Se há algum tipo de recuo, este recuo se dá por limitações organizativas de ação, e não por uma alteração na linha política partidária. Para onde vamos? E está aí o motivo pelo qual dei tanta atenção à questão do “giro à direita”. O problema posto não é de linha - e este é elencado, a meu ver, somente para dar força à argumentação pró-cisão -, mas de organização e da conformação de duas alas em constante conflito dentro do Partido. Não existe mais disposição de diálogo dentro do Partido, e de um lado ou de outro a postura aponta para a necessidade de seguir separados e abandonar a unidade parcial dos comunistas expressa pela existência do PCB (tendo em vista a existência de diversos outros partidos e agremiações, estamos longe de uma unidade decisiva dos comunistas no Brasil). Por isso parafraseio Agustín Cueva no título deste texto, do original “A América Latina na encruzilhada de sua unidade contraditória”: a unidade que define um partido não é uma unidade abstrata, que designa um objeto apenas para diferenciá-lo de todos os outros fenômenos. A unidade é construída enquanto ideia, inclusive a partir de argumentos e razões distintas entre si, sempre buscando criar uma identidade capaz de representar mesmo as contraditoriedades em seu interior. O sentido e significado dessa unidade tem se tornado cada vez mais diverso, minando também a objetividade de nossa unidade, ao ponto de deixar de existir. Ainda acredito, convictamente, que a melhor solução para o impasse da cisão seria a realização de um congresso extraordinário, ainda que mesmo a realização da Conferência Política pudesse ser um espaço muito significativo no rumo da resolução dos problemas internos do Partido. No entanto, acredito que tanto um possível congresso quanto a conferência deixaram de ter, concretamente, essa potencialidade. É quase de uma ingenuidade habermasiana acreditar, a esse ponto, que o simples diálogo vai resolver qualquer coisa. O que se desenha é a conformação de dois partidos, com linhas políticas quase idênticas, mas que não são capazes de mediar uma prática em comum. E não há nisso aquela infantilidade que a reação normalmente atribui aos comunistas: “como fazer uma revolução se não conseguem nem concordar entre si?” O que há, sim, são expressões de diferentes práticas políticas num período não revolucionário. A cisão atrasa o trabalho dos comunistas? Sim. Mas o nosso trabalho continua, e mais cedo ou mais tarde o salto será ainda maior do que esperamos alcançar hoje. Historicamente, mesmo depois de intensas divergências e cisões, a classe trabalhadora conseguiu, através de diferentes operadores políticos, estabelecer seu poder político independentemente das provocações caricatas de reacionários sobre nossa unidade. Presenciamos a precipitação mútua de uma cisão do Partido Comunista Brasileiro. Apesar de acreditar que o resultado será o aprofundamento dessa cisão, sigo defendendo intransigentemente a unidade dos divergentes e a defesa do Partido enquanto a estrutura que objetivamente o conforma: o Comitê Central eleito no XVI Congresso, suas instâncias intermediárias e a realização de seus espaços deliberativos estritamente através de sua estrutura presente, legitimada em congresso. Se há a mínima possibilidade de sairmos fortalecidos (ou menos enfraquecidos), ela está nessa via, e não na assunção da divisão como forma de resolver divergências ou disputas intra-partidárias. Um dos pressupostos dessa via, no entanto, é reconhecer a divergência como expressão partidária, e não de maneira conspiracionista. Se a cisão é um processo mais profundo do que a simples articulação de determinados camaradas que possam ser acusados de fracionismo, também são as suas expressões. Nem toda revolta é articulação fracionista, nem toda proposta de congresso é articulação fracionista, nem toda defesa do Comitê Central é uma sujeição e nem todo passo do PCB é parte de uma conspiração “à direita”. Camaradas, toda a militância do Partido, com suas tendências coletivas, está sendo esquecida em nome da personalização do problema em CC ou fracionistas. Aí reside o anti-materialismo. Modalidades do processo Deixei de fora muitos pontos que estão no topo do debate nestes tempos. O “acordão” no XVI Congresso, os processos disciplinares, as circulares internas. Mas deixei de fora porque acredito que sejam questões menores, honestamente. O que chamam de “pequena política”, as críticas pontuais que podem ser assumidas e eventualmente são assumidas por seus objetos e foram o centro dinâmico dos estados sucessivos do debate, são modalidades do problema mais geral. No entanto, ainda que “pequena política”, é o seu conteúdo que determina diversas tendências do processo, entre elas, o abandono ou não abandono da disputa por parte da direção partidária. Ao reduzir todo o problema a uma de suas modalidades (a tática do racha) e toda uma gama de contradições internas a “fracionismo” a ser respondido pela expulsão, o PCB se exime de disputar os rumos da cisão e assume que é a parte mais fraca no terreno da polêmica. “Deixemos que vão!” - e no final das contas só sobrará um partido em retalhos, com seus pontos fortes, é claro, mas com debilidades muito evitáveis. Já perdemos e estamos a ponto de perder trabalhos de anos em cidades inteiras por pura negligência da disputa e reducionismo que atenta contra o caráter e a dignidade de inúmeros militantes que constroem nossa organização há anos. A primeira nota pública veiculada pelo PCB, “A crise do capital e o novo liquidacionismo” é uma boa expressão do nível de abandono (e de negligência até de análise, jogando na conta abstrata da “crise do capital” um processo extremamente particular, sem explicitar qualquer mediação entre uma coisa e outra) por taxar toda divergência dentro do Partido neste contexto como expressão de uma militância distante do trabalho de base e reclusa às redes sociais. Ao invés de pôr em questão as críticas trazidas nesse bojo, acusam seus próprios militantes abnegados e disciplinados que compartilham das críticas: “são twitteiros!” Isso antes de falar nas práticas já constantes e muito comuns de assédio moral e perseguição velada. Assédio e perseguição não são táticas restritas às direções nacionais ou estaduais. A prática de tentar se livrar de alguém “indesejado” em determinado espaço (seja por divergência, seja por convivência), muitas vezes justificado por uma busca da coesão nos espaços de militância de base ou de direção, é presente em células partidárias, núcleos de coletivos, direções partidárias e direções de coletivos. A difamação e o isolamento político são as maneiras mais comuns de dar cabo do divergente, levar à sua quebra, à militância independente ou a outros partidos. Isso é tanto mais comum conforme determinados espaços são constituídos como verdadeiros “clubes”. São correntes acusações de “amiguismo” em diversas instâncias partidárias e de coletivos (e bem, não só no PCB como ainda menos no PCB do que em outras organizações que conhecemos), o que geralmente é tratado como desconhecimento de como se dão os debates dentro da instância: “mas você não sabe que discordamos muito em reunião, o pau quebra!” E, no entanto, a tendência é o isolamento dos minoritários e a pressão. Claro que isso não implica diretamente em “amiguismo”, mas no mínimo… “coleguismo”, e nunca camaradagem. Isso não é um atestado de falência do Partido, ou uma crítica moral a qualquer um de nossos militantes. É um apontamento de práticas que devem ser extirpadas dos nossos meios, uma vez reconhecidas. Conheci diversas pessoas boas que incorrem nesses meios acreditando que é o melhor para os trabalhos do núcleo, o melhor para os trabalhos da direção, etc. Do outro lado, apesar de discordar da tática adotada, é muito compreensível humanamente adotar uma via de ruptura uma vez que se sofre uma série de assédios e puro isolamento no interior de sua organização - a meu ver, é uma fetichização da própria direção acreditar que essas práticas sejam um atestado de falência (a ponto de se dizer que o Partido teria sido “sequestrado” pelas suas direções) enquanto ainda temos os espaços internos e especialmente o congressual para vias coletivas de resolução. Mas ainda assim, muito compreensível. Apesar de seguirmos por caminhos distintos, ainda nutro o mesmo respeito de sempre por muitos camaradas que estão se juntando ao PCB-RR, e muitas concordâncias. Também compreendo que sair do PCB e ir para outra organização não significa a extinção dessas práticas. Para além delas persistirem em todos os partidos que conheço, o novo partido sendo formado também não está livre de qualquer coisa somente por ser novo. O que se conforma, hoje, é a transformação da UJC na matriz organizativa do novo partido (não sem culpa do nosso Comitê Central no cartório), juventude da qual fiz parte por 6 anos com muito orgulho. Justamente por isso, conheço e me preocupo com seus vícios, e o quanto os vícios do Partido podem estar sendo substituídos pelos mesmos que subjazem na ala que conforma hoje, outro, sem que seja feita a autocrítica necessária para sua superação. A nós que ficamos, cabe não perder a energia para fortalecer a unidade partidária que nos resta construir, e parte necessária disso é combater as modalidades pelas quais a cisão se desenvolveu: contra todo assédio moral, contra as expulsões sumárias, contra a desumanização dos comunistas. Por um processo aberto de crítica e de revisão na Conferência Política e no próximo Congresso, rumo a mais cem anos de história.

  • A crise do movimento comunista: breves notas sobre a forma partido.

    Por Ayrton Otoni Nos últimos dias, grande parte da esquerda brasileira voltou seus olhos para crise/ruptura do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Com todas as divergências teóricas, nenhum militante pode enxergar essa cisão com algum nível de satisfação. A crise instaurada no Partido Comunista Brasileiro expressa algo relevante e sintomático do último período: o desgaste da forma partidária e as consequências disso para a vida militante. Apontar o desgaste da forma partidária, não significa aqui, de nenhuma maneira, fazer coro com as teses que defendem o fim de organismos centralizados da classe trabalhadora ou ser mensageiro da "novidade" propondo formas horizontais e rizomáticas (como se propõe a concepção pós-moderna), mas compreender que as condições objetivas exigem mais do que as estruturas partidárias hoje tendem a oferecer. A construção de uma forma organizativa que tenha capilaridade na classe trabalhadora, ainda parece ser motivo de aflição. 1. A máquina de moer militantes. Sabemos o papel fundamental das organizações de esquerda no processo de recrutamento e formação política, principalmente no que tange ao ingresso de jovens militantes na luta política. As frentes de juventude, as entidades de base, os congressos estudantis, as mobilizações de jovens trabalhadores, são por muitas vezes a porta de entrada para milhares de camaradas nas fileiras da esquerda. Entretanto, é inegável que há tempos os organismos partidários se transformaram em "máquinas de moer militantes". Utilizamos esse termo, não como forma de impacto, mas como um processo real na forma partido. Talvez seja o relato mais comum, pessoas que abandonaram sua militância alegando uma intensificação do adoecimento mental ou de exaustão física, dado processos de manipulação e a impossibilidade de suportar a sobrecarga da construção. Em nossa compreensão, esse processo se dá principalmente por dois motivos: a falta de uma centralidade de atuação das organizações partidárias e o tarefismo. 1.2 A falta de centralidade na atuação das organizações. Para iniciar o debate sobre a "falta de centralidade na atuação das organizações" é fundamental traçar os motivos que direcionam este erro. Toda atuação política e revolucionária deve necessariamente se orientar para a transformação da realidade, visando a supressão do sistema capitalista. Entretanto, para que essa atuação seja efetiva, e também que sejam realizadas de maneira correta as mediações necessárias, é preciso compreender de forma assertiva o movimento do real, entender como a práxis deve se desdobrar sobre o atual estágio de desenvolvimento da sociabilidade capitalista. No último período é notável que a dimensão da produção teórica foi terceirizada dentro das organizações partidárias, com um atraso na consolidação de verdadeiros centros de formação e pesquisas que essas organizações poderiam ser para nortear suas intervenções. É preocupante o quão pouco se produz dentro das organizações estudos sistemáticos sobre a "Crise capitalista”, “atual fase do capitalismo" ou "a composição da classe trabalhadora ". Esses temas se encontram en passant nos programas partidários, ou como jargões em notas políticas ou como mercadorias em um “novo sistema de produção intelectual”. Mas qual o último grande estudo desenvolvido pelos partidos sobre as temáticas? Quando as pessoas inseridas em seus locais de atuação foram provocadas a intervir e produzir sobre esses temas? Os desenvolvimentos dessas formulações foram delegados aos poucos intelectuais de esquerda nas universidades. Por outro lado, devido ao vácuo teórico da esquerda brasileira, surgiram à margem das organizações políticas, indivíduos que se propõem a debater esses temas de forma rasteira e superficial. A cada dia nas redes sociais surge um novo "canal" ou "conteúdo" que se propõe a desvendar e estabelecer caminhos para a revolução. Com conteúdo frágil, rápido e muitas vezes contaminado por interpretações pessoais, esse tipo de análise ganha força por ser de fácil produção e consumo, assim como um macarrão instantâneo. Aqui, apesar de alguns poucos exemplos notáveis, ainda tal produção permanece refém da lógica de circulação; rápido e rasteiro focando somente nos seus cliques para obter cada vez mais alcance. É um fato que os partidos de maneira geral perderam a sua capacidade de produção teórica, atingindo assim diretamente a sua capacidade de orientação prática. Sem centralidade, tudo se torna relevante, e tudo é ao mesmo tempo, nada. Com o objetivo de abraçar todas as "demandas" e se fazer presente em todos os "espaços", as organizações criam dentro de si indivíduos que vivem no entorno de acumular tarefas. O importante é a demarcação estética nos espaços, e falta a precisão de onde e como atuar. A atuação militante é suplantada pelo produtivismo tarefista. Chegamos então ao segundo ponto: o tarefismo. 1.3 O tarefismo: a criação do militante religioso. A falta de uma compreensão correta acerca da realidade, produz na lógica partidária o chamado tarefismo. O tarefismo se ancora em uma visão romântica e religiosa da atuação militante. Os debates internos, as formações políticas se tornam momentos raros na vida do militante e são de maneira paliativa "encaixadas" em reuniões organizativas. As ações não visam mais a construção objetiva do processo revolucionário, mas passam a se agarrar na ideia de sacrifício, o sujeito heróico que se enfia diariamente em tarefas, achando que todos os dias contribui para construção de um pedaço do paraíso. Neste ponto, não existe mais a divisão científica do trabalho, tudo se torna uma amálgama de abstrações, intenções e reverenciamento de ações voltadas para a afirmação abstrata do “Partido”. A ideia de partido como um organismo de amplo debate e unidade estratégica é escravizada de maneira mecânica pelo pragmatismo. Da reunião pragmática para a eleição, da eleição para a panfletagem, da panfletagem para a próxima reunião de balanço e o balanço serve sempre como uma exaltação romântica da pura ação, ou como define a sátira poética de Maiakóvski: "Eles estão em duas reuniões ao mesmo tempo. A vinte reuniões por dia – e às vezes mais – temos que assistir. Por isso somos forçados a dois nos dividir! Uma metade está aqui, a outra lá longe". Esse tipo de "prática" se preocupa somente com as questões mais incipientes, não consegue dar um salto para além da cotidianidade, unificar as questões imediatas com as necessidades gerais da humanidade, se rendem ao mero "materialismo" formal. O tarefismo muitas vezes é consagrado na estrutura partidária através de "cargos". Os cargos não são mais responsabilidades coletivas, mas dádivas divinas a quem sacrifica maior parte do seu tempo. A lógica produtivista e da recompensa passa a ser um imperativo dentro do partido. Quem ousar a ir contrário a esse modus operandi, é rapidamente expelido da máquina partidária. A "quebra" constante de militantes é um sintoma, e ao não ter nenhuma assistência acabam por virar céticos e até mesmo críticos das organizações de esquerda. As direções partidárias na maioria das vezes são compostas por militantes que sobreviveram a esse processo e agora são prestigiados com a sua benção: dirigir. Dirigir é compreendido por muitos como um status, um conforto, por isso um lugar a ser defendido a qualquer custo, que formou ao longo dos anos uma "aristocracia", parte da direção que se coloca acima das bases e se tornam imunes a críticas. Obviamente, essa análise e caracterização não se estende a todos (as) que estão em algum cargo de direção, mas é um movimento recorrente nas organizações. Assim, chegamos ao nosso problema final: o taticismo. 1.4 O taticismo: a pequena política e o oportunismo. O taticismo se define pelo seu caráter idealista, onde visa suplantar as dimensões estratégicas em detrimento das questões práticas. Todo taticista é necessariamente um imediatista. Ao contrário do que defende a boa tradição marxista, que as táticas são mediações subordinadas a um objetivo final (estratégia), os taticistas tentam encaixar seus esquemas a priori na realidade. Ou seja, as medições passam a subordinar o movimento real e distorcer os fatos para enquadrar em esquemas ideais, pragmáticos e subjetivos. No partido o taticismo assume sua pior forma, os debates sobre as questões estratégicas - que como demonstrado tem pouca força nas organizações - passam a ser substituídos pela pequena política, pela disputa nos bastidores e pela conspiração. As direções contaminadas, passam a tratar os movimentos e autonomia de crítica das bases como um processo sempre de ataque à estrutura partidária. Qualquer situação que se desloque dos esquemas ideais do partido, são agora vistos como desvio. Ao passo que, as alterações de posições e os erros das direções são justificadas a todo momento como "questões táticas momentâneas" ou "espere a hora certa para criticar, pois estamos enfrentando mais um problema que nós criamos". Não cabe aqui nenhuma defesa ao "basismo" ou entender que os militantes que não ocupam cargos de direção estão sempre corretos, mas apontar que as direções deveriam ser necessariamente, os indivíduos que conseguem ter um nível mais "destacado" de consciência nas organizações, capazes de unificar a clareza do objetivo estratégico com a flexibilidade das posições táticas, mas acabam cedendo aos vícios das estruturas partidárias. Os dirigentes se tornam cada vez mais ajudantes de obras do taticismo e base se torna mera argamassa desse muro de lamentações. 1.4.1 Um exemplo prático do taticismo. Vamos aqui a um exemplo prático de taticismo. Em Live transmitida pelo Instagram, pela página do PCB-RR, uma fala do Ivan Pinheiro retrata bem esse quadro. Ivan ao se referir aos erros táticos do PCB, Ivan aponta a alteração do partido em relação a sua estrutura interna. O PCB durante alguns anos se posicionou como um partido de quadros ou posteriormente um partido de quadros revolucionários. O que isso significa? Um partido restrito, no qual compõe necessariamente indivíduos destacados, que formam um núcleo coeso e dirigente, capaz de atuar nos processos como uma vanguarda. Essa posição tática Ivan Pinheiro defende como acertada. Entretanto, essa tese do partido de quadros foi amplamente derrotada nos congressos do PCB, dando lugar a formulação do "partido de massas" ou partido de militantes revolucionários. A tese do partido de massas compreende que o PCB deveria ampliar seus membros para além da vanguarda dirigente, e de seus quadros destacados, incorporando em sua militância, qualquer indivíduo que tenha acordo com as resoluções partidárias. Por qual motivo citamos a divergência das duas posições. A tese de um partido de quadros como defende Ivan, foi por muito tempo a principal responsável por tornar o Partido Comunista Brasileiro um partido pequeno, restrito a "intelectuais" e com pouca inserção na realidade brasileira. Com a alteração para um partido de militantes revolucionários foi nítido o crescimento do PCB, principalmente nas suas "frentes de massas" (os coletivos e a juventude). Agora vejam como funciona o taticismo. Ivan acusa o Comitê Central de reduzir o partido atacando os coletivos e querendo manter no organismo partidário somente um grupo restrito de militantes, e acusa o comitê central de ser composto pôr em sua maioria de acadêmicos e vanguardistas. Sendo que, a posição tática de Ivan contribuiu justamente por anos para o encastelamento das direções partidárias. Ivan guiado pela sua formulação a priori não consegue enxergar que sua posição é contraditória e ataca justamente a ampla maioria de militantes que hoje estão ao seu lado. Ao passo que, o "C.C" do PCB altera sua posição tática de defesa de um partido de militantes revolucionários - na tentativa de frear as cisões - e passa a defender um partido restrito. Com a justificativa de que nem todos os membros dos coletivos partidários são integrantes do partido. Um argumento interessante, que poderia se basear nas resoluções partidárias, mas o Comitê Central não questiona a legitimidade dos integrantes dos coletivos enquanto membros do partido, quando estão desempenhando seu papel de tarefismo e de forma acrítica a estrutura partidária. Muito pelo contrário, em diversos momentos anteriores ao seu crescimento atual, as funções entre direção dos coletivos e direção do partido eram quase indissociáveis. E um movimento interessante ocorre desta transição, se antes para garantir a verticalidade diretiva era necessário confundir esses postos, hoje para a manutenção dessa mesma verticalidade se faz necessário separar. E em ambos os casos, o compromisso não é com a oxigenação da práxis partidária, mas com a manutenção de sua verticalidade. Percebam, o taticismo não faz uma avaliação concreta das necessidades da forma de ser do partido correlacionada com uma finalidade estratégica, ela se altera de acordo com os interesses privados de algum punhado de indivíduos e, ao mesmo tempo se engessa perante o dinamismo da realidade, visto que tais interesses privados não se sintonizam com interesses gerais da classe trabalhadora. A relação vanguarda X classe aqui se altera para a relação dirigentes X dirigidos, simplesmente. E percebam mais, às duas visões (a cúpula do PCB-RR e do CC do PCB) acabam de ter um acordo em comum, a defesa de um partido restrito, somente composto por aqueles que se movimentam de acordo com seus interesses e, quando muito, avançam para a defesa da democracia em abstrato, colocando a agitação a frente da concretude das relações. Os dois campos se comportam como moradores de "um hotel de luxo à beira de um abismo". A crítica aqui ganha, por vezes, outra conotação interessante: tudo passa a ser definido como uma "crise de direção". Em nenhum momento é feito um balanço do processo interno da estrutura que gestou essa forma de se "dirigir" os processos. Bastaria agora substituir uma cúpula pela outra, para em um passe de mágica, resolver os problemas. Posição equivocada, quando é nítido que essas questões são justamente fruto e responsabilidade desta forma partido, que permite a produção do tarefismo, direções oportunistas e posições taticistas. Por este motivo, ambos os lados estão administrando de forma tão equivocada a crise que hoje se estabelece no Partido Comunista Brasileiro. Devido à pressa da autocracia para manter suas posições e cargos, ou da fração de consolidar como um novo organismo diretivo, as bases se encontram à deriva, sem tempo de aprofundar um balanço qualificado. Enquanto os aristocratas esperneiam: "Tomem um lado, façam a defesa histórica do partido". Mas a "defesa histórica" se revela como a manutenção de interesses particulares, sustentados pela condução ou apagamento de interesses coletivos. Como disse o poeta Brecht, “Assim marchou o Velho, travestido de Novo”. A estrutura partidária contaminada por vício pequeno burgueses, passa então a reproduzir a prática de um partido burguês. Em nossa posição é necessária uma profunda reflexão sobre os motivos e consequências que de tempos em tempos geram as crises partidárias, um processo de crítica e autocrítica da condução e dos objetivos estratégicos das organizações comunistas. Utilizamos a crise do Partido Comunista Brasileiro, somente como um exemplo prático desta falência dos métodos implementados em diversas organizações. Não existe nenhuma receita de bolo, nem a proposta de criar um novo instrumento artificial. Finalizamos essas breves considerações sobre a falência das estruturas partidárias propondo uma reflexão: A quem serve e qual o objetivo de uma organização comunista?

  • Crise.

    por Rafael Jácome Relutei muito em tomar um posicionamento público mais elaborado sobre a crise do PCB por alguns motivos: I) pois eu creio que o espaço caótico e arbitrário das redes sociais, favorece mais o arrivismo que propriamente o esclarecimento das questões e, tirando um segundo momento em que alguns camaradas da Coletivo Negro Minervino de Oliveira (CNMO) se lançaram a argumentações mais elaboradas, tudo estava colocado nas redes sociais como uma colcha de retalhos de opiniões difusas, animosidades e que nascia a partir de algum material áudio visual produzido aqui e ali, por canais privados; II) pois apesar de discordar ferrenhamente do caráter amador da regulamentação nacional de redes sociais (sim, precisamos de uma regulamentação para essas esferas, inclusive para canais de médio e grande porte de comunicadores), feita pelo Comitê Central do PCB (CC-PCB), tento, na medida do possível (não consegui totalmente), me centralizar pelo que as instâncias do partido determina. Defendo a liberdade de crítica, mas, como o velho Lênin coloca, a liberdade de crítica vem junto da liberdade de associação e ao se associar a uma organização centralizada, você sempre acaba por aderir a métodos amadurecidos dos quais discorda e é preciso paciência; e, ainda, III) com isso eu estou sim rompendo o “centralismo democrático” formalizado pelo PCB, mas, sem universalizar o rompimento como aprioristicamente louvável, visto que, nessa situação complexa, motivos diversos levaram a variadas formas de manifestações públicas dos militantes, eu me responsabilizo pelos meus motivos e/ou de camaradas que buscaram qualificar o debate sem recorrer ao ódio e ao reducionismo (Salve camaradas do CNMO!). Mas paciência tem limites! A Máquina X A Palavra* Não foram poucas as vezes que, em momentos em que pude tocar tarefas de recrutamento, camaradas intitulados como “influencers” ou “youtubers” foram citados como porta de entrada e despertar para a noção da necessidade organizativa. Isso se constitui como um mérito, não podemos negar. Eles (ainda que por muitos deles eu nutra discordâncias e já tenha visto deliberadamente usarem de retórica e força dos “likes” para ganhar ou se esquivar de debates importantes, cruciais e necessários para o corpo da militância) conseguiram desenvolver métodos de disseminação do marxismo que não resta outra coisa para nós, comunistas com problemas de gerar estrutura para expandir nossa organização, que qualificar tais métodos e os colocar sob o controle do partido e suas instâncias, para fazer ecoar debates e sínteses internas, bem como palavras de ordem em momentos candentes da luta de classes. E ainda contaram com um contexto objetivo em que tais meios ganharam destaque (Pandemia), “juntando a fome com a vontade de comer” (como diria vovó Jácome). Numa análise superficial de tais experiências, diria que não nos cabe abandonar a noção de jornal, mas sim entender que talvez a centralidade comunicativa esteja mais no conteúdo que nos meios, sendo agora a noção de um jornal da classe e para classe uma gama complexa e diferenciada de gestão de canais comunicativos, explorando diversas formas de se passar o debate, desde o mais sofisticado ao mais básicos e formativos. No entanto, tais canais geram um problema para a questão da disputa da linha política. Como disse anteriormente, tais canais são particulares. Isso não significa desconsiderar que se trata do “ganha-pão”, tais camaradas estão mais que certos em se lançarem na tentativa de aliar convicção político partidária com meios de auto sustento. Eu mesmo, por uma insuficiência do próprio partido em profissionalizar (remunerar e qualificar) minha atuação hiper-dedicada de antes da paternidade, passei por mazelas para me estabelecer até o ponto em que eu pudesse ter a certeza de que o aluguel do mês que vem está pago. Mas se por um lado não devemos cair no moralismo de condená-los estritamente por isso, também não podemos deixar passar em branco que tais eles acabam por assumir uma posição de maior força que a estrutura partidária no processo de disputa ideológica. Apesar de ganha-pão remunerado na forma dinheiro pelo mercado (quanto? Não sei e nunca vi), não se trata de um ofício simples quando tal ofício passa não a simplesmente gerar conteúdo ordinário para as plataformas e sim alterar a correlação de forças internas do partido. Compará-los, que empregam camaradas para a produção de material teórico sensível à nossa linha partidária, com camaradas não-comunicadores da direção e sobretudo da base, se trata tão somente de uma comparação abstrata, sem nexo com as determinações reais do que é construir uma organização debilitada na sua forma e conteúdo comunicativo (interno e externo) e amassada pelo contexto de desprestígio das organizações comunistas no interior da classe trabalhadora. Com isso, esse problema se arrastou; não sendo simplesmente sobre confiar na trajetória individual de comunicador X, ou ressaltar as qualidades morais e teóricas de camarada Y: se trata de um problema real que o PCB, e talvez as demais organizações marxista-leninistas, terão que lidar. Tais comunicadores, e até mesmo outras figuras que os sustentam em seu ofício, possuem interesses que nem sempre serão os mais qualificados para a construção de uma organização marxista-leninista. Eu poderia aqui citar diversos momentos concretos, mas vou confiar na capacidade crítica do leitor de relembrar diversos episódios em que posições individuais foram confundidas com posições oficiais do partido e isso, por si só, já traz um problema de alterar drasticamente o “público-alvo” que chega ao partido. Ou seja, tal público acaba por ser inicialmente filtrado por uma noção ideológica que nem sempre se alinha à síntese coletiva interna ao partido, mas a posições individuais de comunicadores que divergem delas aqui e acolá. Assim, como já aconteceu comigo, gera-se inclusive a necessidade de recrutadores partidários terem que se explicar do porque discordam do comunicador X ou Y e do porque tal visão não é incorporada à linha oficial do partido (muitos não esperam essa contradição!). E isso se constitui um problema quando se sabe mais o que canais particulares trazem como linha política do que o próprio partido. Obviamente alguns dirão que tal problema deve ser uma crítica ao partido e sua incapacidade de assimilar tais meios e não estão de todo errados. Só que simplesmente trazer à tona a tal crítica com ênfase na “culpa”, sem partir dos problemas que essa contradição atual traz pro contexto imediato, é mera saída retórica sem compromisso de solucioná-la. Sabemos bem que a política é o cemitério dos inocentes. Por tal motivo, é preciso munir as organizações para que elas sejam capazes de, eventualmente, neutralizar o oportunismo que possa vir junto a alguma figura pública com canal consolidado. Aqui faço uma clara explanação de que não se trata apenas ou especificamente de Jones Manoel e de outros comunicadores similares que, porventura, tenham relações com PCB. Mas é verdade que tenho profundas preocupações dos problemas gerados por Jones ao dar demasiado espaço para figuras como Elias Jabbour, o qual não só lançou toda sorte de ataques às organizações que não fecharam com Lula no primeiro turno durante o processo eleitoral, como também, mesmo tendo contribuído para clarificar algumas questões econômicas e estatísticas sobre a China (Socialista? Creio que não!), buscou operar um profundo rebaixamento da teoria marxista ao disseminar revisionismos e mais revisionismos sobre Lênin e Marx. O ápice tragicômico foi quando ele disse que o debate sobre o fetiche da mercadoria era um debate pequeno burguês, mas aí ele já estava “grande” demais para tal posicionamento vergonhoso mostrar seu caráter limitado e manualesco. Pode-se colocar tal associação meramente na conta de uma abstrata diversidade editoral, debate de ideias ou qualquer coisa que nos pareça favorecer questões de produção intelectual, mas a escolha de alavancar tal figura não passou pelos meandros de um debate coletivo, em que se pode não desconsiderar o autor dos dados econômicos sobre a China ao mesmo tempo que não se propague sua imagem como algo inofensiva a nossa linha. Maquiavel às vezes é necessário e ele tem mais sentido, para nós comunistas, num corpo coletivo do que numa empreitada individual. Sabemos também que o livro O centralismo democrático de Lênin do LavraPalavra, apesar de não justificar um rechaço enorme, foi sim lançado nas vésperas do Congresso do PCB, contendo em seu prefácio e posfácio posicionamentos que visavam disputar através de um lançamento privado a linha do partido. Foi um livro para a disputa da linha partidária no pré congresso, isto é mais que claro e tem impactos que reforçam as contradições já elencadas aqui neste texto. Creio que a postura da direção do PCB de centrar fogo e criar todo um rebuliço em cima de um livro tenha sido equivocada. Afinal,se não temos centralismo teórico no partido, além do fato de que se trata de textos de LÊNIN, bastava dizer que todo militante tem o direito de ler e indicar o que quiser de Lênin e que nas reuniões e formações oficiais do partido os militantes podiam ler e indicar tranquilamente qualquer texto contido ali, desde que fosse ressaltado que o prefácio era muito problemático e que se tem fontes iguais ou até melhores para se ler tais textos. Talvez uma resposta interna (nem tudo é debate público, né?) teria muito mais efeito do que se explicar agora e até prepararia a nossas bases e direções para o momento presente. O mundo editorial é diverso, como pode um prefácio e um posfácio justificar tanto alarde ao invés de ser contornado ou desarticulado com maestria? Ou seja, somente um compromisso sério com a produção intelectual e o debate através da máquina partidária, poderia fazer frente e superar as limitações que nascem das iniciativas individuais de alguns nomes que se lançam ao calor da disputa. Se os dirigentes partidários querem se munir disso, ao menos façam corretamente e aqui tem de se admitir que estão aprendendo no processo de crise como se faz isso (vide a evolução do estilo e conteúdo das notas internas e externas). Mas bem, tal crescimento advindo dessa nova dinâmica comunicativa que, em muitos aspectos se desenvolveu alheio aos planejamentos internos do PCB, contribui para seu crescimento. Não adianta dizer que se trata de um crescimento com somente perfis problemáticos, somente com camadas pequeno-burguesas da universidade, pois não é. Mesmo que ainda tenhamos mais inserção no ME, não se deve esquecer que a classe trabalhadora consome conteúdos no YouTube, as formas comunicativas da internet estão definitivamente na vida do trabalhador, basta ver os exemplos do crescimento da direita via fake news. Bolsonaro não foi eleito pela pequena-burguesia, nem tão pouco Lula e seu contra-ataque eleitoral nas eleições de 2022, pintando-o como um herói do povo, salvador da pátria e com doses de carinho e mensagens de afeto no Twitter na medida que costurava um pacto de classes ainda mais rebaixado. Quem elegeu estes dois seres pitorescos do cenário político brasileiro foram os trabalhadores que, apesar da imperiosa força da televisão, hoje também consomem em larga escala conteúdo audiovisual da internet (não fosse verdade, não existiria o famigerado “youtuber”). Ou seja, não julgar o trabalho atual como o que queremos, não implica de que não devemos fazer um trabalho que assimile tais formas, inclusive - sobre outras questões pujantes que nossa forma organizativa precisa melhorar -eu pretendo e vou travar um debate interno sobre nossa capacidade de manipular, cruzar e armazear dados e gerar estatisticas. Não existe “terceira via”. Existe quem via e não acreditava.** Ainda me lembro bem: um certo ex-dirigente que hoje cerra fileira junto aos revoltados com a máquina partidária, há tempos atrás, logo após o fim da minha atuação na juventude do partido (a UJC), ligou para uma camarada – que na época segurou o rojão de dirigir a UJC-MG com maestria junto comigo – e, segundo essa camarada, aos gritos, ele a “centralizou” por não obedecer às ordens da Coordenação Nacional da Juventude (CN-UJC). Ordens que nasciam de um simples problema comunicativo interno e que, ironicamente, remetia à liberdade do núcleo e da Coordenação Estadual (CE MG) da UJC de formular métodos para seu processo de atuação local, segundo a necessidade diretiva de se dar respostas rápidas para problemas imediatos. Foi me dito que esse “camarada” fez autocrítica dessas e de outras sandices que presenciei, mas se foi feito deve ter sido feita para seu círculo de amizades internas e não para o corpo da militância a qual dirigiu como uma das figuras centrais. Mas vejam bem, nesse caso em específico, trouxe o exemplo não na tentativa de desqualificar o conteúdo das críticas do ex-dirigente sobre o enrijecimento da nossa dinâmica partidária, nem de justificar qualquer processo de irregularidade que, porventura, tenha recaído sobre ele, mas tão somente para frisar que mesmo que se sintetize em algumas situações e figuras individuais problemas gerais organizativos que agora ganham a expressão de desespero, não temos que tratar tais situações ou personalidades com heroísmo ou qualquer dose de romantismo. Muitos desses “camaradas” nutriram ou ajudaram a nutrir estruturas e dinâmicas em que outrora militantes foram massacrados por fazerem a mesma crítica que eles. A verdade sobre quem sinceramente rompeu com tais métodos e quem está usando a atual crise como mero instrumento, somente o tempo vai mostrar (ou não). Só que se cria uma situação em que todo camarada com quem eu converso, que passou pelos problemas do meu tempo crava: era uma tragédia anunciada. E é daí que nasce a desconfiança. No caso anterior citei o destrato de um ex-dirigente, atual defensor da liberdade de crítica e supostamente de um tratamento digno da direção com a base, mas agora cito um problema de linha que eu ainda julgo como igualmente relevante (conteúdo e forma se combinam). Um ponto que ganhou expressão na crítica ao Comitê Central (CC) é de que ele está fazendo uma virada reformista. Essa é uma crítica que tem pressupostos válidos, visto que, para um marxista-leninista, qualquer sinal de reformismo deve ser colocado sob o crivo da crítica. De fato essa Plataforma Mundial Anti-imperialista (PMAI) deve ser olhada com bastante desconfiança. Faz parte do jogo. Entretanto, o que não é mostrado é que não se trata de uma guinada reformista momentânea que, do nada, brotou de forma espontânea. Um setor reformista sempre sobreviveu na cúpula partidária e existia uma tensão permanente com muitos militantes da base (inclusive eu) que tentaram, cada um a seu tempo e com limitações diversas, manter a tensão para que o caldo não virasse de vez. É isso que deve ser notado: uma tensão permanente e processual que se arrastou durante anos. E o mais crucial de se perguntar: Por que tais elementos antes coexistiam, ao passo que a base era triturada em tarefismos dos mais diversos? Convivia porque, além de determinações como crescimento organizativo e conjuntura que antes não existiam, figuras centrais ou pelo menos destacadas do que hoje se auto define como “ala esquerda”, estavam comprometidas na implementação desse mesmo tarefismo que massacrou a base e juntos aos seus atuais adversários. Inclusive, esse massacre também se dava como mecanismo de enfraquecer lados da tensão que divergiam de uma linha rebaixada. Não basta dizer que eles “sinceramente” se arrependem, mas sim se deve pautar o balanço efetivo de tais posições passadas. Se a crítica da linha deve ser aberta, então a autocrítica dos dirigentes que a deterioraram também deveria ser! No penúltimo congresso da UJC e o último que eu participei, uma parte dessas figuras atuais conseguiram hegemonizar a UJC (através da direção) na aprovação da tese de que no Brasil, ainda sob o governo Temer, era gerido por um “Estado Fascista”. Podemos debater se o governo Bolsonaro foi de fato uma implementação do fascismo ou um aprofundamento das características mais opressivas internas à democracia burguesa (fico com esta última), mas fato é que toda linha tem uma consequência prática e, para nós, aquela caracterização apressada sobre os rumos que a política brasileira estava tomando, era que a consequência prática diante da caracterização do “fascismo” vinha junto uma pressão interna da Coordenação Nacional pela aliança com setores reformistas do movimento estudantil. Os militantes de Minas Gerais foram isolados na tentativa de dizer que I) não se tinha acúmulo suficiente para uma caracterização científica daquele governo e II) que as consequências práticas daquilo não condiziam com as linhas de uma oposição marxista-leninista na luta de classes. Ficou escancarado que, dentro da CN UJC e no desenvolver dos trabalhos pelo Brasil, tal linha já estava amarrada, sobretudo pelas habilidades da pequena política de um dirigente que sempre foi um queridinho de Ivan Pinheiro. Tal queridinho do Ivan era um gênio da pequena política, apesar de reformista (foi apoiar Lula no primeiro turno, vai com Deus). Lembro de quando fui chamado a uma análise das direções estaduais no CONUBES e questionei nossa proximidade a certas correntes do PSOL, resultado: análise coletiva encerrada. Ele também colocava em volta de si figuras destacadas, com habilidades ímpares e conseguia sustentar direções na CN com pouco ou sem nenhum respaldo na base, sempre no sentido de hegemonizar a operacionalização dos trabalhos. Entre essas pessoas estava uma figura proeminente que hoje se destaca na “ala esquerda”. Tal figura me vem à memória por defender, se me lembro bem, nos eventos de abertura de alguma atividade nacional, que iríamos “fazer aliança até com o diabo” para conseguir nossos objetivos. Parecia até mesmo que a figura já preparava a caracterização para como a base veria o CC de hoje (“o Diabo”), mas na verdade ela estava simplesmente defendendo uma flexibilização da nossa política de alianças num giro à direita, em que forças como o Levantes Popular da Juventude (LPJ) e a União da Juventude Socialista (UJS) passariam a ter menos rejeição da nossa parte em nossas movimentações. E é aí que reside a desconfiança. Nada contra o reconhecimento da necessidade de reformulação da nossa organização, num sentido de construir um partido mais próximo da concepção de Lênin (me assusta não existir um Órgão Central real no PCB, por exemplo), mas fato é que essa atual movimentação dissidente tem seus expoentes entranhados na máquina do partido, e tais expoentes, que são determinantes enquanto dirigentes da crise, em muitos casos, foram responsáveis por outrora tocar justamente a política e as práticas que hoje nos chamam a derrotar. Quando o processo de direção, na tentativa de captar os anseios da base se dá justamente pela liberdade de crítica com bandeira de se combater o reformismo através debate franco e aberto, você acaba por se perguntar: mas são essas direções aí que irão operacionalizar isso? As pessoas que operacionalizaram justamente a consolidação dos problemas que hoje elas dizem atacar? Se não existiu um giro derradeiro a direita na linha do PCB e seus coletivos, não foram graças a estes. Não existiu autocrítica por parte dessas pessoas – que antes eram parte do problema e que agora dizem querer eliminá-lo – e, se em algum momento teve, não foi junto à base. Então o mínimo, para quem acompanhou todo o processo, é manter uma desconfiança profunda, dado que os elementos de uma crise são nebulosos e uma superação efetiva não se prova no calor do momento, mas na consolidação daquilo que é proposto. Os homens são não o que falam de si, mas sim o fazem na reprodução das relações sociais, já diria o velho Marx, e é no mínimo curioso que uma “crise” que coloca no centro de suas contradições ideológicas o debate sobre o papel dirigente e a forma organizativa, deixa passar sem grandes resgates os erros passados de figuras assim. Os camaradas do CC atual e seus defensores, caso tivessem tido um compromisso com a disputa necessária para resolver os desafios colocados, teriam levado o último Congresso às consequências de um embate verdadeiro, mas, ao contrário, obviamente buscou coroar sua inaptidão com uma aliança congressual artificial entre setores inconciliáveis (lembrem-se, acordo não se faz sozinho); uma inaptidão em sentir os anseios da base que se arrastou durante anos e, por isso, deixou de ter a capacidade de captar, ditar a velocidade e os métodos para implementação das mudanças necessárias pro crescimento organizativo. O mínimo que se esperava de uma organização consequente era ter pressionado essas figuras dissidentes para que elas apresentassem suas contradições num processo de balanço autocrítico, mostrando a contradição de sua argumentação com o seu histórico e se antecipando ao que estava por vir, mas obviamente para isso era preciso também fazer uma autocrítica séria por parte do grupo do atual CC que remetesse a superação da dinâmica partidária e métodos de trabalho vigente. O preço de se lançar na briga é ter que se corrigir no processo, não é mesmo? Mas enfim, não quero aqui dar respostas precisamente do que deve ser feito pelos militantes que ainda continuarão no PCB (como é meu caso), creio que além da postura sempre crítica e ativa que devemos ter em todos os espaços, sem medo de represálias dos que vão e dos que ficam, ainda está por se desenhar o papel de muitos agentes desse contexto. Às vezes me pergunto o quão niilista é minha condição, minha análise e minhas ponderações. Alguns chamam de “centrista”, outros de “terceira via”, mas se você for olhar de maneira mais aproximada, se trata em geral da situação histórica dos trabalhadores e a sua relação com as organizações de esquerda, desde as grandes derrotas das décadas de 60, 70 e 80; um misto de não é possível que isso seja o melhor mundo possível, com a desconfiança se de fato o mundo tem solução. Só que no meu caso, graças ao PCB e sua formação deficiente, esse dilema se dá dentro de uma organização marxista e em relação aos desafios de um trabalhador organizado; construir um partido da classe! Continuo, sem sombra de dúvidas, um marxista. E como leninista que sou, sigo naquele partido que demonstra ter maior capacidade concreta de fazer avançar a luta de classes na perspectiva do trabalho e da revolução. Continuo no PCB, mesmo e por causa das críticas que possuo. *Alguns atacarão o fato da Barravento ser uma revista privada e eu ser incoerente de postar tal crítica aqui. Mas tal comparação é tão plausível quanto a que iguala os comunicadores com grandes canais endinheirados. Debater a forma e não as determinações concretas, faz alguns se esquecerem que gradações são importantes na análise do potencial de impacto de algo. Barravento é no máximo uma revista “boa”, mas longe de ser uma revista com amplo alcance. **Alguns camaradas vão questionar do porque não citar nomes e datas, para “provar” o acontecido. Primeiro que não se trata de um tribunal, mas sim de uma reconstrução de alguns aspectos das escolhas e caminhos que nos trouxeram até aqui. Segundo que tal situação envolve pessoas que não necessariamente querem seus nomes expostos. Quarto que quem não quiser confiar na minha análise e relatos, busque outros e tire a prova por si mesmo (não quero e não posso ser oráculo de ninguém).

  • A verdade da repressão

    por Antonio Candido Fonte: Esquerda Diário. O texto de Antonio Candido (1918-2017) foi extraído da edição de 1979, na revista Discurso, e depois de algumas publicações (reproduções) em sites e periódicos ao longo do tempo, julgamos oportuno trazer à tona esse curto e importante texto interventivo de um dos maiores críticos literários de nosso país. Com rara fineza intelectual, que aliada à clareza argumentativa e a profundidade das ideias, neste pequeno escrito cujo contexto era da repressão militar (1964-1985), se mostra atual na essência. O crítico literário, aqui, usando de Balzac, Kafka e Dostoievski diz que a instituição policial é construída historicamente como “um agente que viola a personalidade, roubando ao homem os precários recursos de equilíbrio de que usualmente dispõe”. Link original: https://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/37854/40581. Balzac, que percebeu tanta coisa, percebeu também qual era o papel que a polícia estava começando a desempenhar no mundo contemporâneo. Fouché a tinha transformado num instrumento preciso e onipotente, necessário para manter a ditadura de Napoleão. Mas criando dentro da ditadura um mundo paralelo, que se torna fator determinante e não apenas elemento determinado. O romancista tinha mais ou menos dezesseis anos quando Napoleão caiu, e assim pôde ver como a polícia organizada por Fouché adquiria por acréscimo (numa espécie de desenvolvimento natural das funções) o seu grande papel no mundo burguês e constitucional que então se abria: disfarçar o arbítrio da vontade dos dirigentes por meio da simulação de legalidade. A polícia de um soberano absoluto é ostensiva e brutal, porque o soberano absoluto não se preocupa em justificar demais os seus atos. Mas a de um Estado constitucional tem de ser mais hermética e requintada. Por isso, vai-se misturando organicamente com o resto da sociedade, pondo em prática um modelo que se poderia chamar de “veneziano” – ou seja, o que estabelece uma rede sutil de espionagem e de delação irresponsável (cobertas pelo anonimato) como alicerce do Estado. Para esse fim, criam-se por toda parte vínculos íntimos e profundos. A polícia se disfarça e assume uma organização dupla, bifurcando-se numa parte visível (com os seus distintivos e as suas siglas) e numa parte secreta, com seu exército impressentido de espiões e alcaguetes, que em geral aparecem como exercendo ostensivamente uma outra atividade. Este funcionamento duplo permite satisfazer também a um requisito intransigente da burguesia, dominante desde os tempos de Balzac e dispensado só nos casos de salvação da classe: a tarefa policial deve ser executada implacavelmente, mas sem ferir demais a sensibilidade dos bem-postos na vida. Para isso, é preciso esconder tanto quanto possível os aspectos mais desagradáveis da investigação e da repressão. Para obter esse resultado, a sociedade suscita milhares de indivíduos de alma convenientemente deformada. Assim como os “comprachicos” d’O Homem que ri, de Victor Hugo, estropiavam fisicamente as crianças a fim de obterem aleijões para divertimento dos outros, a sociedade puxa para fora daqueles indivíduos a brutalidade, a privação, a frustração, a torpeza, a tara – e os remete à função repressora. Daí o interesse da literatura pela polícia, desde que Balzac viu solidariedade orgânica entre ela e a sociedade, o poder dos seus setores ocultos e o aproveitamento do marginal, do degenerado, para o fortalecimento da ordem. Nos seus livros há um momento onde o transgressor não se distingue do repressor, mesmo porque este pode ter sido antes um transgressor, como é o caso de Vautrin [personagem de “A Comédia Humana”], ao mesmo tempo o seu maior criminoso e o seu maior policial. Dostoiévski percebeu uma coisa mais sutil: a função simbólica do policial como sucedâneo possível da consciência – a sociedade entrando na de cada um através da pressão ou do desvendamento que ele efetua. Em Crime e Castigo, o juiz Porfírio Porfíriovitch vai-se tornando para Raskolnikof uma espécie de desdobramento dele mesmo. Mas foi Kafka, n’O Processo, quem viu o aspecto por assim dizer essencial e ao mesmo tempo profundamente social. Viu a polícia como algo inseparável da justiça, e esta assumindo cada vez mais um aspecto de polícia. Viu de que maneira a função de reprimir (mostrada por Balzac como função normal da sociedade) adquire um sentido transcendente, ao ponto de acabar se tornando a sua própria finalidade. Quando isso ocorre, ela desvenda aspectos básicos do homem, repressor e reprimido. Para entrar em funcionamento, a polícia-justiça de Kafka não tem necessidade de motivos, mas apenas de estímulos. E uma vez em funcionamento não pode mais parar, porque a sua finalidade é ela própria. Para isso, não hesita em tirar qualquer homem do seu trilho até liquidá-lo de todo, física ou moralmente. Não hesita em pô-lo (seja por que meio for) à margem da ação, ou da suspeita de ação, ou da vaga possibilidade de ação que o Estado quer reprimir, sem se importar se o indivíduo visado está envolvido nela. Em face da importância ganha pelo processo punitivo (que acaba tendo o alvo espúrio de funcionar, pura e simplesmente, mesmo sem motivo), a materialidade da culpa perde sentido. A polícia aparece então como um agente que viola a personalidade, roubando ao homem os precários recursos de equilíbrio de que usualmente dispõe: pudor, controle emocional, lealdade, discrição – dissolvidos com perícia ou brutalidade profissionais. Operando como poderosa força redutora, ela traz à superfície tudo o que tínhamos conseguido reprimir, e transforma o pudor em impudor, o controle em desmando, a lealdade em delação, a discrição em bisbilhotice trágica. Daí uma espécie de monstruosa verdade suscitada pela polícia. Verdade oculta de um ser que ia penosamente se apresentando como “outro”, que de fato era “outro”, na medida em que não era obrigado a recair nas suas profundidades abissais. Aliás, seria mais correto dizer que o “outro” é o suscitado pela polícia. O “outro”, com sua verdade imposta ou desentranhada pelo processo repressor, extraída, contra a vontade, dos porem onde tinha sido mais ou menos trancada. De fato, a polícia tem necessidade de construir a verdade do “outro” para poder manipular o “eu” do seu paciente. A sua força consiste em opor o “outro” ao “eu”, até que este seja absorvido por aquele e, deste modo, esteja pronto para o que se espera dele: colaboração, submissão, omissão, silêncio. A polícia esculpe o “outro” por meio do interrogatório, o vasculhamento do passado, a exposição da franqueza, a violência física e moral. No fim, se for preciso, poderá inclusive empregar a seu serviço este “outro”, que é um novo “eu”, manipulado pela dosagem de um ingrediente da mais alta eficácia: o medo – em todos os seus graus e modalidades. - Um exemplo dessa redução degradante é o comportamento do delegado com o encanador, no filme Inquérito sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, de Elio Petri. O delegado, que é também criminoso, resolve brincar com o destino e como provar o mecanismo autodeterminante da polícia, a sua finalidade em si mesma. Para isso, dirige-se a um transeunte qualquer, escolhido ao acaso, e confessa que é o matador procurado, dando como prova a gravata azul celeste que usa e fora vista nele. Convence então o pobre transeunte a ir à polícia e relatar o fato, dando-lhe para levar como indício (e evidentemente como baralhamento do indício) diversas gravatas iguais, que mostrariam como era a do assassino. Chegado à polícia, o transeunte, que é encanador, dá de cara com o assassino que se confessara na rua, e que ia delatar; mas que agora está no seu papel de delegado. Este o interroga com brutalidade e o pressiona física e moralmente para dizer quem era o assassino que desvendara a ele na rua. Mas o pobre diabo, completamente desorganizado pela contradição inexplicável, não tem coragem para tanto. Com isso, vai ficando suspeito, vai-se caracterizando legalmente como possível criminoso, até desaparecer dos nossos olhos, trôpego, arrasado, por uns corredores sujos onde levam aonde bem suspeitamos. A força que o paralisa, e que nos paralisaria eventualmente, vem de uma ambiguidade, misteriosa na aparência, mas eficaz, cuja natureza foi sugerida acima: o repressor e o transgressor são o mesmo, não apenas fisicamente e do ponto de vista dos papéis sociais, mas ontologicamente (o “outro” é o “eu”). Tudo nesse episódio é modelar: a gratuidade com que se escolhe o culpado; a imposição de um comportamento não intencional (ir à polícia com a gravatas azuis no braço, delatar um criminoso sem nome, que não interessa); o baralhamento da verdade, quando ele constata que o homem que se denunciara como assassino é também o delegado; a transformação do inocente em suspeito e do suspeito em delinquente, aceita pelo próprio inocente, do fundo da sua desorganização mental, forjada pela inquirição. O fulcro desse processo talvez seja aquele momento do interrogatório em que o delegado pergunta ao pobre diabo, já zonzo, qual é a sua profissão. “ – Sou hidráulico”, responde ele. O delegado esbraveja: “ – Qual hidráulico qual nada! Agora toda a gente quer ser alguma coisa bonita! O que você é, é encanador, não é? Em-ca-na-dor! Porque hi-dráu-li-co?!” E o desgraçado, já sem fôlego nem prumo: “ – Sim, sou encanador.” (Cito de memória porque não tenho o roteiro.) Vê-se que o pobre homem, a exemplo de toda a sua categoria profissional, tinha adotado uma designação de cunho técnico (idraulico, em italiano), que o afasta da velha designação artesanal “encanador” (staganaro, em italiano), e assim lhe dá a ilusão de um nível aparente mais elevado, ou pelo menos mais científico e atualizado. Mas o policial o “reduz” ao nível anterior, “desmascara” a sua autopromoção, tira para fora a sua “verdade” indesejada. E no fim, é como se ele dissesse: “ – Sim, confesso, não sou um técnico de nome sonoro, que evoca inocentemente alguma coisa de engenharia; sou mesmo um pobre diabo, um encanador; estou reduzido ao meu verdadeiro ‘eu’, libertado do ‘outro’”. Mas na verdade, foi a polícia que lhe impôs o “outro” como “eu”. A polícia efetuou um desmantelamento da personalidade, arduamente construída, e trouxe de volta o que o homem tinha superado. Sinistra mentalidade redutora, que nos obriga a ser, ou voltar a ser, o que não queremos ser; e que mostra como Alfred de Vigny tinha razão, quando anotou em seu diário: “Não tenha medo da pobreza, nem do exílio, nem da prisão, nem da morte. Mas tenha medo do medo”.

  • Poema: “Quando os trabalhadores perderem a paciência”, de Mauro Iasi

    Crédito Imagem: João Alvarez/Agência O Globo Quando os trabalhadores perderem a paciência - (Mauro Iasi) As pessoas comerão três vezes ao dia E passearão de mãos dadas ao entardecer A vida será livre e não a concorrência Quando os trabalhadores perderem a paciência Certas pessoas perderão seus cargos e empregos O trabalho deixará de ser um meio de vida As pessoas poderão fazer coisas de maior pertinência Quando os trabalhadores perderem a paciência O mundo não terá fronteiras Nem estados, nem militares para proteger estados Nem estados para proteger militares prepotências Quando os trabalhadores perderem a paciência A pele será carícia e o corpo delícia E os namorados farão amor não mercantil Enquanto é a fome que vai virar indecência Quando os trabalhadores perderem a paciência Quando os trabalhadores perderem a paciência Não terá governo nem direito sem justiça Nem juizes, nem doutores em sapiência Nem padres, nem excelências Uma fruta será fruta, sem valor e sem troca Sem que o humano se oculte na aparência A necessidade e o desejo serão o termo de equivalência Quando os trabalhadores perderem a paciência Quando os trabalhadores perderem a paciência Depois de dez anos sem uso, por pura obscelescência A filósofa-faxineira passando pelo palácio dirá: “declaro vaga a presidência”! Mauro Iasi

  • Sobre uma Caricatura do Marxismo e sobre o “Economismo Imperialista”

    V. I. Lênin Agosto/Outubro de 1916 “Ninguém comprometerá a social-democracia revolucionária se ela não se comprometer a si própria.” É sempre preciso recordar e ter em vista esta máxima quando esta ou aquela tese teórica ou tática importante do marxismo triunfa ou pelo menos se coloca na ordem do dia e quando, além de inimigos diretos e sérios, “se atiram” a ele amigos que irremediavelmente o comprometem — falando em russo: desonram —, transformando-o numa caricatura. Assim aconteceu repetidamente na história da social-democracia russa. A vitória do marxismo no movimento revolucionário, em começos dos anos 90 do século passado, foi acompanhada pelo aparecimento de uma caricatura do marxismo sob a forma do “economismo” ou “grevismo” de então, sem uma luta de muitos anos contra o qual os “iskristas” não poderiam ter defendido as bases da teoria e da política proletária nem contra o populismo pequeno-burguês nem contra o liberalismo burguês. Assim aconteceu com o bolchevismo, que triunfou no movimento operário de massas de 1905 graças, entre outras coisas, a uma aplicação correta da palavra de ordem de “boicote da Duma tsarista” num período de importantíssimas batalhas da revolução russa, no Outono de 1905, e que teve de sofrer — e superar pela luta — uma caricatura do bolchevismo em 1908-1910, quando Aléxinski e outros fizeram uma grande algazarra contra a participação na III Duma. É também assim que as coisas se apresentam agora. O reconhecimento de que esta guerra é imperialista, a indicação da sua profunda ligação com a época imperialista do capitalismo, encontram, a par de adversários sérios, amigos não sérios, para os quais a palavrinha imperialismo se tornou “moda”, que, tendo aprendido de cor esta palavrinha, levam aos operários a mais desesperada confusão teórica, ressuscitando toda uma série de passados erros do passado “economismo”. O capitalismo triunfou — por isso não é necessário pensar em questões políticas, discorriam os velhos “economistas” em 1894-1901, indo até à negação da luta política na Rússia. O imperialismo triunfou — por isso não é necessário pensar nas questões da democracia política, discorrem os atuais “economistas imperialistas”. Como exemplo destes estados de espírito, desta caricatura do marxismo, adquire importância o artigo de P. Kíevski publicado acima, que é o primeiro a fornecer a experiência de uma exposição literária minimamente integral das vacilações de pensamento que se observaram em alguns círculos do nosso partido no estrangeiro a partir de começos de 1915. A difusão do “economismo imperialista” nas fileiras dos marxistas, que se ergueram decididamente contra o social-chauvinismo e a favor do internacionalismo revolucionário na grande crise atual do socialismo, seria um gravíssimo golpe na nossa orientação — e no nosso partido —, porque o comprometeria a partir de dentro, das suas próprias fileiras, transformá-lo-ia em representante de um marxismo caricatural. Por isso, é preciso determo-nos num exame circunstanciado pelo menos dos principais entre os incontáveis erros do artigo de P. Kíevski, por mais “desinteressante” que isso seja em si, por mais que isso conduza a cada passo a um remoer excessivamente elementar de verdades excessivamente elementares, há muito conhecidas e compreendidas pelo leitor atento e ponderado a partir da nossa literatura de 1914 e 1915. Comecemos pelo ponto mais “central” dos raciocínios de P. Kíevski, para de imediato introduzir o leitor na “essência” da nova corrente do “economismo imperialista”. A Atitude Marxista em Relação às Guerra e à “Defesa da Pátria” P. Kíevski está ele próprio convencido e quer convencer os leitores de que ele “está em desacordo” apenas com a autodeterminação das nações, com o § 9 do nosso programa do partido. Ele tenta, muito zangado, refutar a acusação de que se desvia fundamentalmente do marxismo em geral na questão da democracia, de que é um “traidor” (venenosas aspas de P. Kíevski) ao marxismo em algo de fundamental. Mas a questão está em que, mal o nosso autor se pôs a discorrer sobre o seu desacordo pretensamente parcial e particular, se pôs a apresentar argumentos, considerações, etc., logo se verificou que ele se afasta do marxismo precisamente em toda a linha. Tome-se o §b (seção 2) do artigo de P. Kíevski. “Esta reivindicação” (isto é, a autodeterminação das nações) “conduz em linha reta ao social-patriotismo”, proclama o nosso autor, e explica que a “traidora” palavra de ordem de defesa da pátria é uma conclusão “tirada com a mais plena legitimidade lógica do direito das nações à autodeterminação” A autodeterminação, em sua opinião, significa “sancionar a traição dos sociais-patriotas franceses e belgas, que defendem esta independência” (a independência nacional-estatal da França e da Bélgica) “de armas na mão — eles fazem aquilo que os defensores da ‘autodeterminação’ apenas dizem” [...]“A defesa da pátria pertence ao arsenal dos nossos piores inimigos”[...] “Recusamo-nos decididamente a compreender como é possível ser ao mesmo tempo contra a defesa da pátria e a favor da autodeterminação, contra a pátria e a favor dela.” Assim escreve P. Kíevski. Claramente ele não compreendeu as nossas resoluções contra a palavra de ordem de defesa da pátria nesta guerra. É preciso tomar aquilo que está escrito preto no branco nestas resoluções e explicar mais uma vez o sentido da clara linguagem russa. A resolução do nosso partido adotada na conferência de Berna em Março de 1915 e que tem por título Sobre a Palavra de Ordem de Defesa da Pátria começa com as palavras: “A essência real da guerra atual consiste” nisto e nisto. Trata-se da guerra atual. Em russo não se pode dizer isto mais claramente. As palavras “essência real” mostram que é necessário distinguir o aparente do real, o exterior da essência, as frases do fato. As frases sobre a defesa da pátria nesta guerra fazem passar enganadoramente a guerra imperialista de 1914-1916, uma guerra pela partilha das colónias, pela pilhagem de terras alheias, etc., por uma guerra nacional. Para não deixar a menor possibilidade de deturpar as nossas concepções, a resolução acrescenta um parágrafo especial sobre “as guerras realmente nacionais”, que “tiveram lugar particularmente (note-se: particularmente não quer dizer exclusivamente) na época de 1789 a 1871”. A resolução esclarece que “na base” destas guerras “realmente” nacionais “esteve um longo processo de movimentos nacionais de massas, de luta contra o absolutismo e o feudalismo, de derrubamento da opressão nacional”. Parece que é claro, não é? Na guerra imperialista atual, que foi gerada por todas as condições da época imperialista, isto é, que não foi casual, não foi uma exceção, não foi um desvio do que é geral e típico, as frases sobre a defesa da pátria significam enganar o povo, pois esta guerra não é nacional. Numa guerra realmente nacional as palavras “defesa da pátria” não significam de modo nenhum um engano e nós não somos de modo nenhum contra ela. Essas guerras (realmente nacionais) tiveram lugar “particularmente” em 1789-1871, e a resolução, não negando nem com uma palavra a sua possibilidade também atualmente, esclarece como se deve distinguir uma guerra realmente nacional de uma guerra imperialista, encoberta com palavras de ordem falsamente nacionais. A saber: para as distinguir é necessário examinar se “na base” está “um longo processo de movimentos nacionais de massas”, “de derrubamento da opressão nacional”. Na resolução sobre o “pacifismo” diz-se diretamente: “os sociais-democratas não podem negar o significado positivo das guerras revolucionárias, isto é, das guerras não imperialistas, e das que foram travadas, por exemplo” (note-se isto: “por exemplo”), “de 1789 a 1871 pelo derrubamento da opressão nacional”. Poderia uma resolução do nosso partido em 1915 falar das guerras nacionais, de que houve exemplos em 1789-1871, e indicar que não negamos o significado positivo dessas guerras, se não se reconhecesse que essas guerras são possíveis também agora? É claro que não poderia. A brochura de Lénine e Zinóviev “O Socialismo e a Guerra” é um comentário às resoluções do nosso partido, isto é, uma explicação popular delas. Nesta brochura na p. 5 está escrito preto no branco que “os socialistas reconheciam e reconhecem hoje o caráter legítimo, progressista e justo da defesa da pátria ou da guerra defensiva” apenas no sentido do “derrubamento do jugo estrangeiro”. Apresenta-se um exemplo: a Pérsia contra a Rússia, “etc", e diz-se: “seriam guerras justas, defensivas, independentemente de quem primeiro atacasse, e qualquer socialista desejaria a vitória dos Estados oprimidos, dependentes, sem plenos direitos, contra as "grandes" potências opressoras, escravistas, espoliadoras”. A brochura saiu em agosto de 1915, está editada em alemão e em francês. P. Kíevski conhece-a perfeitamente. Nem uma só vez se nos opôs nem P. Kíevski nem em geral quem quer que seja, nem contra a resolução sobre a palavra de ordem de defesa da pátria, nem contra a resolução sobre o pacifismo, nem contra a interpretação destas resoluções na brochura, nem uma só vez! Pergunta-se: estaremos nós a caluniar P. Kíevski ao dizer que ele não compreendeu em absoluto o marxismo se este escritor, que desde Março de 1915 não se opôs às concepções do nosso partido sobre a guerra, agora, em Agosto de 1916, num artigo sobre a autodeterminação, isto é, num artigo pretensamente sobre uma questão parcial, manifesta uma incompreensão espantosa da questão geral? P. Kíevski chama “traidora” à palavra de ordem de defesa da pátria. Podemos tranquilamente assegurar-lhe que qualquer palavra de ordem é e será sempre “traidora” para aqueles que a repitam mecanicamente, sem compreender o seu significado, sem meditar no assunto, limitando-se a memorizar palavras sem analisar o seu sentido. Que é a “defesa da pátria”, falando em geral? É um qualquer conceito científico do domínio da economia ou da política, etc? Não. É simplesmente a expressão mais corrente, geralmente empregue, por vezes simplesmente filistina, que significa a justificação da guerra. Nada mais, absolutamente nada! Aqui só pode ser “traidor” o fato de que os filisteus são capazes de justificar qualquer guerra, dizendo “nós defendemos a pátria”, enquanto o marxismo, que não se rebaixa até à estreiteza filistina, exige uma análise histórica de cada guerra particular para perceber se é possível considerar esta guerra progressista, servindo os interesses da democracia ou do proletariado, neste sentido legítima, justa, etc. A palavra de ordem de defesa da pátria é muito frequentemente uma justificação filistina inconsciente da guerra, sem saber perceber historicamente o significado e o sentido de cada guerra particular. O marxismo fornece essa análise e diz: se a “essência real” da guerra consiste, por exemplo, no derrubamento da opressão estrangeira (o que é particularmente típico da Europa de 1789-1871), então a guerra é progressista da parte do Estado ou nação oprimida. Se a “essência real” da guerra é a partilha das colônias, a divisão do saque, o roubo de terras estrangeiras (é assim a guerra de 1914-1916) — então a frase sobre a defesa da pátria é “um vulgar engano do povo”. Mas como encontrar a “essência real” de uma guerra, como determiná-la? A guerra é a continuação da política. É preciso estudar a política anterior à guerra, a política que conduziu à guerra. Se a política era imperialista, isto é, defendia os interesses do capital financeiro, roubava e oprimia colônias e países estrangeiros, então também a guerra decorrente dessa política é uma guerra imperialista. Se a política era nacional-libertadora, isto é, exprimia um movimento de massas contra a opressão nacional, então a guerra decorrente dessa política é uma guerra nacional-libertadora. O filisteu não compreende que a guerra é a “continuação da política”, e por isso limita-se a dizer que “o inimigo ataca”, o “inimigo lançou-se sobre o meu país”, sem analisar por que razão é travada a guerra, por quais classes, com qual objetivo político. P. Kíevski desce absolutamente ao nível desse pequeno burguês quando diz que os alemães tomaram a Bélgica, portanto, do ponto de vista da autodeterminação “os social-patriotas belgas têm razão”, ou: os alemães tomaram uma parte da França, portanto “Guesde pode estar satisfeito”, porque “se trata de um território povoado pela nação dada” (e não por uma nação estrangeira). Para o filisteu o importante é onde estão as tropas, quem é que agora está a vencer. Para o marxista o importante é por que razão é travada esta guerra, durante a qual podem ser vencedoras ora umas ora outras tropas. Qual a razão por que se trava esta guerra? Isto é indicado na nossa resolução (que se baseou na política das potências beligerantes, por elas realizada durante décadas antes da guerra). A Inglaterra, a França e a Rússia combatem pela conservação das colônias roubadas e pela pilhagem da Turquia, etc. A Alemanha para tomar colônias e pilhar ela própria a Turquia, etc. Admitamos que os alemães tomam mesmo Paris e Petersburgo. Mudará por isso o caráter desta guerra? De modo nenhum. O objetivo dos alemães e — isto é ainda mais importante: a política realizada em caso de vitória dos alemães — será então a tomada das colónias, a dominação na Turquia, a tomada de regiões de outras nações, por exemplo da Polónia, etc., mas de modo nenhum o estabelecimento da opressão estrangeira sobre os franceses ou os russos. A essência real desta guerra não é nacional, mas imperialista. Por outras palavras: a guerra não é travada para que uma parte derrube a opressão nacional e a outra a defenda. A guerra é travada entre dois grupos de opressores, entre dois bandidos, para saber como dividir o saque e quem há-de pilhar a Turquia e as colónias. Resumindo: uma guerra entre grandes potências imperialistas (isto é, que oprimem toda uma série de povos estrangeiros, que os amarram com as redes da dependência do capital financeiro, etc.) ou em aliança com elas é uma guerra imperialista. Assim é a guerra de 1914-1916. A “defesa da pátria” nesta guerra é um engano, é justificá-la. Uma guerra contra as potências imperialistas, isto é, opressoras, por parte dos oprimidos (por exemplo, dos povos coloniais) é uma guerra realmente nacional. Ela também é possível atualmente. A “defesa da pátria” da parte de um país nacionalmente oprimido contra o nacionalmente opressor não é um engano, e os socialistas não são de modo nenhum contra a “defesa da pátria” nessa guerra. A autodeterminação das nações é o mesmo que a luta pela completa libertação nacional, pela completa independência, contra as anexações, e os socialistas não podem renunciar, sem deixarem de ser socialistas, a essa luta — em qualquer forma, incluindo a insurreição ou a guerra. P. Kíevski pensa que luta contra Plekhánov: Plekhánov, diz ele, apontou a ligação da autodeterminação das nações com a defesa da pátria! P. Kíevski acreditou em Plekhánov, acreditou que esta ligação é realmente tal como Plekhánov a descreve. Tendo acreditado em Plekhánov, P. Kíevski assustou-se e decidiu que era necessário negar a autodeterminação para se salvar das conclusões de Plekhánov. A credulidade em Plekhánov é grande, o susto também é grande, mas não há nem traço de reflexão acerca de onde reside o erro de Plekhánov! Para fazer passar esta guerra por nacional, os sociais-chauvinistas invocam a autodeterminação das nações. A luta correta contra eles é só uma: é preciso mostrar que esta luta não é pela libertação das nações, mas para saber qual dos abutres oprimirá mais nações. Mas chegar à negação de uma guerra travada realmente pela libertação das nações significa fazer a pior das caricaturas do marxismo. Plekhánov e os sociais-chauvinistas franceses invocam a república em França para justificar a sua “defesa” contra a monarquia na Alemanha. Se raciocinarmos como raciocina P. Kíevski, então devemos ser contra uma república ou contra uma guerra realmente travada pela defesa da república! Os sociais-chauvinistas alemães invocam o sufrágio universal e a instrução primária obrigatória na Alemanha para justificar a “defesa” da Alemanha contra o tsarismo. Se raciocinarmos como raciocina Kíevski, então devemos ser ou contra o sufrágio universal e a instrução primária para todos ou contra uma guerra realmente travada para salvaguardar a liberdade política das tentativas de a retirar! Antes da guerra de 1914-1916 K. Kautsky era marxista, e toda uma série de importantíssimas obras e declarações suas permanecerão para sempre um modelo de marxismo. Em 26 de Agosto de 1910 Kautsky escreveu na Neue Zeit a propósito da guerra iminente: “Em caso de guerra entre a Alemanha e a Inglaterra, o que está em questão não é a democracia mas a dominação mundial, isto é, a exploração do mundo. Não é uma questão em que os sociais-democratas devessem pôr-se ao lado dos exploradores da sua nação” (Neue Zeit, 28. Jahrg., Bd. 2, S. 776). Eis uma excelente formulação marxista, a qual coincide inteiramente com as nossas, a qual desmascara inteiramente o Kautsky atual, que virou do marxismo para a defesa do social-chauvinismo, a qual esclarece de modo inteiramente nítido os princípios da atitude marxista em relação às guerras (ainda voltaremos à imprensa a propósito desta formulação). As guerras são a continuação da política; por isso, uma vez que tem lugar uma luta pela democracia, é possível também uma guerra pela democracia; a autodeterminação das nações é apenas uma das reivindicações democráticas, que não se distingue em nada de fundamental de outras. A “dominação mundial” é, falando brevemente, o conteúdo da política imperialista, cuja continuação é a guerra imperialista. Negar a “defesa da pátria”, isto é, a participação numa guerra democrática, é uma estupidez que não tem nada de comum com o marxismo. Embelezar a guerra imperialista aplicando-lhe o conceito de “defesa da pátria”, isto é, fazendo-a passar por democrática, significa enganar os operários, passar para o lado da burguesia reacionária. “A Nossa Concepção da Nova Época” P. Kíevski, a quem pertence a expressão posta entre aspas, fala constantemente de “nova época”. Infelizmente, também aqui os seus raciocínios são errados. As resoluções do nosso partido falam desta guerra, gerada pelas condições gerais da época imperialista. A correlação de “época” e “esta guerra” é por nós colocada corretamente do ponto de vista marxista: para ser marxista é necessário avaliar concretamente cada guerra particular. Para compreender por que é que entre grandes potências, muitas das quais estiveram em 1789-1871 à frente da luta pela democracia, pôde e teve de surgir uma guerra imperialista, isto é, a mais reacionária e antidemocrática pelo seu significado político, para compreender isto é necessário compreender as condições gerais da época imperialista, isto é, da transformação do capitalismo dos países avançados em imperialismo. P. Kíevski deturpou completamente esta correlação de “época” e “esta guerra”. Para ele, falar concretamente significa falar da “época”! Isto é precisamente errado. A época de 1789-1871 é uma época particular para a Europa. Isso é indiscutível. Não se pode compreender nenhuma das guerras nacional-libertadoras, que são particularmente típicas desse tempo, sem compreender as condições gerais desta época. Significará isto que todas as guerras desta época foram nacional-libertadoras? Naturalmente que não. Dizer isto significaria chegar ao absurdo e colocar um chavão ridículo no lugar de um estudo concreto de cada guerra particular. Em 1789-1871 houve também guerras coloniais e guerras entre impérios reacionários que oprimiam toda uma série de nações estrangeiras. Pergunta-se: decorrerá do fato de que o capitalismo europeu (e americano) avançado entrou na nova época do imperialismo, que atualmente só são possíveis guerras imperialistas? Isso seria uma afirmação absurda, uma incapacidade de distinguir um dado fenómeno concreto de toda a soma dos variados fenômenos possíveis de uma época. Uma época chama-se época precisamente porque ela abarca uma soma de fenômenos e guerras variados, tanto típicos como não típicos, tanto grandes como pequenos, tanto próprios dos países avançados como próprios dos países atrasados. Esquivar-se a estas questões concretas por meio de frases gerais sobre a “época”, como faz P. Kíevski, significa abusar do conceito de “época”. Para não falar gratuitamente, vamos agora citar um exemplo entre muitos. Mas primeiro é preciso mencionar que um grupo de elementos de esquerda, precisamente o grupo alemão A Internacional nas suas teses, publicadas no n° 3 do Boletim da Comissão Executiva de Berna (29 de Fevereiro de 1916), fez no § 5 uma afirmação claramente errada: ”Na era deste imperialismo desenfreado já não pode haver nenhumas guerras nacionais.” Nós analisamos esta afirmação em Sbórnik Sotsial-Demokrata. Assinalaremos aqui apenas que, embora todos os que se interessam pelo movimento internacionalista conheçam há muito esta tese teórica (lutamos contra ela ainda na assembleia alargada da Comissão Executiva de Berna na Primavera de 1916), até agora nenhum grupo a repetiu, a adotou. E, P. Kíevski, em Agosto de 1916, quando escreveu o seu artigo, não disse nem uma palavra no espírito dessa afirmação ou de uma semelhante. Eis por que é preciso assinalar isto: se esta afirmação teórica ou uma semelhante fosse expressa, então poder-se-ia falar de divergência ideológica. Mas quando não se faz nenhuma afirmação semelhante, somos obrigados a dizer: não temos diante de nós outra concepção de “época”, não temos uma divergência teórica, mas apenas uma frase lançada com força, apenas o abuso da palavra “época”. Um exemplo: “Ela não se parece (a autodeterminação)”, escreve P. Kíevski logo no princípio do seu artigo, “com o direito de receber gratuitamente 10.000 deciatinas em Marte? Não se pode responder a esta pergunta senão de modo plenamente concreto, tendo em conta toda a época atual; porque uma coisa é o direito das nações à autodeterminação na época da formação dos Estados nacionais, como as melhores formas de desenvolvimento das forças produtivas no seu nível de então, e outra coisa é este direito quando estas formas, as formas do Estado nacional, se tornaram grilhetas do seu desenvolvimento. Entre a época da afirmação do capitalismo e do Estado nacional e a época do perecimento do Estado nacional e da véspera do perecimento do próprio capitalismo existe uma enorme distância. E falar "em geral", fora do tempo e do espaço, não é coisa de um marxista.” Este raciocínio é um exemplo de utilização caricatural do conceito de “época imperialista”. Precisamente porque este conceito é novo e importante, é preciso lutar contra a caricatura! De que se trata quando dizem que as formas do Estado nacional se tornaram grilhetas, etc.? Dos países capitalistas avançados, da Alemanha, da França, da Inglaterra antes de mais, cuja participação nesta guerra foi o que em primeiro lugar a tornou uma guerra imperialista. Nestes países, que até agora conduziram a humanidade para a frente, particularmente em 1789-1871, terminou o processo de formação do Estado nacional, nestes países o movimento nacional é um passado irrevogável, ressuscitar o qual seria uma absurda utopia reacionária. O movimento nacional dos franceses, dos ingleses, dos alemães, está há muito concluído; aqui na ordem do dia da história coloca-se outra coisa: as nações que se libertavam transformaram-se em nações opressoras, em nações de pilhagem imperialista, que vivem “a véspera do perecimento do capitalismo”. E as outras nações? P. Kíevski repete, como uma regra aprendida de cor, que os marxistas devem raciocinar “concretamente”, mas não a aplica. Mas nós nas nossas teses demos propositadamente um exemplo de uma resposta concreta, e P. Kíevski não quis apontar-nos o nosso erro, se é que viu aí um erro. Nas nossas teses (§ 6) diz-se que é preciso distinguir, para ser concreto, não menos de três tipos diferentes de países quanto à questão da autodeterminação. (E claro que numas teses gerais não se poderia falar de cada país.) O primeiro tipo são os países avançados do Ocidente da Europa (e da América), onde o movimento nacional é o passado. O segundo tipo é o Leste da Europa, onde ele é o presente. O terceiro tipo são as semi-colônias e colônias, onde ele é, em grau considerável, o futuro. Isto é correto ou não? P. Kíevski teve de dirigir para isto a sua crítica. Mas ele nem sequer nota em que consistem as questões teóricas! Ele não vê que enquanto não tiver refutado o postulado mencionado (no § 6) das nossas teses — e não se pode refutá-lo, porque ele é correto —, os seus raciocínios sobre a “época” se assemelham a um homem que “brande” uma espada mas não assesta golpes. “Contrariamente à opinião de V. Lenin”, escreve ele no fim do artigo, “supomos que para a maioria dos países ocidentais a questão nacional não está resolvida.” Assim, presume-se, o movimento nacional dos franceses, dos espanhóis, dos ingleses, dos holandeses, dos alemães, dos italianos, não foi concluído nos séculos XVII, XVIII e XIX e antes? No começo do artigo o conceito de “época do imperialismo” é deturpado como se o movimento nacional estivesse concluído em geral, e não só nos países ocidentais avançados. No fim do mesmo artigo a “questão nacional” é declarada ”não resolvida” precisamente nos países ocidentais! Não é isto uma embrulhada? Nos países ocidentais o movimento nacional é um passado longínquo. A “pátria” na Inglaterra, na França, na Alemanha, etc., já deu o que tinha a dar, desempenhou o seu papel histórico, isto é, aqui o movimento nacional não pode dar nada de progressivo, que eleve novas massas de pessoas a uma nova vida económica e política. Aqui o que está na ordem do dia da história não é a passagem do feudalismo ou da barbárie patriarcal para o progresso nacional, para uma pátria culta e politicamente livre, mas a passagem da “pátria” capitalista demasiado madura, caduca, para o socialismo. No Leste da Europa as coisas apresentam-se de modo diferente. Para os ucranianos e os bielorrussos, por exemplo, só uma pessoa que vivesse em sonhos em Marte poderia negar que aqui o movimento nacional ainda não concluiu, que o despertar das massas para o conhecimento da língua-mãe e da sua literatura (e isto é uma condição necessária e acompanha o pleno desenvolvimento do capitalismo, a completa penetração da troca até à última família camponesa) aqui ainda se está a realizar. A “pátria” aqui ainda não deu tudo o que historicamente tinha a dar. A “defesa da pátria” aqui ainda pode ser defesa da democracia, da língua-mãe, da liberdade política contra as nações opressoras, contra o medievalismo, ao passo que os ingleses, os franceses, os alemães e os italianos agora mentem ao falar da defesa da sua pátria nesta guerra, pois de fato não é a língua-mãe, não é a liberdade do seu desenvolvimento nacional que eles defendem, mas os seus direitos de escravistas, as suas colónias, as “esferas de influência” do seu capital financeiro em países estrangeiros, etc. Nas semi-colônias e nas colônias o movimento nacional é historicamente ainda mais jovem do que no Leste da Europa. A que se referem as palavras sobre os “países altamente desenvolvidos” e sobre a época imperialista; em que consiste a situação “particular” da Rússia (título do § e do 2.° capítulo de P. Kíevski) e não só da Rússia; onde é que o movimento de libertação nacional é uma frase falsa e onde é que ele é uma realidade viva e progressiva — P. Kíevski não percebeu absolutamente nada disto. Que é a Análise Económica? O centro dos raciocínios dos adversários da autodeterminação é a referência à sua “irrealizabilidade” sob o capitalismo em geral ou sob o imperialismo. A palavrinha “irrealizabilidade” emprega-se muitas vezes em significados diferentes e imprecisamente definidos. Por isso nas nossas teses nós exigimos aquilo que é necessário em qualquer discussão teórica: a explicação do sentido em que se fala da “irrealizabilidade”. E, não nos limitando a isto, empreendemos essa explicação. No sentido da dificuldade de realização ou irrealizabilidade política, sem uma série de revoluções todas as reivindicações da democracia são “irrealizáveis” sob o imperialismo. No sentido da impossibilidade económica, falar da irrealizabilidade da autodeterminação é profundamente falso. Tal era o nosso postulado. É aqui que está o centro da divergência teórica, e numa discussão minimamente séria os nossos adversários deveriam dedicar toda a atenção a esta questão. Mas vejam como é que P. Kíevski discorre sobre esta questão. Ele afasta definitivamente a interpretação da irrealizabilidade no sentido da “difícil realizabilidade” devido a causas políticas. Ele responde à questão diretamente no sentido da impossibilidade económica. “Significará isto”, escreve ele, “que a autodeterminação sob o imperialismo é tão irrealizável como o dinheiro-trabalho sob a produção mercantil?” E. P. Kíevski responde: “Sim, significa! Porque nós falamos precisamente da contradição lógica entre duas categorias sociais: o ‘imperialismo’ e a ‘autodeterminação das nações’, a mesma contradição lógica que existe entre duas outras categorias: o dinheiro-trabalho e a produção mercantil. O imperialismo é a negação da autodeterminação, e nenhum prestidigitador conseguirá tornar compatível a autodeterminação com o imperialismo.” Por mais terrível que seja a irritada palavra “prestidigitadores” que P. Kíevski lança contra nós, temos, apesar disso, de fazer-lhe notar que ele simplesmente não compreende o que significa a análise económica. Não deve haver “contradição lógica” — com a condição, naturalmente, de um pensamento lógico correto — nem na análise económica nem na análise política. Por isso, invocar a “contradição lógica” em geral, quando se trata precisamente de fazer uma análise económica, e não política, é completamente impossível. Tanto o econômico como o político figuram entre as “categorias sociais”. Consequentemente, P. Kíevski, depois de primeiro responder decidida e diretamente “sim, significa” (isto é, a autodeterminação é tão irrealizável como o dinheiro-trabalho sob a produção mercantil), escapou-se andando à volta do assunto, mas não fez uma análise económica. Como é que se prova que o dinheiro-trabalho é irrealizável sob a produção mercantil? Pela análise económica. Esta análise que, como qualquer análise, não admite “contradição lógica”, toma categorias económicas e apenas económicas (e não categorias “sociais” em geral) e deduz delas a impossibilidade do dinheiro-trabalho. No primeiro capítulo de O Capital não se fala absolutamente de nenhuma política, de nenhuma forma política, de nenhuma das “categorias sociais”: a análise toma apenas o econômico, a troca de mercadorias, o desenvolvimento da troca de mercadorias. A análise económica mostra — por meio, naturalmente, de raciocínios “lógicos” — que o dinheiro-trabalho é irrealizável sob a produção mercantil. P. Kíevski não faz sequer uma tentativa de empreender uma análise económica! Ele confunde a essência económica do imperialismo com as suas tendências políticas, como se vê logo pela primeira frase do primeiro parágrafo do seu artigo. Eis essa frase: “O capital industrial surgiu como síntese da produção pré-capitalista e do capital comercial e usurário. O capital usurário tornou-se um servidor do capital industrial. Atualmente o capitalismo supera as diferentes formas de capital, surge o seu tipo superior e unificado, o capital financeiro, e por isso pode chamar-se a toda a época, época do capital financeiro, cujo sistema adequado de política externa é o imperialismo.” Economicamente toda esta definição não presta para nada: em vez de categorias econômicas precisas só há frases. Mas agora não é possível determo-nos nisto. O que é importante é que P. Kíevski declara que o imperialismo é um “sistema de política externa”. Isto, em primeiro lugar, é em essência uma repetição errada da ideia errada de Kautsky. Isto, em segundo lugar, é uma definição puramente política, apenas política, do imperialismo. Por meio da definição do imperialismo como “sistema de política”, P. Kíevski quer esquivar-se à análise económica, que prometeu dar, declarando que a autodeterminação é “tão” irrealizável, isto é, economicamente irrealizável, sob o imperialismo como o dinheiro-trabalho sob a produção mercantil! Kautsky declarou na controvérsia com os elementos de esquerda que o imperialismo é “apenas um sistema de política externa” (a saber, de anexação), que não se pode chamar imperialismo a um certo estádio económico, grau de desenvolvimento, do capitalismo. Kautsky não tem razão. Naturalmente que não é inteligente discutir sobre as palavras. Não se pode proibir o emprego da “palavra” imperialismo desta ou daquela maneira. Mas é preciso esclarecer os conceitos com precisão se se quiser travar uma discussão. Economicamente o imperialismo (ou “época” do capital financeiro, a questão não está na palavra) é o grau mais elevado do desenvolvimento do capitalismo, precisamente o grau em que a produção se tornou tão grande e imensa que a liberdade de concorrência é substituída pelo monopólio. É nisto que reside a essência económica do imperialismo. O monopólio manifesta-se nos trusts, consórcios, etc., na onipotência de bancos gigantescos, no açambarcamento das fontes de matérias-primas, etc., na concentração do capital bancário, etc. Toda a questão está no monopólio econômico. A superestrutura política da nova economia, do capitalismo monopolista (o imperialismo é o capitalismo monopolista), é a viragem da democracia para a reação política. A democracia corresponde à livre concorrência. A reação política corresponde ao monopólio. “O capital financeiro tende para a dominação e não para a liberdade”, diz justamente R. Hilferding no seu “O Capital Financeiro”. Separar a “política externa” da política em geral ou, mais ainda, contrapor a política externa à interna é uma ideia essencialmente incorreta, não marxista e não científica. Tanto na política externa como na interna, o imperialismo tende de igual modo para violações da democracia, para a reação. Neste sentido é indiscutível que o imperialismo é a “negação” da democracia em geral, de toda a democracia, e de modo nenhum apenas de uma das reivindicações da democracia, a saber: a autodeterminação das nações. Sendo a “negação” da democracia, o imperialismo também “nega” a democracia na questão nacional (isto é, a autodeterminação das nações): “também”, isto é, ele tende para a sua violação; a sua realização é exatamente tanto e no mesmo sentido mais difícil sob o imperialismo quanto é mais difícil sob o imperialismo (em comparação com o capitalismo pré-monopolista) a realização da república, da milícia, da eleição dos funcionários pelo povo, etc. Nem sequer se pode falar de irrealizabilidade “económica”. P. Kíevski foi aqui induzido em erro, provavelmente, também pelo fato (além da incompreensão geral das exigências da análise econômica) de, do ponto de vista filisteu, a anexação (isto é, a incorporação de uma região estrangeira contra a vontade da sua população, isto é, violação da autodeterminação da nação) ser considerada equivalente à “ampliação” (expansão) do capital financeiro a um território económico mais vasto. Mas não se pode abordar questões teóricas com conceitos filisteus. O imperialismo é, economicamente, o capitalismo monopolista. Para que o monopólio seja completo é preciso eliminar os concorrentes não só do mercado interno (do mercado do Estado dado) mas também do mercado externo, de todo o mundo. Existe a possibilidade económica “na era do capital financeiro” de eliminar a concorrência mesmo num Estado estrangeiro? Certamente que existe: esse meio é a dependência financeira e o açambarcamento das fontes de matérias-primas, e depois também de todas as empresas do concorrente. Os trusts americanos são a expressão mais elevada da economia do imperialismo ou capitalismo monopolista. Para eliminar um concorrente os trusts não se limitam a meios económicos, antes recorrem constantemente a meios políticos e mesmo criminosos. Mas seria o mais profundo dos erros considerar que o monopólio dos trusts é economicamente irrealizável com métodos de luta puramente económicos. Pelo contrário, a realidade demonstra a cada passo que isto é “realizável”; os trusts minam o crédito do concorrente por meio dos bancos (os donos dos trusts são os donos dos bancos: açambarcamento das ações); os trusts minam o fornecimento de materiais aos concorrentes (os donos dos trusts são os donos dos caminhos-de-ferro: açambarcamento das ações); durante um certo tempo os trusts fazem cair os preços abaixo do custo, perdendo milhões com isto, para arruinar o concorrente e açambarcar as suas empresas, as suas fontes de matérias-primas (minas, terra, etc.). Aqui está uma análise puramente económica da força dos trusts e da sua ampliação. Aqui está uma via puramente económica de ampliação: o açambarcamento de empresas, de estabelecimentos, de fontes de matérias-primas. O grande capital financeiro de um só país pode sempre açambarcar os concorrentes de um país estrangeiro politicamente dependente e fá-lo sempre. Economicamente isto é plenamente realizável. A “anexação” econômica é plenamente “realizável” sem a anexação política e encontra-se constantemente. Na literatura sobre o imperialismo encontra-se a cada passo, por exemplo, indicações de que a Argentina é de fato uma “colônia comercial” da Inglaterra, de que Portugal é de fato um “vassalo” da Inglaterra, etc. Isto é verdade: a dependência económica em relação aos bancos ingleses, o endividamento à Inglaterra, o açambarcamento pela Inglaterra dos caminhos-de-ferro, minas, terras, etc., tudo isto faz dos países mencionados “anexações” da Inglaterra no sentido económico, sem violação da independência política desses países. Chama-se autodeterminação das nações à sua independência política. O imperialismo tende a violar esta, pois com a anexação política a anexação económica é frequentemente mais cómoda, mais barata (é mais fácil subornar funcionários, conseguir concessões, fazer aprovar leis vantajosas, etc.), mais conveniente, mais tranquila — exatamente do mesmo modo que o imperialismo tende a substituir a democracia em geral pela oligarquia. Mas falar da “irrealizabilidade” econômica da autodeterminação sob o imperialismo é simplesmente uma completa confusão. P. Kíevski elude as dificuldades teóricas por meio de um método extraordinariamente fácil e leviano, a que em alemão se chama expressões “burschikose”, isto é, expressões estudantis ingênuas, grosseiras, empregues (e naturais) numa bebedeira de estudantes. Eis um exemplo: “O sufrágio universal”, escreve ele, “a jornada de trabalho de 8 horas e mesmo a república são logicamente compatíveis com o imperialismo, embora elas estejam longe de sorrir ao imperialismo e por isso a sua realização seja dificultada em extremo.” Não teríamos absolutamente nada contra a expressão burschikose de que a república não “sorri” ao imperialismo — uma palavrinha alegre embeleza por vezes matérias científicas! — se além dela houvesse no raciocínio sobre uma questão séria também uma análise económica e política dos conceitos. Em P. Kíevski as frases burschikose substituem essa análise, encobrem a sua ausência. Que significa “a república não sorri ao imperialismo”? E por que é que é assim? A república é uma das formas possíveis da superestrutura da sociedade capitalista e, além disso, a mais democrática nas condições contemporâneas. Dizer que a república “não sorri” ao imperialismo significa dizer que existe uma contradição entre o imperialismo e a democracia. Pode muito bem ser que esta nossa conclusão “não sorria” e até “esteja longe de sorrir” a P. Kíevski, mas ela não deixa de ser indiscutível. Continuemos. De que espécie é esta contradição entre o imperialismo e a democracia? É lógica ou não é lógica? P. Kíevski emprega a palavra “lógico” sem refletir, e por isso não nota que esta palavra lhe serve neste caso para dissimular (aos olhos e à inteligência do leitor, do mesmo modo que aos olhos e à inteligência do autor) exatamente a questão que ele se propusera tratar! Esta questão é a relação da economia com a política; a relação das condições económicas e do conteúdo econômico do imperialismo com uma das formas políticas. Qualquer “contradição” que se observe nos raciocínios humanos é uma contradição lógica; isto é uma tautologia oca. Por meio desta tautologia P. Kíevski elude o fundo da questão: existe contradição “lógica” entre dois fenómenos ou postulados econômicos (1)? ou entre dois fenómenos ou postulados políticos (2)? ou entre um econômico e um político (3)? Porque é aqui que reside o fundo da questão, uma vez que se colocou a questão da irrealizabilidade ou realizabilidade económica existindo uma ou outra forma política! Se P. Kíevski não tivesse evitado este fundo da questão, teria provavelmente visto que a contradição entre o imperialismo e a república é uma contradição entre a economia do capitalismo moderno (precisamente: do capitalismo monopolista) e a democracia política em geral. Porque P. Kíevski nunca demonstrará que qualquer medida democrática importante e essencial (a eleição dos funcionários ou dos oficiais pelo povo, a mais ampla liberdade de associação e de reunião, etc.) é menos contraditória com o imperialismo (lhe “sorri” mais, se se quiser) do que a república. Chega-se precisamente ao postulado em que nós insistimos nas teses: o imperialismo está em contradição, em contradição “lógica”, com toda a democracia política em geral. Este nosso postulado “não sorri” a P. Kíevski porque destrói as suas ilógicas construções, mas o que fazer? Não seria na verdade resignar-nos ao fato de serem introduzidos secretamente precisamente certos postulados que pretensamente se quer refutar, fazendo-o por meio da expressão “a república não sorri ao imperialismo”? Continuemos. Por que é que a república não sorri ao imperialismo? E como é que o imperialismo “torna compatível” a sua economia com a república? P. Kíevski não pensou nisto. Lembrar-lhe-emos as seguintes palavras de Engels. Trata-se da república democrática. A questão põe-se assim: pode a riqueza dominar existindo esta forma de governo? Isto é, precisamente a questão da “contradição” entre a economia e a política. Engels responde: “Oficialmente a república democrática nada sabe sobre as diferenças” (entre os cidadãos) “quanto à riqueza. Nela a riqueza exerce o seu poder indiretamente, mas em compensação tanto mais seguramente. Por um lado, sob a forma de suborno direto dos funcionários” (“o exemplo clássico é a América”), “por outro lado sob a forma de aliança do governo e da bolsa”. Aí têm um exemplo de análise económica sobre a questão da “realizabilidade” da democracia sob o capitalismo, questão da qual a questão da “realizabilidade” da autodeterminação sob o imperialismo é uma parcela! A república democrática está em contradição “lógica” com o capitalismo porque “oficialmente” iguala o rico e o pobre. Isto é uma contradição entre o sistema econômico e a superestrutura política. A república tem a mesma contradição com o imperialismo, contradição aprofundada ou agravada pelo fato de a substituição da livre concorrência pelo monopólio “dificultar” ainda mais a realização de quaisquer liberdades políticas. Mas como é que o capitalismo se torna compatível com a democracia? Por meio da aplicação indireta da onipotência do capital! São dois os meios económicos para isto: o suborno direto; a aliança do governo com a bolsa. (Nas nossas teses isto é expresso pelas palavras: o capital financeiro “compra e suborna livremente qualquer governo e funcionários” no sistema burguês.) Uma vez que a produção mercantil domina, a burguesia, o poder do dinheiro, o suborno (direto ou através da bolsa), é “realizável” existindo qualquer forma de governo, qualquer democracia. Pergunta-se: O que é que se modifica, na relação analisada, com a substituição do capitalismo pelo imperialismo, isto é, do capitalismo pré-monopolista pelo monopolista? Apenas que o poder da bolsa se reforça! Porque o capital financeiro é o grande capital industrial, que cresceu até ao monopólio, que se fundiu com o capital bancário. Os grandes bancos fundem-se com a bolsa, absorvendo-a. (Na literatura sobre o imperialismo fala-se do declínio do papel da bolsa, mas apenas no sentido de que qualquer banco gigantesco é ele próprio uma bolsa.) Continuemos. Se para a “riqueza” a dominação sobre qualquer república burguesa se revela em geral plenamente realizável por meio do suborno e da bolsa, então de que modo pode P. Kíevski afirmar, sem cair numa engraçada “contradição lógica”, que a grandíssima riqueza dos trusts e dos bancos, que dispõem de milhares de milhões, não pode “realizar” o poder do capital financeiro sobre uma república estrangeira, isto é, politicamente independente?? Então como é? o suborno de funcionários é “irrealizável” num Estado estrangeiro? ou a “aliança do governo com a bolsa” é apenas a aliança do seu próprio governo? O leitor já vê por aqui que para desembaraçar as coisas e explicar numa linguagem popular são precisas cerca de dez páginas impressas contra dez linhas de confusão. Não podemos examinar tão pormenorizadamente cada raciocínio de P. Kíevski - literalmente ele não tem um sem confusão! —, nem disso há necessidade, uma vez que o principal foi examinado. Referiremos brevemente o restante. O Exemplo da Noruega A Noruega “realizou” o direito pretensamente irrealizável à autodeterminação em 1905, na era do imperialismo mais desenfreado. Falar de “irrealizabilidade” é por isso não só teoricamente absurdo como também ridículo. P. Kíevski quer refutar isto, acusando-nos zangado de sermos “racionalistas” (porquê? O racionalista limita-se a fazer considerações, e além disso abstratas, mas nós apontamos um fato muito concreto! não empregará P. Kíevski a palavrinha estrangeira “racionalista” de modo tão... como exprimir-me mais suavemente? De modo tão “feliz” como empregou no começo do seu artigo a palavra “extrativa”, apresentando as suas considerações “de forma extrativa”?). P. Kíevski censura-nos por para nós “o importante ser a aparência dos fenômenos, e não a verdadeira essência”. Examinemos pois a verdadeira essência. A refutação começa com um exemplo: o fato da publicação da lei contra os trusts não demonstra a irrealizabilidade da proibição dos trusts. É justo. Só que o exemplo é infeliz, porque fala contra P. Kíevski. A lei é uma medida política, é política. Não se pode proibir a economia com nenhuma medida política. Nenhuma forma política da Polónia, seja ela uma parcela da Rússia tsarista ou da Alemanha, ou uma região autónoma ou um Estado politicamente independente, pode proibir ou anular a sua dependência do capital financeiro das potências imperialistas, o açambarcamento das ações das suas empresas por este capital. A independência da Noruega “realizada” em 1905 é apenas política. Ela não se propunha, nem podia, tocar a dependência económica. É exatamente disso que falam as nossas teses. Apontamos precisamente que a autodeterminação diz respeito apenas à política e que por isso é errado colocar sequer a questão da irrealizabilidade económica. E P. Kíevski “refuta-nos” citando um exemplo da impotência das proibições políticas contra a economia! Bela “refutação”! Continuemos. “Não basta um ou mesmo muitos exemplos de vitória de pequenas empresas sobre as grandes para refutar a tese correta de Marx de que o curso geral do desenvolvimento do capitalismo é acompanhado pela concentração e centralização da produção.” Este argumento consiste novamente num exemplo infeliz, que é escolhido para desviar a atenção (do leitor e do autor) da essência real da discussão. A nossa tese diz que é errado falar da irrealizabilidade económica da autodeterminação no mesmo sentido em que é irrealizável o dinheiro-trabalho sob o capitalismo. Não pode haver nem um só “exemplo” dessa realizabilidade. P. Kíevski reconhece tacitamente a nossa razão quanto a este ponto, pois passa para outra interpretação da “irrealizabilidade”. Por que é que ele não faz isto diretamente? Por que é que não formula aberta e precisamente a sua tese; “a autodeterminação, sendo irrealizável no sentido da sua possibilidade econômica sob o capitalismo, está em contradição com o desenvolvimento e por isso é reacionária ou constitui apenas uma exceção”? Porque a formulação aberta da contratese desmascararia imediatamente o autor, e ele precisa de se esconder. A lei da concentração económica, da vitória da grande produção sobre a pequena, é reconhecida pelo nosso programa e pelo de Erfurt. P. Kíevski esconde o fato de em parte nenhuma ser reconhecida a lei da concentração política ou estatal. Se é a mesma lei ou também uma lei, por que é que P. Kíevski não a expõe e não propõe que o nosso programa seja completado? Será justo da sua parte deixar-nos com um programa mau e incompleto quando ele descobriu esta nova lei da concentração estatal, lei que tem uma importância prática, pois livraria o nosso programa de conclusões erradas? P. Kíevski não faz nenhuma formulação da lei, não propõe que o nosso programa seja completado porque sente vagamente que então se tornaria ridículo. Todos desatariam a rir deste engraçado “economismo imperialista” se este ponto de vista viesse à superfície, e paralelamente à lei da suplantação da pequena produção pela grande fosse apresentada a “lei” (em consequência dela ou ao lado dela) da suplantação dos pequenos Estados pelos grandes! Para esclarecer isso, nós limitamos a uma só pergunta a P. Kíevski: porque é que os economistas sem aspas não falam da “desintegração” dos modernos trusts ou grandes bancos? da possibilidade dessa desintegração e da sua realizabilidade? por que é que mesmo um “economista imperialista” entre aspas é obrigado a reconhecer a possibilidade e a realizabilidade da desintegração dos grandes Estados, e não só da desintegração em geral mas, por exemplo, da separação das “pequenas nacionalidades” (notem isto!) da Rússia (§ e do capítulo 2 do artigo de P. Kíevski)? Finalmente, para esclarecer ainda mais claramente até onde chega o nosso autor, e para o prevenir, assinalaremos o seguinte: todos nós expomos abertamente a lei da suplantação da pequena produção pela grande e ninguém receia chamar fenómeno reacionário aos “exemplos” isolados de “vitória das pequenas empresas sobre as grandes”. Por enquanto, ainda nenhum dos adversários da autodeterminação se decidiu a chamar reacionária à separação da Noruega da Suécia, embora nós tenhamos levantado esta questão na literatura desde 1914. A grande produção é irrealizável se se conservarem, por exemplo, as máquinas manuais; é perfeitamente absurda a ideia da “desintegração” de uma fábrica mecanizada em oficinas manuais. A tendência imperialista para os grandes impérios é perfeitamente realizável e na prática realiza-se não poucas vezes sob a forma de aliança imperialista de Estados autónomos e independentes, no significado político da palavra. Essa aliança é possível e observa-se não só sob a forma de fusão dos capitais financeiros dos dois países mas também sob a forma de “cooperação” militar na guerra imperialista. A luta nacional, a insurreição nacional, a separação nacional, são plenamente “realizáveis” e observam-se de fato sob o imperialismo, e até se reforçam, pois o imperialismo não detém o desenvolvimento do capitalismo e o crescimento das tendências democráticas na massa da população, antes agudiza o antagonismo entre estas aspirações democráticas e a tendência antidemocrática dos trusts. Só do ponto de vista do “economismo imperialista”, isto é, de um marxismo caricatural, é possível ignorar, por exemplo, o seguinte fenómeno específico da política imperialista: por um lado, a guerra imperialista atual mostra-nos exemplos de como se consegue arrastar um pequeno Estado politicamente independente, pela força dos laços financeiros e dos interesses económicos, para a luta entre grandes potências (Inglaterra e Portugal). Por outro lado, a violação da democracia em relação às pequenas nações, muito mais fracas (tanto econômica como politicamente) do que os seus “protetores” imperialistas, provoca ou a insurreição (Irlanda) ou a passagem de regimentos inteiros para o lado do inimigo (os checos). Nesta situação, é não só “realizável” do ponto de vista do capital financeiro como por vezes diretamente vantajoso para os trusts, para a política imperialista deles, para a guerra imperialista deles, dar a maior liberdade democrática possível, incluindo a independência estatal, a algumas pequenas nações, para não se arriscarem a causar estragos às “suas” operações militares. Esquecer a especificidade das relações políticas e estratégicas e repetir, a propósito e a despropósito, apenas a palavrinha “imperialismo” aprendida de cor — não é marxismo de modo nenhum. Sobre a Noruega P. Kíevski informa-nos, em primeiro lugar, que ela “sempre foi um Estado independente”. Isto é falso, e não se pode explicar esta falsidade senão como uma negligência burschikose do autor e uma falta de atenção às questões políticas. Até 1905 a Noruega não era um Estado independente, apenas gozava de uma autonomia extraordinariamente ampla. A Suécia só recebeu a independência estatal da Noruega depois de a Noruega se separar dela. Se a Noruega “sempre foi um Estado independente”, então o governo sueco não poderia comunicar às potências estrangeiras em 26 de Outubro de 1905 que agora reconhecia a Noruega como país independente. Em segundo lugar, P. Kíevski apresenta uma série de citações para demonstrar que a Noruega olhava para o Ocidente e a Suécia para o Leste, que numa “trabalhava” predominantemente o capital financeiro inglês e na outra o alemão, etc. Tira-se daqui a triunfal conclusão: “este exemplo” (da Noruega) “insere-se inteiramente nos nossos esquemas”. Aqui têm um exemplo da lógica do “economismo imperialista”! Nas nossas teses aponta-se que o capital financeiro pode dominar em “qualquer” país, “ainda que seja um país independente”, e que por isso todas as considerações sobre a “irrealizabilidade” da autodeterminação do ponto de vista do capital financeiro são uma completa embrulhada. Citam-nos dados que confirmam o nosso postulado sobre o papel do capital financeiro estrangeiro na Noruega tanto antes da separação como depois da separação — e fazem-no como se eles nos refutassem! Falar do capital financeiro e nesta base esquecer as questões políticas — significará isto raciocinar sobre política? Não. As questões políticas não desapareceram devido aos erros lógicos do “economismo”. Na Noruega “trabalhava” o capital financeiro inglês tanto antes como depois da separação. Na Polónia “trabalhava” o capital financeiro alemão antes da sua separação da Rússia e “trabalhará” em qualquer situação política da Polónia. Isto é tão elementar que é embaraçoso repeti-lo, mas que fazer quando esquecem o A-B-C? Desaparece por isso a questão política desta ou daquela situação da Noruega? Da sua pertença à Suécia? Do comportamento dos operários quando se colocou a questão da separação? P. Kíevski evitou estas questões porque elas atingem duramente os “economistas”. Mas na vida estas questões colocaram-se — e colocam-se. Colocou-se na vida a questão: pode ser social-democrata o operário sueco que não reconhece o direito da Noruega à separação? Não pode. Os aristocratas suecos eram por uma guerra contra a Noruega, os padres também. Este fato não desapareceu por P. Kíevski “se ter esquecido” de ler sobre ele nas histórias do povo norueguês. Um operário sueco podia, continuando a ser social-democrata, aconselhar os noruegueses a votar contra a separação (a votação popular na Noruega sobre a questão da separação teve lugar em 13 de Agosto de 1905 e deu 368 200 votos pela separação e 184 contra, tendo participado na votação cerca de 80% das pessoas que tinham direito de voto). Mas o operário sueco que, tal como a aristocracia e a burguesia suecas, negasse o direito dos noruegueses a decidirem eles próprios esta questão, sem os suecos, independentemente da sua vontade, seria um social-chauvinista e um miserável inadmissível no partido social-democrata. Eis em que consiste a aplicação do § 9 do nosso programa do partido, por cima do qual o nosso “economista imperialista” tentou saltar. Não saltareis, senhores, sem cair nos braços do chauvinismo! E o operário norueguês? Era obrigado, do ponto de vista do internacionalismo, a votar pela separação? De modo nenhum. Ele podia, continuando a ser social-democrata, votar contra. Ele só violaria o seu dever de membro do partido social-democrata no caso de estender a sua mão de camarada ao operário sueco ultra-reacionário que se pronunciasse contra a liberdade de separação da Noruega. Algumas pessoas não querem ver esta diferença elementar na situação do operário norueguês e sueco. Mas elas denunciam-se a si próprias quando eludem esta questão, concretíssima entre as questões políticas concretíssimas, que lhes colocamos à queima-roupa. Calam-se, esquivam-se, e deste modo cedem a posição. Para demonstrar que a questão “norueguesa” se pode colocar na Rússia, apresentámos propositadamente a tese: em condições de caráter puramente militar e estratégico, é perfeitamente realizável mesmo agora um Estado polaco separado. P. Kíevski quer “discutir” — e cala-se! Acrescentemos: também a Finlândia, por considerações puramente militares e estratégicas, e dada uma certa saída desta guerra imperialista (por exemplo, a adesão da Suécia aos alemães e uma semi vitória destes), pode perfeitamente tornar-se um Estado separado sem minar a “realizabilidade” de nenhuma operação do capital financeiro, sem tornar “irrealizável” o açambarcamento das ações dos caminhos-de-ferro e das outras empresas finlandesas. P. Kíevski procura salvação das questões da política, que lhe são desagradáveis, numa frase magnífica notavelmente característica de todo o seu “raciocínio”: ”A cada momento”(é literalmente assim que está no fim do § c do capítulo I) “a espada de Dâmocles pode cair e interromper a existência de uma oficina “independente” (“alusão” à pequena Suécia e Noruega). Aqui temos, presume-se, o marxismo autêntico: há apenas uns 10 anos que existe um Estado norueguês separado, a cuja separação da Suécia o governo sueco chamou “medida revolucionária”. Mas valerá a pena examinar as questões políticas que daqui decorrem se lemos O Capital Financeiro de Hilferding e o compreendemos no sentido de que “a cada momento” — já que exageramos, vamos até ao fim! — um pequeno Estado pode desaparecer? valerá a pena dar atenção ao fato de termos deturpado o marxismo, convertendo-o em “economismo”, e termos transformado a nossa política em repetições dos discursos dos chauvinistas verdadeiramente-russos? Como se enganaram, pelos vistos, os operários russos em 1905 ao procurar alcançar a república: porque o capital financeiro já se mobilizava tanto em França como na Inglaterra, etc., e “a cada momento” a “espada de Dâmocles” poderia tê-la cortado se ela tivesse surgido! “A reivindicação da autodeterminação nacional não é utópica no programa mínimo: ela não está em contradição com o desenvolvimento social, na medida em que a sua realização não deteria este desenvolvimento.” P. Kíevski contesta esta passagem de Mártov no mesmo parágrafo do seu artigo em que ele apresentou “citações” sobre a Noruega que provam uma e outra vez o fato de todos conhecido de que nem o desenvolvimento em geral, nem o crescimento das operações do capital financeiro em particular, nem a compra da Noruega pelos ingleses foram detidos pela “autodeterminação” e pela separação da Noruega! Entre nós houve mais de uma vez bolcheviques, por exemplo Aléxinski em 1908-1910, que contestaram Mártov exatamente quando Mártov tinha razão! Deus nos livre de tais “aliados”! Sobre “O Monismo e o Dualismo” Censurando-nos pela nossa “interpretação dualista da reivindicação”, P. Kíevski escreve: “A ação monista da Internacional é substituída pela propaganda dualista.” Isto soa de modo perfeitamente marxista, materialista: a ação, que é única, é oposta à propaganda, que é “dualista”. Infelizmente, examinando mais de perto, devemos dizer que é o mesmo “monismo” verbal que o “monismo” de Dühring. “Não é pelo fato de incluirmos uma escova de sapatos numa categoria única com os mamíferos”, escreveu Engels contra o “monismo” de Dühring, “que lhe crescerão glândulas mamárias.” Isto significa que só se pode declarar “unas” as coisas, propriedades, fenómenos, ações, que são unas na realidade objetiva. Foi precisamente esta “ninharia” que o nosso autor esqueceu! Ele vê o nosso “dualismo”, em primeiro lugar, no fato de que exigimos dos operários das nações oprimidas antes de mais algo de diferente — trata-se apenas da questão nacional — daquilo que exigimos dos operários das nações opressoras. Para comprovar se o “monismo” de P. Kíevski não é aqui o “monismo” de Dühring, é preciso ver como é que as coisas se apresentam na realidade objetiva. Será idêntica a situação real dos operários nas nações opressoras e oprimidas do ponto de vista da questão nacional? Não, não é idêntica. (1) Economicamente a diferença é que há partes da classe operária dos países opressores que recebem migalhas dos superlucros que os burgueses das nações opressoras obtêm explorando duplamente os operários das nações oprimidas. Os dados económicos dizem, além disso, que entre os operários das nações opressoras é maior a percentagem dos que chegam a “mestres” do que entre os operários das nações oprimidas, maior a percentagem dos que ascendem à aristocracia da classe operária. Isto é um fato. Os operários da nação opressora são até certo ponto parceiros da sua burguesia na pilhagem por ela dos operários (e da massa da população) da nação oprimida. (2) Politicamente a diferença é que os operários das nações opressoras ocupam uma situação privilegiada em toda uma série de domínios da vida política em comparação com os operários da nação oprimida. (3) Ideologicamente ou espiritualmente a diferença é que os operários das nações opressoras são sempre educados, tanto pela escola como pela vida, no espírito do desprezo ou do desdém em relação aos operários das nações oprimidas. Por exemplo, todo o grão-russo que tenha sido educado ou tenha vivido entre grão-russos experimentou isto. Assim, na realidade objetiva existe uma diferença em toda a linha, isto é, “dualismo” no mundo objetivo que é independente da vontade e da consciência dos indivíduos. Depois disto, como considerar as palavras de P. Kíevski sobre a “ação monista da Internacional”? É uma frase sonora e oca, nada mais. Para que a ação da Internacional, composta na vida por operários divididos em pertencentes a nações opressoras e a nações oprimidas, seja una, para isso é necessário realizar a propaganda de modo não idêntico num e noutro caso: eis como é preciso raciocinar do ponto de vista do “monismo” real (e não do de Dühring), do ponto de vista do materialismo de Marx! Um exemplo? Já apresentámos um exemplo (na imprensa legal há mais de dois anos) relativamente à Noruega, e ninguém tentou refutar-nos. A ação dos operários noruegueses e suecos foi, neste caso concreto e tomado da vida, “monista”, una, internacionalista, apenas porque, e na medida em que, os operários suecos defenderam incondicionalmente a liberdade de separação da Noruega e os noruegueses colocaram condicionalmente a questão desta separação. Se os operários suecos não fossem incondicionalmente pela liberdade de separação dos noruegueses, seriam chauvinistas, cúmplices do chauvinismo dos latifundiários suecos, que queriam “guardar” a Noruega pela força e pela guerra. Se os operários noruegueses não colocassem a questão da separação condicionalmente, isto é, de modo a que também membros do partido social-democrata pudessem votar e fazer propaganda contra a separação, os operários noruegueses violariam o dever de internacionalistas e cairiam num estreito e burguês nacionalismo norueguês. Porquê? porque a separação era realizada pela burguesia e não pelo proletariado! Porque a burguesia norueguesa (como qualquer outra) procura sempre cindir os operários do seu próprio país e de um país “alheio”! Porque qualquer reivindicação democrática (incluindo a autodeterminação) está subordinada, para os operários conscientes, aos interesses superiores do socialismo. Se, por exemplo, a separação da Noruega da Suécia significasse de certeza ou provavelmente a guerra da Inglaterra com a Alemanha, os operários noruegueses deveriam ser, por este motivo, contra a separação. E os operários suecos apenas teriam o direito e a possibilidade, sem deixarem de ser socialistas, de fazer agitação em semelhante caso contra a separação se lutassem sistemática, consequente e constantemente contra o governo sueco pela liberdade de separação da Noruega. Caso contrário, os operários noruegueses e o povo norueguês não acreditariam e não poderiam acreditar na sinceridade do conselho dos operários suecos. Toda a desgraça dos adversários da autodeterminação decorre do fato de eles escaparem com abstrações mortas, temendo examinar até o fim, nem que seja só um exemplo concreto da vida viva. A nossa indicação concreta nas teses de que o novo Estado polaco é plenamente realizável agora, existindo determinada combinação de condições exclusivamente militares, estratégicas, não encontrou objeção nem da parte dos polacos nem da parte de P. Kíevski. Mas ninguém quis pensar no que é que decorre deste reconhecimento tácito da nossa razão. E daqui decorre claramente que a propaganda dos internacionalistas não pode ser idêntica entre os russos e entre os polacos se ela quiser educar tanto uns como outros para uma “ação una”. O operário grão-russo (e alemão) tem a obrigação de ser incondicionalmente pela liberdade de separação da Polônia, pois de outro modo ele é de fato, agora, um lacaio de Nicolau II ou de Hindenburg. O operário polaco poderia ser pela separação apenas condicionalmente, porque especular (como a fracy) com a vitória de uma ou de outra burguesia imperialista significa tornar-se lacaio dela. Não compreender esta diferença, que é uma condição da “ação monista” da Internacional, é o mesmo que não compreender por que é que para uma “ação monista” contra o exército tsarista, suponhamos, junto a Moscou, as tropas revolucionárias teriam de ir de Níjni-Nóvgorod para Oeste e de Smolensk para Leste. Em segundo lugar, o nosso novo partidário do monismo de Dühring censura-nos por não nos preocuparmos com “a mais estreita coesão organizativa das diferentes seções nacionais da Internacional” numa revolução social. No socialismo a autodeterminação desaparece — escreve P. Kíevski — porque então desaparece o Estado. Isto é escrito pretensamente para nos refutar! Mas nós dizemos em três linhas — as três últimas linhas do primeiro parágrafo das nossas teses — precisa e claramente que “a democracia é também uma forma de Estado, que deve desaparecer quando desaparecer o Estado”. É precisamente esta verdade que P. Kíevski repete — para nos “refutar”, é claro! — em algumas páginas do seu parágrafo r (capítulo I), e além disso repete deturpando. “Nós concebemos”, escreve ele, “e sempre concebemos o regime socialista como um sistema de economia centralizado de modo rigorosamente democrático, no qual o Estado, como aparelho de dominação de uma parte da população sobre outra, desaparece.” Isto é uma embrulhada, porque a democracia é também dominação “de uma parte da população sobre outra”, é também Estado. Em que consiste a extinção do Estado depois da vitória do socialismo e quais são as condições deste processo, isso o autor evidentemente não compreendeu. Mas o principal são as suas “objeções” relativas à época da revolução social. Depois de nos insultar com a expressão terrivelmente medonha “talmudistas da autodeterminação”, o autor diz: “Nós concebemos este processo (a revolução social) como uma ação unida dos proletários de todos os países, que destroem as fronteiras do Estado burguês, arrancam os postos fronteiriços” (independentemente da “destruição das fronteiras”?), “fazem ir pelos ares a comunidade nacional e estabelecem a comunidade de classe.” Apesar da ira deste severo juiz dos “talmudistas”, diga-se que há aqui muitas frases e não se divisa absolutamente nenhum “pensamento”. A revolução social não pode ser uma ação unida dos proletários de todos os países pela simples razão de que a maioria dos países e a maioria da população da terra ainda hoje nem sequer estão no grau capitalista de desenvolvimento ou estão apenas no seu início. Falámos disto no § 6 das nossas teses e P. Kíevski, simplesmente por falta de atenção ou por incapacidade de pensar, “não notou” que não foi gratuitamente que apresentámos este §, mas precisamente para refutar as deturpações caricaturais do marxismo. Apenas os países avançados do Ocidente e da América do Norte estão maduros para o socialismo, e na carta de Engels a Kautsky (Sbórnik Sotsial-Demokrata) P. Kíevski pode ler uma ilustração concreta do “pensamento” — real, e não apenas prometido — de que sonhar com a “ação unida dos proletários de todos os países” significa adiar o socialismo para as calendas gregas, isto é, para “nunca”. O socialismo será realizado pelas ações unidas dos proletários não de todos os países mas de uma minoria de países que chegaram ao grau de desenvolvimento do capitalismo avançado. Foi precisamente não ter compreendido isto que provocou o erro de P. Kíevski. Nestes países avançados (Inglaterra, França, Alemanha, etc.) a questão nacional foi resolvida há muito tempo, a comunidade nacional tornou-se obsoleta há muito tempo, objetivamente não há “tarefas nacionais gerais”. Por isso só nestes países é possível agora mesmo “fazer ir pelos ares” a comunidade nacional, estabelecer a comunidade de classe. As coisas são diferentes nos países não desenvolvidos, que repartimos (no § 6 das nossas teses) na 2ª e 3ª rubrica, isto é, em todo o Leste da Europa e em todas as colônias e semi-colônias. Aqui ainda existem, regra geral, nações oprimidas e não desenvolvidas do ponto de vista do capitalismo. Nessas nações existem ainda objetivamente tarefas nacionais gerais, a saber, as tarefas democráticas, as tarefas do derrubamento do jugo estrangeiro. Engels cita a Índia precisamente como exemplo dessas nações, dizendo que ela pode fazer uma revolução contra o socialismo vitorioso — porque Engels estava longe do ridículo “economismo imperialista” que imagina que o proletariado vitorioso nos países avançados eliminará “automaticamente”, sem determinadas medidas democráticas, a opressão nacional em toda a parte. O proletariado vitorioso reorganizará os países em que venceu. Isto não se pode fazer de golpe, do mesmo modo que não se pode “vencer” a burguesia de golpe. Sublinhamos isto propositadamente nas nossas teses, e P. Kíevski mais uma vez não pensou em por que é que nós sublinhamos isto a propósito da questão nacional. Enquanto o proletariado dos países avançados derruba a burguesia e rechaça as suas tentativas contra-revolucionárias, as nações não desenvolvidas e oprimidas não ficam à espera, não deixam de viver, não desaparecem. Se elas aproveitam mesmo uma crise da burguesia imperialista — muito pequena em comparação com a revolução social — como a guerra de 1915-1916 para levar a cabo insurreições (as colónias, a Irlanda), não há dúvida de que tanto mais aproveitarão a grande crise da guerra civil nos países avançados para insurreições. A revolução social não pode produzir-se senão na forma de uma época que combine a guerra civil do proletariado contra a burguesia nos países avançados com toda uma série de movimentos democráticos e revolucionários, incluindo nacional-libertadores, nas nações não desenvolvidas, atrasadas e oprimidas. Porquê? Porque o capitalismo se desenvolve de maneira desigual, e a realidade objetiva mostra-nos, ao lado de nações capitalistas altamente desenvolvidas, toda uma série de nações muito fracamente desenvolvidas ou completamente não desenvolvidas no plano económico. P. Kíevski não pensou de todo em todo nas condições objetivas da revolução social do ponto de vista da maturidade económica dos diferentes países, e por isso a sua censura de que nós “inventamos” onde aplicar a autodeterminação significa atirar a sua própria culpa para cima dos outros. Com um zelo digno de melhor sorte, P. Kíevski repete muitas vezes citações de Marx e de Engels sobre o tema de que nós devemos “não inventar da nossa cabeça, mas descobrir por meio da cabeça nas condições materiais existentes” os meios de libertar a humanidade de tais ou tais males sociais. Ao ler estas repetidas citações, não posso deixar de recordar os “economistas” de triste memória, que de modo igualmente aborrecido ruminavam a sua “nova descoberta” de que o capitalismo triunfara na Rússia. P. Kíevski quer “fulminar-nos”’ com estas citações, porque nós inventaríamos da nossa cabeça as condições da aplicação da autodeterminação das nações na época imperialista! Mas lemos no artigo do próprio P. Kíevski a seguinte “confissão imprudente”: “O próprio fato de sermos contra [sublinhado do autor] a defesa da pátria diz com a maior clareza que resistiremos ativamente a qualquer repressão de uma insurreição nacional, porque desse modo estaremos a lutar contra o nosso inimigo mortal — o imperialismo” (cap. II, § r do artigo de P. Kíevski). Não se pode criticar um determinado autor, não se pode responder-lhe se não se citar na íntegra pelo menos as teses principais do seu artigo. Mas se se cita na íntegra ainda que só uma tese de P. Kíevski, acontece sempre que em qualquer frase se encontram sempre dois ou três erros ou irreflexões que deturpam o marxismo! 1) P. Kíevski não notou que a insurreição nacional também é “defesa da pátria”! E, entretanto, um bocadinho de reflexão convencerá qualquer um de que é precisamente assim, pois toda a “nação insurrecta” se “defende” da nação opressora, defende a sua língua, o seu território, a sua pátria. Toda a opressão nacional provoca a resistência das amplas massas do povo, e a tendência de toda a resistência da população nacionalmente oprimida é a insurreição nacional. Se não é raro observarmos (particularmente na Áustria e na Rússia) que a burguesia das nações oprimidas apenas fala da insurreição nacional mas de fato entra em acordos reacionários com a burguesia da nação opressora nas costas e contra o seu próprio povo, nesses casos a crítica dos marxistas revolucionários não se deve dirigir contra o movimento nacional mas contra o seu abastardamento, o seu aviltamento, a sua deturpação, que o transforma numa disputa mesquinha. Diga-se de passagem que muitíssimos sociais-democratas austríacos e russos esquecem isto e transformam o seu ódio legítimo à querela nacional pequena, vulgar, miserável, como as discussões e disputas para saber em que língua deve o nome da rua estar na parte de cima da placa e em que língua na parte de baixo, transformam o seu ódio legítimo a isto em negação do apoio à luta nacional. Não “apoiaremos” o cómico jogo à república num qualquer principado de Mónaco ou as aventuras “republicanas” dos “generais” nos pequenos Estados da América do Sul ou de qualquer ilha do oceano Pacífico, mas não se segue daqui que seja permissível esquecer a palavra de ordem de república para os movimentos democráticos e socialistas sérios. Nós ridicularizamos e devemos ridicularizar a querela nacional miserável e o regateio nacional das nações na Rússia e na Áustria, mas não se segue daqui que seja permissível renunciar ao apoio à insurreição nacional ou a qualquer luta séria, de todo o povo, contra a opressão nacional. 2) Se as insurreições nacionais são impossíveis na “época imperialista”, P. Kíevski não tem o direito de falar nelas. Se elas são possíveis, todas as suas intermináveis frases acerca do “monismo”, acerca de que nós “inventamos” exemplos da autodeterminação sob o imperialismo, etc., etc. — tudo isso desmorona. P. Kíevski ataca-se a si próprio. Se “nós” “nos opomos ativamente à repressão” de uma “insurreição nacional” — caso que o “próprio” P. Kíevski considera possível — que significa isto? Significa que a ação é dupla, “dualista” se utilizarmos o termo filosófico tão a despropósito como a despropósito o emprega o nosso autor: Em primeiro lugar, a “ação” do proletariado e do campesinato nacionalmente oprimidos juntamente com a burguesia nacionalmente oprimida contra a nação opressora; em segundo lugar, a “ação” do proletariado ou da sua parte consciente na nação opressora contra a burguesia e todos os elementos que a seguem da nação opressora. A infindável quantidade de frases contra o “bloco nacional”, as “ilusões” nacionais, contra o “veneno” do nacionalismo, contra o “atiçamento do ódio nacional”, etc. — frases ditas por P. Kíevski —, revelaram-se tolices, pois, ao aconselhar o proletariado dos países opressores (não esqueçamos que o autor considera este proletariado como uma força séria) a “resistir ativamente à repressão de uma insurreição nacional”, o autor atiça desse modo o ódio nacional, o autor apoia desse modo o “bloco com a burguesia” dos operários dos países oprimidos. 3) Se são possíveis as insurreições nacionais sob o imperialismo, também são possíveis as guerras nacionais. No aspecto político não há nenhuma diferença séria entre uma e outra. Os historiadores militares das guerras têm plena razão quando também classificam as insurreições entre as guerras. P. Kíevski, ao não pensar, atacou-se não só a si próprio, mas também Junius e o grupo A Internacional, que negam a possibilidade das guerras nacionais sob o imperialismo. E esta negação é o único fundamento teórico imaginável da concepção que nega a autodeterminação das nações sob o imperialismo. 4) Por que - que é uma insurreição “nacional”? Uma insurreição que visa criar a independência política da nação oprimida, isto é, um Estado nacional separado. Se o proletariado da nação opressora for uma força séria (como o autor pressupõe e deve pressupor para a época do imperialismo), a decisão deste proletariado de “resistir ativamente à repressão de uma insurreição nacional” não será contribuir para a criação de um Estado nacional separado? Claro que é! O nosso intrépido negador da “realizabilidade” da autodeterminação chegou ao ponto de dizer que o proletariado consciente dos países avançados deve contribuir para a realização desta medida “irrealizável”! 5) Por que é que “nós” devemos “resistir ativamente” à repressão de uma insurreição nacional? P. Kíevski apresenta apenas um argumento: “porque desse modo estaremos a lutar contra o nosso inimigo mortal — o imperialismo”. Toda a força deste argumento se reduz à forte palavrinha “mortal”, tal como em geral este autor substitui a força dos argumentos por frases enérgicas e altissonantes, como “cravar uma estaca no corpo tremente da burguesia” e frases com semelhantes adornos de estilo no espírito de Aléxinski. Mas este argumento de P. Kíevski é falso. O imperialismo é tão nosso inimigo “mortal” como o capitalismo. É assim. Nenhum marxista esquecerá que o capitalismo é progressivo em relação ao feudalismo, e o imperialismo em relação ao capitalismo pré-monopolista. Quer dizer que não temos o direito de apoiar qualquer luta contra o imperialismo. Nós não apoiaremos uma das classes reacionárias contra o imperialismo, nós não apoiamos uma insurreição das classes reacionárias contra o imperialismo e o capitalismo. Quer dizer que, se o autor reconhece a necessidade de ajudar a insurreição das nações oprimidas (“resistir ativamente” à repressão quer dizer ajudar a insurreição), o autor reconhece desse modo o caráter progressista da insurreição nacional, o caráter progressista da formação em caso de êxito desta insurreição de um Estado separado e novo, do estabelecimento de novas fronteiras, etc. O autor literalmente não acerta coisa com coisa em nenhum dos seus raciocínios políticos! A insurreição irlandesa de 1916, ocorrida depois da publicação no Vorbote n° 2 das nossas teses, demonstrou, diga-se a propósito, que não era gratuitamente que se falava da possibilidade de insurreições nacionais mesmo na Europa! As Restantes Questões Políticas Abordadas e Deturpadas por P. Kíevski Declaramos nas nossas teses que a libertação das colônias não é senão a autodeterminação das nações. Os europeus esquecem frequentemente que os povos coloniais também são nações, mas tolerar esse “esquecimento” significa tolerar o chauvinismo. P. Kíevski “objecta”: “Não existe proletariado no sentido próprio desta palavra” no tipo puro de colónias (fim do § r do cap. II). “Então para quem avançar a "autodeterminação"? Para a burguesia colonial? Para os fellahs! Para os camponeses? Naturalmente que não. É absurdo os socialistas [sublinhado de P. Kíevski] avançarem em relação às colónias a palavra de ordem de autodeterminação, porque é absurdo em geral avançar palavras de ordem de um partido operário para países onde não há operários.” Por mais terrível que seja a ira de P. Kíevski, que declarou “absurdo” o nosso ponto de vista, ousaremos apesar de tudo fazer-lhe notar respeitosamente que os seus argumentos são errados. Só os “economistas” de triste memória é que pensavam que as “palavras de ordem do partido operário” são avançadas só para os operários. Não, estas palavras de ordem são avançadas para toda a população trabalhadora, para todo o povo. Com a parte democrática do nosso programa — sobre cuja importância P. Kíevski não pensou “em geral” — nós dirigimo-nos especialmente a todo o povo e é por isso que falamos do “povo” nesta parte do programa. Atribuímos aos povos coloniais e semicoloniais uma população de 1000 milhões de pessoas, e P. Kíevski não se deu ao trabalho de refutar esta concretíssima afirmação. Da população de 1000 milhões de pessoas, mais de 700 milhões (China, Índia, Pérsia, Egito) pertencem a países onde existem operários. Mas mesmo para os países coloniais onde não existem operários, onde só existem escravistas e escravos, etc., não só não é absurdo como é obrigatório para todo o marxista avançar a “autodeterminação”. Se pensar um bocadinho, P. Kíevski provavelmente compreenderá isto, como compreenderá também que a “autodeterminação” é avançada sempre “para” duas nações: a oprimida e a opressora. Outra “objeção” de P. Kíevski: “Por isso nós limitamo-nos em relação às colónias a uma palavra de ordem negativa, isto é, à reivindicação, apresentada pelos socialistas aos seus governos, de "fora das colónias!". Esta reivindicação, que não é realizável dentro dos limites do capitalismo, agudiza a luta contra o imperialismo mas não está em contradição com o desenvolvimento, porque a sociedade socialista não possuirá colônias.” A incapacidade ou falta de desejo do autor de pensar minimamente que seja no conteúdo teórico das palavras de ordem políticas são francamente assombrosas! Mudarão as coisas pelo fato de em vez de um termo político teoricamente preciso empregarmos uma frase de agitação! Dizer “fora das colónias” significa precisamente eludir a análise teórica com uma frase de agitação! Qualquer agitador do nosso partido tem o direito, ao falar da Ucrânia, da Polónia, da Finlândia, etc., de dizer ao tsarismo (“ao seu governo”) “fora da Finlândia, etc.”, mas um agitador inteligente compreenderá que não se pode avançar palavras de ordem nem positivas nem negativas apenas para “agudizar”. Só pessoas do tipo de Aléxinski podiam insistir em que se pode justificar a palavra de ordem “negativa” de “fora da Duma negra” pela aspiração de “agudizar” a luta contra determinado mal. A agudização da luta é uma frase oca dos subjetivistas, que esquecem que o marxismo exige para justificar qualquer palavra de ordem uma análise precisa tanto da realidade económica como da situação política e do significado político desta palavra de ordem. É embaraçoso repisar isto, mas o que fazer quando a isso nos obrigam? Interromper uma discussão teórica sobre uma questão teórica com exclamações de agitação — estamos acostumados a esta maneira de proceder de Aléxinski, mas é uma má maneira. O conteúdo político e econômico da palavra de ordem “fora das colônias" é um e só um: a liberdade de separação para as nações coloniais, a liberdade de formação de um Estado separado! Se as leis gerais do imperialismo, como pensa P. Kíevski, impedem a autodeterminação das nações, fazem dela uma utopia, uma ilusão, etc., etc., como é que se pode, sem pensar, abrir uma excepção a estas leis gerais para a maioria das nações do mundo? É claro que a “teoria” de P. Kíevski é uma caricatura de teoria. A produção mercantil e o capitalismo, os fios das ligações do capital financeiro, existem na imensa maioria dos países coloniais. Como é que se pode exortar os Estados e os governos dos países imperialistas a retirar-se para “fora das colónias” se do ponto de vista da produção mercantil, do capitalismo e do imperialismo isto é uma reivindicação “não científica”, “utópica”, “refutada” pelo próprio Lensch, por Cunow, etc.? Nos raciocínios do autor não há nem sombra de pensamento! O autor não pensou que a libertação das colônias “não é realizável” apenas no sentido de que “não é realizável sem uma série de revoluções”. Não pensou em que ela é realizável em ligação com uma revolução socialista na Europa. Não pensou que “a sociedade socialista não possuirá” não só colónias mas também nações oprimidas em geral. Não pensou em que, quanto à questão por nós examinada, não existe diferença nem econômica nem política entre a “posse” pela Rússia da Polônia ou do Turquestão. Não pensou que a “sociedade socialista” quer retirar-se para “fora das colónias” apenas no sentido de lhes conceder o direito a separarem-se livremente, e de modo nenhum no sentido de lhes recomendar que se separem. Por causa dessa diferenciação entre a questão do direito à separação e a questão de saber se nós recomendamos esta separação, P. Kíevski insultou-nos chamando-nos “prestidigitadores” – e, para “fundamentar cientificamente” perante os operários este juízo, escreve: “Que pensará um operário que pergunta a um propagandista qual a atitude que deve ter um proletário em relação à questão da samostíinost” (isto é, da independência política da Ucrânia), “quando lhe responderem: os socialistas esforçam-se por obter o direito à separação e fazem propaganda contra a separação?” Penso que posso dar uma resposta bastante precisa a esta pergunta. A saber: suponho que qualquer operário inteligente pensará que P. Kíevski não é capaz de pensar. Qualquer operário inteligente “pensará”: o próprio P. Kíevski nos ensina, aos operários, a gritar: “fora das colônias”. Quer dizer, nós, operários grão-russos, devemos exigir do nosso governo que ele se retire da Mongólia, do Turquestão, da Pérsia, e os operários ingleses devem exigir que o governo inglês se retire do Egito, da Índia, da Pérsia, etc. Mas quer isto dizer que nós, proletários, queremos separar-nos dos operários e fellahs egípcios, dos operários e camponeses mongóis ou turquestaneses ou indianos? Quer isto dizer que nós aconselhamos as massas trabalhadoras das colónias a “separar-se” do proletariado europeu consciente? Nada disso. Nós sempre fomos, somos e seremos pela mais estreita aproximação e fusão dos operários conscientes dos países avançados com os operários, camponeses, escravos, de todos os países oprimidos. Sempre aconselhamos e sempre aconselharemos todas as classes oprimidas de todos os países oprimidos, incluindo as colónias, a não se separarem de nós, mas a aproximarem-se e fundirem-se o mais estreitamente possível connosco. Se nós exigimos dos nossos governos que se retirem das colónias — isto é, usando não uma exclamação de agitação mas uma exclamação política precisa —, que eles concedam às colónias a completa liberdade de separação, o real direito à autodeterminação —, se nós próprios realizaremos obrigatoriamente este direito, concederemos esta liberdade, logo que conquistemos o poder, pois o exigimos do governo atual e o faremos quando nós próprios formos governo de modo nenhum para “recomendar” a separação, mas, pelo contrário, para facilitar e apressar a aproximação e fusão democrática das nações. Faremos todos os esforços para nos aproximarmos e fundirmos com os mongóis, persas, indianos e egípcios, consideramos nosso dever e nosso interesse fazê-lo, pois de outro modo o socialismo na Europa não será sólido. Esforçar-nos-emos por prestar a estes povos, mais atrasados e oprimidos do que nós, “uma desinteressada ajuda cultural”, segundo a bela expressão dos sociais-democratas polacos, isto é, por ajudá-los a passar à utilização de máquinas, ao aligeiramento do trabalho, à democracia, ao socialismo. Se exigimos a liberdade de separação para os mongóis, persas, egípcios e todas as nações, sem excepção, oprimidas e sem plenos direitos, não é de modo nenhum porque sejamos pela sua separação mas apenas porque somos pela aproximação e fusão livre e voluntária e não pela aproximação e fusão violenta. Apenas por isso! E neste aspecto a única diferença que vemos entre o camponês e o operário mongol ou egípcio e o polaco ou finlandês é que estes últimos são pessoas muito desenvolvidas, politicamente mais experientes do que os grão-russos, economicamente mais preparados, etc., e por isso provavelmente eles muito em breve convencerão os seus povos, que agora odeiam legitimamente os grão-russos pelo papel de carrasco que eles desempenham, de que não é razoável estender este ódio aos operários socialistas e à Rússia socialista, de que o interesse económico do mesmo modo que o instinto e a consciência do internacionalismo e da democracia, exige a mais rápida aproximação e fusão de todas as nações na sociedade socialista. Como os polacos e finlandeses são pessoas muito cultas, segundo toda a probabilidade eles convencer-se-ão muito em breve da justeza deste raciocínio, e a separação da Polónia e da Finlândia depois da vitória do socialismo pode durar muito pouco tempo. Os fellahs, mongóis e persas, incomparavelmente menos cultos, podem separar-se durante um período de tempo mais longo, mas nos esforçaremos por reduzi-lo, como já foi dito, por meio de uma desinteressada ajuda cultural. Na nossa atitude em relação aos polacos e aos mongóis não há nem pode haver nenhuma outra diferença. Não há nem pode haver nenhuma “contradição” entre a propaganda da liberdade de separação das nações e a firme determinação de realizar esta liberdade quando nós formos governo, por um lado, e a propaganda da aproximação e fusão das nações, por outro lado. — Eis o que “pensará”, estamos convencidos, qualquer operário inteligente, qualquer verdadeiro socialista, qualquer verdadeiro internacionalista, a propósito da nossa discussão com P. Kíevski. Em todo o artigo de P. Kíevski ressalta como fio condutor a seguinte perplexidade fundamental: por que razão havemos nós de advogar e — quando estivermos no poder — realizar a liberdade de separação das nações se todo o desenvolvimento vai no sentido da fusão das nações? Pela mesma razão — respondemos nós — pela qual nós advogamos e, quando estivermos no poder, realizaremos a ditadura do proletariado, apesar de todo o desenvolvimento ir no sentido da supressão da dominação violenta de uma parte da sociedade sobre a outra. A ditadura é a dominação de uma parte da sociedade sobre toda a sociedade, e além disso uma dominação que se apoia diretamente na violência. A ditadura do proletariado, como única classe revolucionária até ao fim, é necessária para derrubar a burguesia e rechaçar as suas tentativas contra-revolucionárias. A questão da ditadura do proletariado tem tal importância que não pode ser membro do partido social-democrata quem a negue ou só a reconheça em palavras. Mas não se pode negar que em certos casos, a título de excepção, por exemplo num pequeno Estado qualquer depois de um Estado vizinho grande já ter realizado a revolução social, seja possível a cedência pacífica do poder pela burguesia, se ela se convencer de que a resistência não tem esperanças e preferir conservar as suas cabeças. É muito mais provável, naturalmente, que também nos pequenos Estados o socialismo não se realize sem guerra civil, e por isso o único programa da social-democracia internacional deve ser o reconhecimento dessa guerra, embora no nosso ideal não haja lugar para a violência sobre as pessoas. O mesmo, mutatis mutandis (com as alterações necessárias), é aplicável às nações. Nós somos pela sua fusão, mas atualmente não é possível passar da fusão violenta, da anexação, à fusão voluntária sem a liberdade de separação. Nós reconhecemos — e muito justamente — o primado do fator económico, mas interpretá-lo à la P. Kíevski significa cair numa caricatura do marxismo. Mesmo os trusts, mesmo os bancos no imperialismo contemporâneo, sendo identicamente necessários no capitalismo desenvolvido, não são idênticos na sua forma concreta nos diferentes países. Por maioria de razão não são idênticas, apesar da sua homogeneidade no fundamental, as formas políticas nos países imperialistas avançados — a América, a Inglaterra, a França e a Alemanha. A mesma diversidade se manifestará na via que a humanidade há-de seguir do imperialismo de hoje à revolução socialista de amanhã. Todas as nações chegarão ao socialismo, isso é inevitável, mas chegarão todas de modo não exatamente idêntico, cada uma trará uma peculiaridade nesta ou naquela forma de democracia, nesta ou naquela variedade da ditadura do proletariado, neste ou naquele ritmo das transformações socialistas dos diferentes aspectos da vida social. Não há nada mais pobre do ponto de vista teórico e mais ridículo do ponto de vista prático do que, “em nome do materialismo histórico”, imaginar o futuro neste aspecto de uma cor acinzentada uniforme: isso não seria mais que uma borrada de Súzdal. E mesmo que a realidade mostrasse que antes da primeira vitória do proletariado socialista se libertarão e separarão apenas 1/500 das nações atualmente oprimidas, que antes da última vitória do proletariado socialista na Terra (isto é, durante as peripécias da revolução socialista já iniciada) se separarão também apenas 1/500 das nações oprimidas e por muito pouco tempo — mesmo nesse caso teríamos razão, do ponto de vista teórico e político-prático, em aconselhar os operários a já hoje não permitir a entrada nos seus partidos sociais-democratas dos socialistas das nações opressoras que não reconheçam e não advoguem a liberdade de separação de todas as nações oprimidas. Porque na realidade não sabemos nem podemos saber qual o número de nações oprimidas que necessitará na prática da separação para dar a sua contribuição para a diversidade das formas da democracia e das formas da passagem para o socialismo. E nós sabemos, vemos e sentimos diariamente que a negação da liberdade de separação é agora uma falsidade teórica infinita e um serviço prático aos chauvinistas das nações opressoras. “Nós sublinhamos”, escreve P. Kíevski numa nota à passagem por nós citada, “que apoiamos plenamente a reivindicação ‘contra as anexações violentas’.” O autor não responde nem uma letra à nossa declaração perfeitamente definida de que essa “reivindicação” equivale ao reconhecimento da autodeterminação, de que não se pode fazer uma definição correta do conceito de “anexação” sem o ligar à autodeterminação! Ele deve pensar que para uma discussão basta apresentar teses e reivindicações e que não é preciso demonstrá-las! “Em geral”, continua ele, “aceitamos plenamente, na sua formulação negativa, uma série de reivindicações que agudizam a consciência do proletariado contra o imperialismo, mas não há nenhuma possibilidade de encontrar as correspondentes formulações positivas permanecendo no terreno do regime existente. Contra a guerra, mas não por uma paz democrática.” É errado, da primeira palavra até a última. O autor leu a nossa resolução O Pacifismo e a Palavra de Ordem de Paz (pp. 44-45 da brochura O Socialismo e a Guerra) e parece que até a aprovou, mas evidentemente não a compreendeu. Nós somos pela paz democrática, apenas advertindo os operários para o logro de que ela é possível existindo os atuais governos burgueses, “sem uma série de revoluções”, como se diz na resolução. Declaramos que a prédica “abstrata” da paz, isto é, sem ter em conta a real natureza de classe — mais particularmente: a natureza imperialista — dos governos atuais dos países beligerantes, significa enganar os operários. Declaramos definidamente nas teses do jornal Sotsial-Demokrat (n.° 47) que o nosso partido, se a revolução o colocasse no poder ainda durante a guerra atual, proporia imediatamente uma paz democrática a todos os países beligerantes. Mas P. Kíevski, tentando convencer-se a si próprio e aos outros de que é “só” contra a autodeterminação e de modo nenhum contra a democracia em geral, foi ao ponto de dizer que nós “não somos por uma paz democrática”. Não é curioso? Não é necessário determo-nos em cada um dos outros exemplos de P. Kíevski, pois não vale a pena gastar espaço para refutar erros lógicos igualmente ingênuos, que provocarão um sorriso em cada leitor. A social-democracia não tem nem pode ter nenhuma palavra de ordem “negativa” que sirva apenas para “agudizar a consciência do proletariado contra o imperialismo” sem dar ao mesmo tempo uma resposta positiva à pergunta de como resolverá a social-democracia a questão correspondente quando ela própria estiver no poder. Uma palavra de ordem “negativa” não ligada a uma solução positiva definida não “agudiza”, antes embota, a consciência, porque tal palavra de ordem é uma frase vazia, um grito oco, uma declamação sem conteúdo. P. Kíevski não compreendeu a diferença entre as palavras de ordem que “negam” ou estigmatizam os males políticos e econômicos. Esta diferença consiste em que certos males económicos são próprios do capitalismo em geral, quaisquer que sejam as suas superestruturas económicas, em que é economicamente impossível suprimir estes males sem suprimir o capitalismo e não se pode citar nem um só exemplo dessa supressão. Pelo contrário, os males políticos consistem em desvios da democracia, que economicamente é plenamente possível “no terreno do regime existente”, isto é, sob o capitalismo, e que, a título de excepção, se realiza nele, uma parte num Estado, outra parte noutro. Mais uma vez o autor não compreendeu precisamente as condições gerais que tornam realizável a democracia em geral! O mesmo acontece na questão do divórcio. Recordaremos ao leitor que foi Rosa Luxemburgo quem primeiro abordou esta questão na discussão a propósito da questão nacional. Ela exprimiu a justa opinião de que, ao defender a autonomia dentro do Estado (da região ou território, etc.), nós devemos, como sociais-democratas centralistas, defender que as questões estatais mais importantes, entre as quais se inclui a legislação sobre o divórcio, sejam resolvidas pelo poder de todo o Estado, pelo parlamento de todo o Estado. O exemplo do divórcio mostra claramente que não se pode ser demo-crata e socialista sem exigir desde já a completa liberdade de divórcio, porque a ausência desta liberdade é a superopressão do sexo oprimido, da mulher, embora não seja difícil de perceber que o reconhecimento da liberdade de deixar o marido não é um convite a todas as mulheres para que o façam! P. Kíevski “objeta”: “Mas como seria este direito” (ao divórcio) “se nestes casos” (em que a mulher quer deixar o marido) “a mulher não pudesse exercê-lo? Ou se este exercício dependesse da vontade de terceiras pessoas, ou, ainda pior, da vontade de pretendentes à "mão" dessa mulher? Procuraríamos nós obter a proclamação desse direito? Evidentemente que não!” Esta objeção mostra a mais completa incompreensão da relação existente entre a democracia em geral e o capitalismo. No capitalismo são habituais, não como casos isolados mas como um fenômeno típico, condições em que é impossível às classes oprimidas “exercerem” os seus direitos democráticos. O direito ao divórcio permanecerá na maioria dos casos irrealizável sob o capitalismo, porque o sexo oprimido é economicamente esmagado, porque sob o capitalismo a mulher, em qualquer espécie de democracia, permanece uma “escrava doméstica”, uma escrava confinada ao quarto de dormir, ao quarto das crianças, à cozinha. O direito de eleger os seus “próprios” juízes populares, funcionários, professores, jurados, etc., é também irrealizável na maioria dos casos sob o capitalismo, precisamente devido ao esmagamento económico dos operários e camponeses. O mesmo se aplica à república democrática: o nosso programa “proclama-a”, como “poder absoluto do povo”, embora todos os sociais-democratas saibam perfeitamente que sob o capitalismo a república mais democrática só conduz ao suborno dos funcionários pela burguesia e à aliança da bolsa com o governo. Só pessoas perfeitamente incapazes de pensar ou perfeitamente desconhecedores do marxismo deduzirão daqui: então a república não serve para nada, a liberdade de divórcio não serve para nada, a democracia não serve para nada, a autodeterminação das nações não serve para nada! Mas os marxistas sabem que a democracia não suprime a opressão de classe, apenas torna a luta de classes mais pura, mais ampla, mais aberta, mais aguda; é disto que nós precisamos. Quanto mais completa for a liberdade de divórcio mais claro será para a mulher que a fonte da sua “escravidão doméstica” é o capitalismo e não a falta de direitos. Quanto mais democrático for o regime estatal, mais claro será para os operários que a raiz do mal é o capitalismo e não a falta de direitos. Quanto mais completa for a igualdade nacional (ela não é completa sem a liberdade de separação) mais claro será para os operários da nação oprimida que a questão reside no capitalismo e não na falta de direitos. E assim por diante. Mais e mais uma vez: é embaraçoso repisar o á-bê-cê do marxismo, mas que fazer quando P. Kíevski não o conhece? P. Kíevski discorre sobre o divórcio como discorria — no Gólos de Paris, se bem me recordo — um dos secretários no estrangeiro do CO, Semkovski. É verdade, discorria ele, que a liberdade de divórcio não é um convite a todas as mulheres para deixarem os maridos, mas se nos pusermos a demonstrar à mulher que todos os maridos são melhores que o seu, minha senhora, então o resultado é o mesmo! Ao discorrer assim Semkovski esqueceu-se de que a excentricidade não é uma violação dos deveres de um socialista e de um democrata. Se Semkovski se pusesse a persuadir qualquer mulher de que todos os maridos eram melhores do que o marido dela, ninguém veria nisso uma violação dos deveres de um democrata; quando muito diriam: num grande partido não pode deixar de haver grandes excêntricos! Mas se passasse pela cabeça de Semkovski defender e chamar democrata a um homem que negasse a liberdade de divórcio, por exemplo recorresse ao tribunal ou à polícia ou à Igreja contra a mulher que o deixasse, estamos convencidos de que mesmo a maioria dos colegas de Semkovski do secretariado no estrangeiro, embora sejam uns socialistas mauzinhos, recusariam a solidariedade a Semkovski! Tanto Semkovski como P. Kíevski “falaram” do divórcio, manifestaram incompreensão da questão e eludiram o fundo da questão: o direito ao divórcio, tal como todos os direitos democráticos sem exceção, sob o capitalismo é dificilmente realizável, condicional, limitado, formal e estreito, mas no entanto nenhum social-democrata honesto considerará os que negam este direito não só como socialistas mas até como democratas. E é nisso que reside a essência. Toda a “democracia” consiste na proclamação e realização de “direitos” muito pouco e muito condicionalmente realizáveis sob o capitalismo, mas sem essa proclamação, sem a luta pelos direitos imediatamente e já, sem a educação das massas no espírito dessa luta, o socialismo é impossível. Não tendo compreendido isto, no seu artigo P. Kíevski eludiu também a questão principal relativa ao seu tema especial, a saber, a questão de como suprimiremos nós, sociais-democratas, a opressão nacional. P. Kíevski escapou-se com frases acerca de como o mundo estará “inundado em sangue”, etc. (o que não tem absolutamente nada a ver com o assunto). No fundo só ficou uma coisa: a revolução socialista tudo resolverá! Ou, como por vezes dizem os partidários das concepções de P. Kíevski: a autodeterminação sob o capitalismo é impossível, sob o socialismo é supérflua. É uma concepção absurda do ponto de vista teórico e chauvinista do ponto de vista político prático. Esta concepção é uma incompreensão do significado da democracia. O socialismo é impossível sem a democracia em dois sentidos: o proletariado não pode realizar a revolução socialista se não se preparar para ela por meio da luta pela democracia; o socialismo vitorioso não pode manter a sua vitória e conduzir a humanidade à extinção do Estado sem realizar completamente a democracia. Por isso, quando se diz que sob o socialismo a autodeterminação é supérflua, isto é um absurdo tão grande, uma confusão tão irremediável como se se dissesse que sob o socialismo a democracia é supérflua. A autodeterminação não é mais impossível sob o capitalismo e é tão supérflua sob o socialismo como a democracia em geral. A revolução económica cria as premissas necessárias para a supressão de todos os tipos de opressão política. Precisamente por isso é ilógico e errado limitar-se a uma referência à revolução económica quando se coloca a pergunta: como suprimir a opressão nacional? Não se pode suprimi-la sem uma revolução económica. É indiscutível. Mas limitar-se a isto significa cair no ridículo e deplorável “economismo imperialista”. É preciso implantar a igualdade nacional; proclamar, formular e realizar “direitos” iguais de todas as nações. Com isto todos estão de acordo, talvez com excepção de P. Kíevski. Mas precisamente aqui surge a questão que é eludida: negar o direito a ter o seu Estado nacional próprio não será negar a igualdade? Claro que é. E a democracia consequente, isto é, socialista, proclama, formula e realiza este direito, sem o qual não existe caminho para a completa e voluntária aproximação e fusão das nações. Conclusão. Os Métodos de Aléxinski Nem de longe examinamos todas as considerações de P. Kíevski. Examinar todas significaria escrever um artigo cinco vezes maior do que o presente, porque ele não tem nem um raciocínio correto. O que ele tem de correto — se não há erros nos números — é apenas uma nota que apresenta números sobre os bancos. Tudo o resto é um impossível novelo de confusão, temperado com frases como “cravar uma estaca no corpo tremente”, “não só julgaremos os heróis vitoriosos como os condenaremos à morte e ao desaparecimento”, “o novo mundo nascerá em convulsões violentíssimas”, “não se tratará de cartas e de direitos nem da proclamação da liberdade dos povos, mas do estabelecimento de relações realmente livres, da destruição da escravidão secular, da supressão da opressão social em geral e da opressão nacional em particular”, etc., etc. Estas frases escondem e exprimem duas “coisas”: em primeiro lugar, na sua base está a “ideia” do “economismo imperialista”, uma caricatura tão monstruosa do marxismo, uma incompreensão da relação do socialismo com a democracia tão completa como foi o “economismo” de triste memória dos anos 1894-1902. Em segundo lugar, nestas frases vemos com os nossos próprios olhos uma repetição dos métodos de Aléxinski, coisa em que é necessário determo-nos especialmente, pois P. Kíevski redigiu todo um parágrafo especial do seu artigo (cap. II, §f: “A situação particular dos judeus”) exclusivamente com estes métodos. Já no congresso de Londres de 1907 os bolcheviques se afastavam de Aléxinski quando este, em resposta a argumentos teóricos, assumia a pose de um agitador e gritava, completamente a despropósito, frases sonoras contra qualquer tipo de exploração e opressão. “Pronto, já começaram os guinchos”, diziam os nossos delegados neste caso. E os “guinchos” não levaram Aléxinski a nada de bom. Vemos exatamente os mesmos “guinchos” em P. Kíevski. Sem saber que responder à série de questões e considerações teóricas apresentada nas teses, ele assume a pose de um agitador e começa a gritar frases a propósito da opressão dos judeus, embora seja claro para qualquer pessoa minimamente capaz de pensar que nem a questão dos judeus em geral nem todos os “gritos” de P. Kíevski têm a menor relação com o tema. Os métodos de Aléxinski não levarão a nada de bom.

  • A “carta” pela Democracia: quem assina não entende!

    por Pedro Badô e Wesley Sousa Na quinta-feira, 11/08, alardeou-se, por todos os meios, a carta em defesa da democracia escrita pelos professores da Faculdade de Direito da USP – à qual foi anexada também um outro documento, mas este escrito pela Federação da pomposa burguesia paulista. As assinaturas da carta uspiana ultrapassaram a marca de um milhão. O documento encabeçado pelos professores se cobre com as vestes da Carta aos brasileiros de 1977, elaborada e lida pelo professor, e integralista, Goffredo Telles, apoiador – arrependido àquela altura – de primeira hora dos generais golpistas de 1964, a quem ofereceu a redação de uma nova Constituição de caráter “corporativista” – um eufemismo comum para referir-se a inspirações fascistas. Mas a atual carta não esconde a que veio. Apoiada por candidatos à presidência, como Lula (PT), Ciro (PDT) e Tebet (MDB), além de outros políticos, empresários, banqueiros, artistas, juristas – e por qualquer outra coisa que possa ser chamada de “integrante da sociedade civil” –, a leitura pública do texto teve clima de festa, mas de festa reservada, pois o acesso ao evento foi limitado a pouco mais de 1.200 pessoas. A carta de alguns parágrafos não diz nada. Seu anunciado e virtuoso objetivo de ser ampla e reunir todos os interesses em defesa da democracia a tornam vazia de conteúdo. Nas últimas pesquisas eleitorais, se vê o parco efeito prático da “defesa da democracia”. Em São Paulo, Bolsonaro, que não para em sua escala retórica de autoritarismo, aumentou a vantagem em sete pontos percentuais entre os evangélicos, cinco pontos entre os homens e doze entre os que recebem o Auxílio Brasil. Essas são algumas das principais explicações para o avanço das intenções de voto no estado mais populoso do país. Claro, números são números e sua interpretação, por assim dizer, é linguística. Mas não se pode negar o que opera de fato dentro da cabeça do povo: a ideologia. Como comentou um amigo nosso, todo santo dia um figurão manda um recado contra o comunismo e a “ideologia de gênero”. Sobre a terra arrasada da miséria material e espiritual, erguem-se palanques nas periferias, seja nas igrejas, seja nas rádios locais. Operam onde há gente pobre, negra e que está fora do acordo “democrático”. Vemos, por outro lado, os senhores guardiões da democracia nos gabinetes... É preciso entender que em um país no qual quase a metade da população passou a viver apenas para buscar comida, onde um terço está desempregada e que a grande maioria do povo tem empregos que são sublocações e “bicos” – os freelas –, refletir o medo imposto pela extrema-direita em uma pauta tão vazia como é a “defesa da democracia” é um tremendo tiro no pé. Antes que o leitor nos acuse se sectários, cabe dizer que o marxismo, frente à ameaça reacionária, sempre esteve pela defesa de garantias democrático-liberais, principalmente no que se refere aos interesses das massas populares. Lênin, por exemplo, não tinha dúvida de que “quanto mais democrático for o regime estatal, mais claro será para os operários que a raiz do mal é o capitalismo, não a falta de direitos”. Em seu embate com os “internacionalistas abstratos” – para os quais os marxistas não deveriam, em nenhuma hipótese, defender a autodeterminação dos povos colonizados –, Lênin condena o crasso erro do economicismo, o qual se baseia na crença de que apenas a luta pelas pautas econômicas e proletárias “puras” poderia levar à revolução socialista. Grosso modo, segundo Lênin – para quem a autodeterminação nacional é mais um entre outros direitos democráticos –, não era possível afirmar como regra geral que as lutas democráticas servem apenas ao campo burguês, sendo necessário analisar em cada caso concreto em que medida haveria contradições a serem exploradas entre os interesses do capital e a vigência da democracia, e até que ponto uma luta democrática pode beneficiar ou não o proletariado. “Em geral, democracia política é apenas uma das formas possíveis de superestrutura sobre [above] o capitalismo (embora seja, em teoria, o normal para o capitalismo ‘puro’)”, pois o capitalismo e o imperialismo “se desenvolvem no contexto de qualquer forma política e subordinam a todas. É, portanto, erro teórico elementar falar das ‘impraticabilidade’ de uma das formas e de uma das exigências da democracia”, dizia o velho bolchevique. A questão da democracia, portanto, não pode ser tomada abstratamente. Quem dirá que a guerra sanguinária impetrada pelo Estado brasileiro contra a população negra não é um problema, em muitos níveis, democrático? Quem dirá que a perseguição, a marginalização e o despreparo no entendimento médico da população trans e travesti não é um problema democrático? Para ficarmos com Lênin, “quanto mais completa for a liberdade de divórcio mais claro será para a mulher que a fonte da sua ‘escravidão doméstica’ é o capitalismo e não a falta de direitos”. E portanto, a nós, marxistas, cabe dar cabo das eventuais lutas democráticas de maneira revolucionária, pois seria uma bobagem voluntarista erguer artificialmente uma muralha da China, parafraseando Lênin, entre as demandas democrático-burguesas e aquelas de caráter proletárias, revolucionárias e emancipatórias. Mas ainda cabe chamar atenção para o fato de que Lênin escrevia em um momento em que grande parte do mundo – nas colônias e até mesmo na Rússia – as relações sociais capitalistas conviviam com antigos modos de produção, com antigas classes sociais – nobreza, um imenso e diverso campesinato e até sistemas de castas. Se em muitos locais do globo a luta por repúblicas democráticas cumpriu papel progressista do ponto de vista do proletariado mundial, Lênin também apontava – principalmente em relação à Europa Ocidental – que a “onipotência da ‘riqueza’ funciona, portanto, melhor em uma república democrática, uma vez que não depende de determinados defeitos do mecanismo político, do mau invólucro político do capitalismo. A república democrática é o melhor invólucro político possível para o capitalismo; por isso, o capital, tendo se apoderado [...] desse melhor invólucro, fundamenta seu poder de modo tão sólido, tão seguro, que nenhuma substituição na república democrática burguesa, nem de pessoas nem de instituições, tampouco de partidos, abala esse poder”. É fundamental notar que Lênin via no parlamentarismo burguês uma das formas políticas mais modernas e bem desenvolvidas do modo de produção capitalista. Para ele, mesmo sem previsão legal, o capital é plenamente capaz de contornar os entraves aos seus interesses através do “suborno” e da “corrupção”. Isso teria sido aperfeiçoado com a paulatina monopolização característica do capitalismo e, em sua fase imperialista, com o poderio desenvolvido pelo capital financeiro. O líder revolucionário observa que “sob o capitalismo, a república mais democrática só conduz ao suborno dos funcionários pela burguesia e à aliança da Bolsa com o governo”. Lênin sabia que a liberdade da democracia burguesa é, acima de tudo, a liberdade de compra, a liberdade do capital, tal como observa em vários momentos sobre o amplo alcance da imprensa burguesa, que circulava muito mais que os jornais socialistas, mesmo entre o operariado revolucionário russo em 1917. Lênin é categórico ao apresentar uma mudança na ação do capital no início do século XX naquilo que poderíamos chamar de “vida democrática” das repúblicas. É um dado quase prosaico de nosso cotidiano a ideia do controle de nossas vidas “pelas corporações”. Mais do que isso, no catálogo de qualquer plataforma de streaming encontramos dezenas de documentários – principalmente norte-americanos, ao estilo Michael Moore –, de tipo progressista, que denunciam a interferência das “corporações financeiras” na democracia. É relativamente simples notar que do fim do século XIX e início do século XX, tivemos mudanças significativas no modo de produção capitalista. Temos elementos como o avanço do imperialismo; a entrada da grande indústria capitalista em diversas áreas da produção – como os assim chamados “bens e serviços” –; a expansão global das relações sociais burguesas no planeta; o surgimento da figura do Estado de Direito – na “medida que o direito foi se tornando um regulador normal e prosaico da vida cotidiana [...] e mais fortes foram se tornando dentro dele os elementos manipuladores do positivismo”. É a natureza do capitalismo pós-guerra – chamado por Mandel de capitalismo tardio –, que tem como um de seus fundamentos a intensificação da extração de mais-valor relativo, que deve ser levada em conta para que se compreenda o que Lukács aponta como “a manipulação hoje predominante”, sendo imprescindível compreender o elemento de “mediação entre a produção em massa dos meios de consumo (e dos serviços) e a massa composta de consumidores singulares”, pois, enquanto “informação necessária sobre a qualidade etc. da mercadoria, tal sistema de mediação é economicamente indispensável nesse estágio da produção. Nas condições do capitalismo atual, tais informações têm de converter-se justamente na manipulação hoje predominante, que gradativamente se estende a todas as esferas da vida, sobretudo à política”. Certamente a questão da democracia no Brasil de hoje deve ser encarada em toda sua complexidade – com tudo aquilo que há de anti-democrático e antipopular remanescente da formação colonial, e que, ao mesmo tempo, apresenta hoje, na economia, um “capitalismo completo” (pois os diferentes ramos do capital encontram-se minimamente desenvolvidos), bem como a tendência geral de desenvolvimento daquilo que Lukács chama de “capitalismo manipulatório”. Para ficarmos apenas no nível superficial da “propaganda”, quem poderá esquecer das batalhas eleitorais entre PT e PSDB e suas imensas e influentes campanhas de marketing paga em dólares (além, é claro, do lado obscuro disso: o Bolsozap de 2018)? Quem assina o manifesto pela democracia não entende do que se trata! Quem, em sã consciência, pode subscrever a afirmação de que “sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática”? Quem, preocupado com a miséria da população, pode achar que a fome e desespero é uma “divergência menor” com os banqueiros e empresários que assinam a carta? Ninguém deveria esquecer que toda essa gente, junto dos jornalões, passaram as últimas décadas instrumentalizando o pânico moral anticorrupção e privatista contra os benefícios sociais, a saúde e a educação públicas e tudo aquilo que mantém as condições para a reprodução da força de trabalho no país. Essa gente se empenhou em uma cruzada contra as cotas raciais, e qualquer coisa que cheirasse à povo, usando sua miríade de cães raivosos – colunistas da estirpe de Mainardi, Constantino, Cantanhêde, etc – e pavimentaram um seguro caminho para a besta bolsonarista. Não à toa, até mesmo um liberal bem-formado – hoje, ao que parece, arrependido de ter composto a matilha de colunistas – como Reinaldo Azevedo, a questão é transformar a democracia política em democracia social, algo que, na avaliação do jornalista, está longe de ser realidade no país. De fato, aqui é o cerne da questão. Mesmo entre aqueles que desejam democratizar a democracia – isto é, “aperfeiçoá-la” dentro dos limites da própria sociedade burguesa –, não podem sonhar em fazê-lo sem tocar, minimamente, no atual estado de coisas da propriedade privada no Brasil – seja com medidas tributárias realmente significativas, estatizações, expansão de gastos públicos, etc. Eles esperam ressuscitar o miserável orçamento participativo da Constituição de 1988. Obviamente, encontrariam relutância entre o grande capital. É nesse sentido que a “opinião popular” – mais ampla que a opinião pública –, percebe um certo cinismo em toda essa articulação de setores médios e intelectuais. Roberto Schwarz, em um conhecido ensaio de 1978, Cultura e política: 1964-1969, analisa a situação nos primeiros anos da ditadura no aspecto cultural e intelectual. Dizia que, apesar de muitos intelectuais brasileiros serem de esquerda – em sentido amplo (social-democratas), as problemáticas que se depararam, tanto para as comissões estatais ou do grande capital, quanto para rádios, televisões e jornais do país, não refletiam suas posições políticas imediatas, sendo somente a matéria cultural que produziam ao consumo próprio realmente com conteúdo de “esquerda”. Essa situação, que vinha desde o governo João Goulart, cristalizou-se em 1964 quando, grosso modo, a intelectualidade socialista, já encaminhada à prisão, ao desemprego e ao exílio, foi ligeiramente poupada (basta ver a criação do CEBRAP). A maioria dos presos, exilados e torturados foram somente aqueles que haviam organizado o contato com operários, camponeses, trabalhadores autônomos e soldados. Isso resultou numa fissura entre o polo formativo – o intelectual – e esses setores da classe trabalhadora. Assim, cortadas naquela ocasião as pontes entre o movimento cultural e os trabalhadores produtivos, o governo militar Castelo Branco não impediu a circulação teórica ou artística do ideário de esquerda (liberal, em certo ponto), que embora em área restrita, floresceu. Esse argumento de Schwarz, malgrado algum problema de diagnóstico, serve aqui para ilustrar o raquitismo que tomou o vocabulário da esquerda. O que também nos faz lembrar György Lukács, quando analisando a situação do pós-guerra, com a derrota militar do fascismo/nazismo, não deixou de ponderar no seu ensaio “As tarefas da filosofia marxista na nova democracia”, que era necessário priorizar a mudança política na educação dos novos sujeitos políticos; pela cultura da formação de novos quadros dos quais sejam imprescindíveis para nossos objetivos; mas, igualmente neste caso, segundo o filósofo, valeria a observação de Hegel, segundo a qual as pessoas devem aprender a nadar atirando-se na água. Somente por meio de todas essas mudanças, bem como através de transformações nas condições de vida da população trabalhadora, política e culturalmente, pode emergir uma nova consciência, tal seria uma nova posição em face da relação, para usar termos hegelianos, entre Estado e sociedade civil. Com isso, esse elemento, tanto no diagnóstico de Schwarz quanto na reflexão de Lukács, se consolida em nossa “cultura política” de gabinete, isto é, a separação entre a práxis e a crítica. No entanto, o atual cenário de “medo do fascismo”, a criação de uma frente “amplíssima” que aglutina a todos e não preenche em nada o conteúdo real dessa democracia, já tem seus resultados milagrosos. Se trata de show business. A produção acadêmica – tentada a ser crítica – é agora um grande adorno para os engajados “republicanos”, os quais se esquecem que mais da metade do Brasil real não tem a menor ideia de seus debates. A métrica de nossos arautos da democracia são as “bolhas” e círculos específicos da população verdadeiramente letrada. Na prática, o Bolsozap é muito mais amplo que qualquer manifesto de carimbo datado. Não nos enganemos, a democracia política que os diversos setores do capital estão defendendo significa, como quase sempre na história brasileira, controle social, pois pretende rebaixar a ação política a meros instrumentos institucionais – pensemos na passagem do Império à Primeira República por meio de um golpe militar que conteve revoltas populares pela reforma agrária e direitos civis. No Brasil hoje, se pode matar milhares e ainda seguir os ritos sagrados dos processos legais como se fosse um passeio no parque. Portanto, é evidente que os revolucionários brasileiros devem responder com dureza às ameaças contra o processo eleitoral, pois isso, claramente, tem um conteúdo reacionário e atende aos interesses de setores do capital e de camadas da burocracia estatal. No entanto, não é nosso dever dourar a pílula da democracia burguesa. A pobreza da esfera política em si não pode ser potência transformadora. Nada disso é fácil de ser encarado de maneira simplificadora, pois, não bastasse estarmos num momento de fraqueza da luta dos trabalhadores, ainda temos que lidar com pobreza política como herança do bonapartismo à brasileira e com o conteúdo cada vez mais manipulatório do capitalismo contemporâneo que penetra nas diversas esferas sociais. É sintomático que, ao final, espremendo todo o suco que esses democratas de gabinete podem dar, aparecerá sempre a mesma ladainha do país que não foi – não do que efetivamente se tornou – nos arranjos funcionais dessa tal democracia. Pois bem, para os marxistas, às vezes, fazer qualquer coisa é pior do que não fazer nada. É preciso meditar e ponderar para que passamos a mensagem certa, para que deixemos claro de que lado estamos. Este lado não é ao lado dos banqueiros esclarecidos – do tipo Setúbal –, ou, ao menos, não deveria ser. Se for para fazer algo, que seja feita a coisa certa.

  • Intelectualidade e luta de classes: uma crítica à postura tuísta

    Vera Cotrim [1] Nota introdutória da Revista Barravento O ensaio que aqui apresentamos ao leitor, escrito por Vera Cotrim, retoma uma questão elementar de nosso tempo: qual o papel do intelectual hoje? Ou, melhor dizendo, é possível dizer que os intelectuais, os “acima” da classe trabalhadora, os “espectadores imparciais” (Adam Smith), são de algum modo ‘isentos’ ou mais “racionais”? Aliás, não é este o problema, senão outro, que cada vez mais se vê os esforços para um tipo de desinteresse de classe, pautado pela pesquisa e pelo louvor de seus pares; ainda mais, não seria um Grande Hotel de luxo na beira do Abismo (capitalismo), nos dizeres de György Lukács? V. Cotrim, cuja escrita sem rodeios e com uma imensa clareza, ao relembrar uma peça do teatrólogo, dramaturgo marxista, Bertold Brecht, reflete de modo satírico, o tema da intelectualidade, elegendo alguns autores para a particularidade de nosso tempo. Antes de passar ao texto, cabe esclarecer ao leitor: o ensaio que se segue abaixo estará dividido em duas partes. Para o texto, uma pequena ressalva: na segunda parte, os autores mencionados entram em cena na análise da autora. No que se refere na primeira parte - logo abaixo -, o capítulo 1, cujo conteúdo é para explanar e explorar o problema dos “diagnósticos” do neoliberalismo, os pressupostos de uma intelectualidade alheia aos sofrimentos do povo, mas que deles se valem para parecerem grandes paladinos da defesa dos interesses do “povo”. De todo modo, convidamos a todos os leitores e as leitoras que desfrutem do ensaio. À autora, nosso agradecimento por ceder com exclusividade tamanho conteúdo! Resumo: Este ensaio busca questionar as críticas ao neoliberalismo que não alcançam a radicalidade do questionamento à forma-capital, mostrando sua impotência. Examinamos as críticas de autores de diferentes escolas filosóficas: o liberal Thomas Piketty, os foucaultianos Pierre Dardot e Cristhian Laval e o marxista David Harvey. Buscamos com isso questionar o papel do intelectual que não se considera pertencente à classe trabalhadora, bem como a ideia de uma “classe intelectual”. Esta exposição lança mão de uma peça do dramaturgo alemão Bertold Brecht, Turandot ou O Congresso das Lavadeiras, que satiriza o intelectual não comprometido com a luta de classes. Palavras-chave: intelectualidade; divisão do trabalho; capital; Bertold Brecht Abstract: This essay seeks to question the criticism of neoliberalism that does not reach the radicality of questioning the capital-form, showing its impotence. We examine the critics of authors from different philosophical schools: the liberal Thomas Piketty, the Foucauldians Pierre Dardot and Cristhian Laval and the Marxist David Harvey. With this, we seek to question the role of the intellectual who does not consider himself to belong to the working class, as well as an idea of ​​an “intellectual class”. This exhibition makes use of a play by the German playwright Bertold Brecht, Turandot or the Whitewasher's Congress, which satirizes the intellectual not committed to the class struggle. Key words: intellectuality; division of labor; capital; Bertold Brecht “(...) os chamados filósofos ou homens de especulação, cujo ofício é nada fazer, mas tudo observar” Adam Smith, A riqueza das nações “Que a Terra seja redonda é uma coisa que pode ter importância algum dia” Mo Si Bertold Brecht, Turandot ou o congresso das lavadeiras O objetivo deste ensaio é mostrar que a crítica ao chamado neoliberalismo que não alcança a radicalidade de crítica do capital, do Estado e do patriarcado a um tempo, acaba por reduzir-se a denúncias e exortações piedosas que, no momento em que os conflitos sociais reais se explicitam, pode mesmo decair em seu contrário, tornando-se uma salvaguarda dos fundamentos deste sistema. O objeto deste texto são algumas críticas do modo de vida atual por pensadores franceses do campo da esquerda, nomeadamente a dupla Pierre Dardot e Christian Laval e Thomas Piketty. Mas extrapola os pensamentos singulares desses autores para buscar ser uma crítica à postura do intelectual crítico hoje, satisfeito do lugar que ocupa na divisão social do trabalho: um membro da classe intelectual. Essa postura, como defendemos, está na base dos constructos teóricos desses autores, cuja recusa declarada ao modo de vida capitalista resguarda o apego à necessidade da divisão social do trabalho e, com ela, à noção de liberdade como autonomia individual (às vezes, restrita mesmo ao mercado). Busco também refutar o argumento que embasa a recente e triste capitulação de David Harvey ao reformismo capitalista, com a finalidade mais ampla de comentar a naturalização da divisão social do trabalho que perpassa o pensamento desses intelectuais. Bertolt Brecht criou uma figuração satírica da classe intelectual, presente em diferentes trabalhos do autor e abrangendo múltiplos personagens, os cômicos tuis. O termo tui foi criado pelo dramaturgo alemão e é sigla de um anagrama com a palavra Intellektual, Tellekt-Ual-In. Recorro neste ensaio à peça Turandot e o congresso das lavadeiras (1953), uma das obras em que Brecht satiriza o intelectual como função especializada da divisão social do trabalho, para ajudar a figurar a crítica que busco fazer à postura da classe intelectual crítica. Esta peça, ambientada em uma China mítica, conta a história de Turandot, a lânguida filha do Imperador que busca um amor entre os tuis, porque “não consegue resistir a atributos intelectuais”[2] (BRECHT, 1993, p. 117). As lavadeiras do título são os tuis, que lavam a roupa suja do império chinês para manter seus privilégios de classe intelectual. A peça mostra que o debate democrático tem um limite em uma sociedade de classes: é aceito enquanto os fundamentos da ordem não são questionados e, assim, identifica a ordem com a própria razão. Mas, quando esses fundamentos são postos em questão na prática das lutas sociais, aquelas mesmas ideias plurais que se mantinham no limite da razão aceita, ou seja, que não se constituíam em crítica radical, mas conciliavam com a ordem, são inseridas no conjunto amorfo do inimigo da ordem, da própria sociedade. Em uma palavra, o debate democrático em si mesmo é criminalizado. Com isso, a peça revela o caráter não apenas ineficiente, mas favorável ao sistema capitalista, daquelas críticas conciliatórias. A falta de radicalidade desses intelectuais consiste na ausência de uma tomada de posição de classe, pela classe trabalhadora: os tuis são uma classe autônoma e, como a peça desvenda, o posicionamento em defesa desta classe se torna sustentação prática da classe dominante. Mas, ainda assim, justamente porque se portam como uma classe à parte, na radicalização prática das lutas são identificados, pelos representantes da ordem, com o inimigo (a classe trabalhadora) e, mesmo que sempre tenham conciliado e até defendido o poder constituído, esse poder, quando precisa reagir, não mais os aceita, porque não pode mais conciliar-se com qualquer forma de pluralidade de ideias. Nada mais atual, diga-se de passagem, no nosso país, em que tudo o que não mimetiza o discurso do governo é inserido no grupo do marxismo cultural, inclusive correntes anti-marxistas. A peça é uma sátira fina do intelectual que vê a si mesmo em uma classe à parte e não assume a radicalidade de uma transformação social profunda. Como a figura de Kai Ho explicita, aqueles intelectuais que assumem a luta de classes, muito antes da radicalização dessas lutas e da necessidade do estado bonapartista, foram banidos da classe dos tuis, do debate democrático, e criminalizados. Kai Ho não é um intelectual, mas um agitador, cuja obra não é discutida nos congressos tuis, mas dogmaticamente desmoralizada. Trata-se de uma provável referência a Marx, banido da academia ou reduzido a um dos “três porquinhos” da especialidade sociológica, para usar uma expressão corrente na academia brasileira. Busco mostrar como a postura crítica dos pensadores franceses, bem como a recusa em assumir o anticapitalismo por David Harvey, os aproxima, por sua falta de radicalidade e consequência, aos tuis brechtianos. Como buscaremos mostrar, essa falta de consequência pode ser identificada especialmente nas propostas de transformação do mundo que esses autores oferecem: constructos ideais a serem aplicados ao mundo, incoerentes com as leis deste, com seu campo efetivo de possibilidades. Os pensadores a partir dos quais pretendo fazer essa reflexão são críticos. Recusam o modo de vida capitalista atual, com suas contradições já aprofundadas e explícitas, ou o modo de vida chamado de neoliberal. Atuam intelectualmente para defender uma transformação no modo de vida atual. Assim, Dardot e Laval sustentam a necessidade da priorização do comum, em lugar do interesse privado, com vistas à recusa da subjetivação do capitalismo que nos molda, ou da capitalização de nós mesmos; Piketty defende um socialismo participativo, em que a propriedade seria dividida por meio de expedientes como a taxação internacional de lucros e fluxos de capital, e até mesmo a garantia de uma herança de 120 mil euros para cada indivíduo que completar 25 anos de idade. Harvey, que há décadas vem explicando o desenvolvimento das relações econômicas e sociais e denunciando o neoliberalismo, hoje associa a gigantesca monopolização capitalista, expressa na profunda divisão internacional do trabalho que observamos, à impossibilidade material de qualquer revolução anticapitalista, propondo as reformas políticas como os únicos meios de domar a barbárie do capital. 1. Os problemas 1.1. Neoliberalismo Primeiro, apresento o problema em comum que esses intelectuais estão enfrentando. Ele é mais complexo do que aquele que os tuis da peça brechtiana precisam resolver, e do qual falarei à frente, mas ambos têm uma dificuldade similar. Os pensadores em questão se voltam para o neoliberalismo (Dardot e Laval) e para a recente ampliação das desigualdades e da concentração de riqueza (Piketty), ou seja, para o momento presente, que começa a se constituir após a derrocada do chamado socialismo real e do último suspiro dos trinta anos de conciliação de classe na Europa; David Harvey denuncia a catástrofe ambiental que pode se tornar irreversível e toda a violência mediante a qual a reprodução do capital se impõe. Para eles, esse modo de vida deve ser superado: para Piketty, o nível de concentração de renda a que chegamos beira a obscenidade; em Dardort e Laval, a subjetividade humana está limitada pela razão produtivista e acumuladora do empreendedor de si mesmo; Harvey, como marxista, indica a necessidade de superar a produção pela produção e seu impulso de caráter irracional e destrutivo. Vale recuperar brevemente a especificidade do chamado neoliberalismo, como um momento da história do desenvolvimento capitalista. Sabemos que a teoria que justifica o neoliberalismo é antiga, e foi derrotada como alternativa político-econômica no pós-guerra. Como prática vitoriosa, a partir de 1978, o neoliberalismo responde a uma crise que é ao mesmo tempo a expressão do fracasso do “liberalismo embutido” de Keynes, ou da “sociedade organizada”, como alguns chamaram. Quer dizer, quando aquela alternativa vitoriosa na década de 1940 encontrou seus limites, e quando todas as tentativas de ruptura com o capital foram derrotadas, o neoliberalismo emerge como forma de vida hegemônica. Desse modo, sua emergência aparece como uma solução para a crise econômica e como modelo final de sociabilidade. Sabemos, a partir de Marx, que crise é sempre crise de superprodução de capital ou superacumulação. A ampliação da produtividade do trabalho, determinante do modo de produção que funciona pela via da concorrência, é contraditória porque restringe progressivamente as bases de valorização do capital. Esquematicamente, é assim que Marx explica a principal contradição do capitalismo desenvolvido: por um lado, o pressuposto da relação de valor “é e continua sendo a massa de tempo de trabalho imediato, o quantum de trabalho empregado como fator decisivo da produção de riqueza” (MARX, 2011, p. 587). Por outro, impulsiona o incremento da produtividade do trabalho, embora desigualmente em diferentes ramos, o que barateia os produtos e restringe a capacidade do capital de empregar trabalho. O aumento da produtividade do trabalho social, o papel civilizatório que Marx atribui ao capital, expulsa trabalho do organismo produtivo, de modo que a proporção entre a parte do capital que precisa ser aplicada em materiais e equipamentos e aquela destinada a empregar trabalho se altera. Um montante dado de capital vai paulatinamente perdendo sua capacidade de empregar trabalho e, assim, estreitando os limites de sua potência de valorização. É o que expressa a lei tendencial à queda da taxa de lucro: com o aumento da produtividade do trabalho, tornam-se necessárias quantidades crescentes de capital constante (valor investido em meios de produção) para empregar uma quantidade dada de trabalho (capital variável). Um exemplo simples: quando uma máquina de tecer se torna duas vezes mais produtiva, é preciso comprar o dobro de fio para incorporar igual tempo de trabalho da mesma trabalhadora. Quer dizer, ele tem que produzir o dobro de valores de uso para reproduzir o mesmo quantum de valor. Se não existe mercado para o dobro de tecido, o capital liberado da produção têxtil precisa desenvolver novas mercadorias, que constituem novos campos de aplicação, para se reproduzir. Quando a produtividade ampliada atinge os ramos de meios de subsistência dos trabalhadores, esse processo barateia também os salários, ampliando a taxa de exploração (mais-valor) e obstaculizando a ampliação do poder de consumo. É um expediente comum, nos momentos que antecedem a crise, a transferência de montantes de capital para a esfera financeira. Trata-se de um modo de evitar a superprodução de mercadorias, mas não impede a superprodução do capital. Marx escreve: “Nas crises – após o momento de pânico –, no período da estagnação da indústria, o dinheiro é fixado nas mãos de banqueiros, corretores de títulos etc., e assim como o cervo grita por água fresca, o dinheiro grita por campo de aplicação para que o capital possa ser valorizado” (MARX, 2011, p. 519). Esse processo, conhecido como financeirização da economia, pode ser entendido como a atribuição do caráter fictício ou especulativo ao conjunto do capital social, seja ou não produtivo de mercadorias ou serviços: a expectativa de rentabilidade futura fixada em contrato passa a determinar o valor presente dos capitais, como fica nítido em todas as formas de capital acionário, conferindo ao conjunto do capital a forma de rentabilidade característica do capital a juros. Nas crises, com os títulos financeiros desvalorizados e o excesso de dinheiro, que opera no sentido de baixar a taxa de juros, montantes de capital fictício, especulativo ou sobre-estimado, mas também de capital real, morrem de sede, revelando a necessária unidade entre a esfera que cria o valor e a esfera de sua realização, que funcionam autonomizadas em momentos não críticos da reprodução social. A solução para recuperar a valorização do capital é sua ampliação extensiva, isto é, um salto na escala da produção, em seu nível de socialização. As crises mais profundas exigem, por isso, o estabelecimento de uma nova base técnica e uma expansão geográfica e intensiva dos mercados. Isso implica a concentração do capital: para estabelecer uma nova base material, pequenos capitais falidos na crise, ou sem capacidade de concorrência, são incorporados aos maiores, que assim arcam com os custos da nova estrutura. Criam-se mercados, novas mercadorias, barateiam-se produtos. O capital, por um lado, compensa assim uma queda na taxa de lucro pelo aumento da massa de lucro, e por outro, expande seu campo de aplicação, com maior número de consumidores e gama de necessidades, gerando o crescimento econômico. Este resulta de uma ampliação extensiva absoluta do valor criado em dado período. Se considerarmos que a ampliação da produtividade implica o aumento da quantidade de valores de uso produzidos com um dado montante de capital, o crescimento econômico medido em valor (produto interno bruto, descontada a inflação) significa um aumento proporcionalmente maior na quantidade de mercadorias, ou valores de uso. Isto é, a expansão do mercado deve ser proporcionalmente maior que o crescimento econômico. Mas, no caso do neoliberalismo, há uma especificidade com relação ao que se chamou de ciclos das crises. De acordo com David Harvey, o neoliberalismo foi bem-sucedido ao promover a expansão do capital e um novo nível da socialização ou escala da produção, fundada na nova técnica da informatização, tendo ampliado a produtividade do trabalho e as interconexões mundiais. O desenvolvimento da divisão internacional do trabalho e da especialização das nações é também um resultado desse bem-sucedido processo de ampliação da mundialização do capital, assim como a forma financeira ou fictícia que passa a permear o conjunto do capital social, baseada tecnicamente na informática, e alça o capital a um nível de fluidez, mas também de especulação, inéditos. Contudo, o neoliberalismo não foi bem-sucedido em restaurar os níveis de crescimento econômico anteriores às crises da década de 1970. O resultado mais notável do neoliberalismo, de acordo com o autor, foi a centralização sem precedentes do capital, que permitiu a emergência de uma classe capitalista mais estreita e poderosa, com características de capital rentista, tanto no setor financeiro como no produtivo, por meio, por exemplo, das patentes e da monopolização da tecnologia. A restauração do poder de classe, tanto econômico quanto político, agora livre da conciliação de classe que caracterizou a organização dos países centrais do ocidente durante os trinta anos que sucederam à segunda guerra, foi o festejado desfecho desse processo[3]. Tendo seguido todo o script da expansão necessária para recolocar a acumulação sobre bases mais amplas, a reprodução capitalista não foi bem-sucedida em reestabelecer-se sobre fundamentos favoráveis para a continuidade do processo, o que indica para uma crise estrutural, ou seja, uma condição em que a ampliação do nível de socialização do capital, sua expansão, não é mais capaz de superar a crise: há uma superprodução insolúvel de capital. Alguns dados expressam essa relação entre o último processo de aprofundamento da mundialização do capital, que a partir da década de 1990 consolidou a produção informatizada e a financeirização, sua incapacidade de gerar crescimento econômico e a centralização extrema do capital. Considerando os países do centro do sistema, aqueles que compõem a OECD desde 1961 (EUA, Canadá, Japão, e Europa Ocidental)[4], o crescimento econômico anual (crescimento real do PIB) foi em média acima de 4% na década de 1950, perto de 5% na de 1960, 3% na de 1970 (valor médio que conta com o crescimento de mais de 5% até 1972, caindo em 1973 com a crise do petróleo), 3% na década de 1980, abaixo de 3% na de 1990, e abaixo de 2% nas décadas de 2000 e 2010. No movimento amplo dos últimos 50 anos, após o último ciclo expansivo das décadas de 1950 e 1960, assistimos a uma redução do ritmo de crescimento econômico real dos países centrais, de 5% para menos de 2%. Se o crescimento econômico mundial se manteve sempre acima de 3% e, na década de 2010, chegou a 3,8%, isso se deveu à expansão capitalista dos países não-ocidentais, especialmente a China, cujo crescimento constante na casa dos 10% durou três décadas (1980 a 2010), caindo um pouco apenas na última (7,6% na média anual para década de 2010), mas também, a partir de 1990, da Rússia, da Índia, da Coreia do Sul. A abertura dos países do chamado socialismo real ao capital é em grande parte responsável pelo fôlego do capital nas últimas décadas. Frente ao crescimento econômico pífio que acompanhou tanto a consolidação da produção informatizada e a financeirização, quanto as políticas neoliberais, observamos a centralização do capital e a concentração sem precedentes da renda. O ritmo de crescimento econômico esteve então muito mais lento que o da centralização do capital – concentração do “patrimônio”, nos termos de economistas, como Thomas Piketty – e que o do avanço da desigualdade de renda. O termo “renda”, para os economistas, engloba tanto os rendimentos do trabalho quanto os dividendos do capital (lucro, juro, renda da terra e das patentes, que funcionam hoje como qualquer título financeiro). Assim, o aumento da desigualdade de renda envolve dois processos: a ampliação da parcela do valor socialmente criado que constitui dividendos do capital em relação à que constitui salários, e o crescimento da desigualdade no interior dos rendimentos do trabalho. Ambos são marcantes a partir da década de 1980. Com dados específicos dos EUA, Piketty escreve: Concretamente, se acumularmos o crescimento total da economia americana ao longo dos trinta anos que antecederam a crise, isto é, de 1977 a 2007, observa-se que os 10% mais ricos se apropriaram de três quartos desse crescimento — o 1% mais rico absorveu sozinho cerca de 60% do crescimento total da renda nacional ao longo desse período. Para os 90% restantes, a taxa média de crescimento da renda foi de menos de 0,5% por ano. (PIKETTY, 2014, p. 372) Mas esse movimento de apropriação capitalista que se beneficiou da dissolução do bloco soviético, da abertura da China, da desregulamentação dos mercados comerciais e financeiros e das políticas neoliberais privatistas e destrutivas da seguridade social foi mundial: “Eles permitiram que o capital privado recuperasse, no início da década de 2010 — apesar da crise de 2007-2008 —, uma prosperidade que não se via desde 1913” (PIKETTY, 2014, p. 51). Com a finalidade de garantir o apoio da elite do trabalho, daqueles que atuam na alta gerência das empresas, a guinada neoliberal também ampliou desmesuradamente os salários desta corte que circula em torno dos grandes proprietários e acionistas. David Harvey escreve que “a proporção entre a remuneração mediana dos trabalhadores e os salários dos CEOs (Chief Executive Officer) passou de apenas 30 para 1 em 1970 a quase 500 para 1 por volta de 2000” (HARVEY, 2008, p. 26). Para recuperar a lucratividade em um ambiente econômico tendente à estagnação, e no qual as crises levam a quedas cada vez mais acentuadas, a redução significativa da proporção de valor que cabe ao conjunto da classe trabalhadora é um expediente necessário. As políticas neoliberais fazem isso tanto pela flexibilização das relações e direitos trabalhistas e pela ampliação do desemprego, que acirra a concorrência entre os trabalhadores e age no sentido de reduzir salários, como por meio do próprio orçamento estatal, que direciona os recursos públicos para contribuir com a valorização dos grandes capitais financeiros e produtivos, tornando-se o que diferentes autores chamam de fiador último do capital, especialmente daqueles que são too big to fail. As privatizações também são um meio de transformar a riqueza pública em capital privado. Nos termos de Piketty, “A riqueza pública hoje está muito baixa na maioria dos países desenvolvidos (às vezes até negativa, quando a dívida pública é maior do que os ativos públicos), e veremos que a riqueza privada representa a quase totalidade da riqueza nacional em praticamente todos os países. No entanto, nem sempre foi assim” (PIKETTY, 2014, p. 57). Esse processo de redução de direitos trabalhistas e ampliação do mercado de trabalho informal (trabalho excluído da esfera do direito trabalhista e da seguridade social), bem como a transformação de toda forma de apropriação em propriedade privada, representa-se, no campo da teoria neoliberal, pela redução de todas as relações sociais à relação de concorrência, alçada ao status de natureza humana: o famoso darwinismo social, vulgarizado no termo meritocracia. Dardot e Laval escrevem que, hoje, (...) a exigência de uma universalização da norma de concorrência ultrapassa largamente as fronteiras do estado, atingindo diretamente até mesmo os indivíduos em sua relação consigo mesmos. (...) A empresa é promovida a modelo de subjetivação: cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que deve se fazer frutificar. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 368) As teorias apologéticas precisam em primeiro lugar ocultar a diferença de classe, e assim concebem a vida social novamente como a guerra hobbesiana de todos contra todos. Mas, se Hobbes a coloca como aquilo que deve ser controlado pela constituição do estado e da sociedade civil, os neoliberais a apresentam positivamente, como o que deve ser. Por essa razão, as teorias neoliberais precisam da moralidade, como único meio de conferir limites à violência constitutiva de sua visão sobre o devir da sociedade: se o estado é desnecessário, se não há classes sociais, mas apenas indivíduos e famílias, como limitar a ação violenta em prol do interesse egoísta? O acirramento da moralização é assim necessário à defesa do neoliberalismo, e explica o sucesso das igrejas pentecostais. Mas a propaganda moralista não é suficiente para o apaziguamento social. Com a pauperização das classes trabalhadoras, também se amplia a violência de estado como forma de controle social, profilaxia contra a revolta da classe trabalhadora. O encarceramento em massa é uma instituição do neoliberalismo: nos EUA, a população carcerária se torna massiva a partir da década de 1980, e no Brasil, a partir da década de 1990[5]. Não apenas o abandono pelo Estado para que os mais fracos pereçam, mas políticas de genocídio também caracterizam o neoliberalismo. A classe dominante age preventivamente, por meio do Estado, quando há razões para amplo descontentamento social. Há ainda outra razão pela qual a violência se amplia nos momentos de crise econômica: o capital aprofunda os expedientes do que Marx denominou acumulação primitiva, isto é, as expropriações e os cercamentos que hoje vitimam povos indígenas e o meio ambiente, e que são um expediente paralelo – e perene – da acumulação capitalista. Trata-se de um modo de ampliar o capital por meio de novos monopólios (patentes sobre plantas, por exemplo) e cercamento de terras, como as florestas, ou seja, realizar a apropriação privada daquilo que antes ainda permanecia fora da reprodução capitalista. A ampliação da concorrência no interior das classes trabalhadoras, em um momento em que a divisão internacional do trabalho fixou países inteiros em condições semi-coloniais, intensifica a violência racial, mais ainda quando as migrações de trabalhadores se tornam intensas. Se o capital há muito migra de um país a outro, o trabalho livre passa a migrar internacionalmente de modo intenso apenas no período do chamado neoliberalismo[6], de sorte que a concorrência dentro da classe amplia também o racismo. O aumento da pobreza tem ainda o efeito de chacoalhar o patriarcado: os homens não são mais capazes de sustentar a família; mas a maior presença de mulheres no mercado de trabalho e na chefia da família impulsionou uma reação patriarcal, que observamos na defesa da família tradicional por parte de diversos líderes políticos da extrema direita, bem como com as ascensões religiosas fundamentalistas. Uma sociedade que mantém sua estrutura com base na violência, tende a estender essa violência para o conjunto das relações sociais e, de fato, observa-se um aumento das violências raciais e de gênero[7]. É essa cena de aprofundamento das contradições capitalistas – centralização do capital; ampliação da pauperização e da exclusão de contingentes humanos do palco da socialização, que é o mercado; regressão de países a condições econômicas análogas às coloniais; rapina dos recursos ambientais e do patrimônio público; além do genocídio estatal de povos e grupos sociais – que os intelectuais críticos enfrentam hoje. Trata-se de insistir na necessidade de transformação desse modo de vida e de propor caminhos. 1.2. O império do algodão e da China Antes de irmos a eles, vale expor o problema que os tuis brechtianos devem resolver. O imperador da China é dono do monopólio sobre a produção de algodão no país. Ocorre que, neste ano, as colheitas foram especialmente abundantes, e isso levaria a uma queda do preço do algodão. A saída encontrada pelo governo é subtrair o algodão do mercado para, reduzindo a oferta, reconstituir o preço. O desaparecimento do algodão gera, contudo, uma revolta popular, que vai ao governo exigir explicações e uma solução. Para resolver esse conflito, e para a alegria de Turandot, o imperador manda organizar um congresso de tuis, que devem discursar para o povo oferecendo uma razão para a falta de algodão, e assim acabar com a revolta. Os tuis são convocados, em suma, para lavar a roupa suja do governo-proprietário. “Todo mundo sabe onde o algodão está realmente. Minhas quatro criadas falam abertamente sobre isso”, diz a mãe de um importante tui. Trata-se, portanto, de “Uma enorme dificuldade. É preciso ser um mestre para provar que dois mais dois é igual a cinco” (BRECHT, 1993, p. 136). Esse mestre, qual seja, o que conseguir convencer o povo de que o sumiço de algodão se deve a causas externas contra as quais o imperador nada pode, e assim alcançar novamente a resignação e a confiança popular, receberá um prêmio. Esse prêmio é o casamento com Turandot, que se oferece, considerando a si mesma premiada pelo casamento com o homem mais inteligente do reino. Os tuis visam esse prêmio, mas também a manutenção de seus privilégios e da vida mesma: aqueles cujos discursos não forem capazes de convencer o povo, terão suas cabeças cortadas. Se todos sabem onde o algodão está e se, ademais, há grandes sublevações populares, por que o Imperador aposta no congresso das lavadeiras para resolver o conflito e apaziguar o povo? Em frente ao castelo, há uma passeata tão grande que levará de oito a dez horas para passar. Há panfletos por toda parte, em cujo texto se reconhece o estilo da escrita de Kai Ho: “Onde estará o algodão da China? Será que os filhos da China terão de ir nus ao enterro dos seus pais mortos de fome? O primeiro imperador Mandchu só possuía a quantidade de algodão necessária para fazer uma capa de soldado. Quanto algodão possui o último imperador?” Ao ouvir a mensagem do panfleto, o Imperador exclama: “Esse tui desgraçado!” Isso afeta o Tui da Corte que, suando frio, extravasa: “De jeito nenhum! Mande nos chicotear à vontade, mas não diga que esse sujeito imundo é um tui. Um agitador, um subversivo que está sempre metido com a pior escória da China” (BRECHT, 1993, p. 123). Aqui ficamos sabendo que Kai Ho, banido e censurado, já fora um tui. Além da passeata e dos panfletos, representantes de duas Ligas vão ao imperador exigir explicação sobre a falta de algodão: a Liga dos Camiseiros, cujas fábricas foram fechadas por falta de matéria-prima, e a Liga dos Sem-camisa. Parece, assim, uma grande ingenuidade do governo apostar nos tuis como meio de pacificar o povo. A cena que se passa entre os representantes das duas Ligas em seu encontro com o Imperador, contudo, o convence. Esses representantes são tuis que tomaram para si causas de cunho sindical. São chamados por isso de Tuis Aliados. Ora, se são tuis que formulam para determinadas classes profissionais, por que não foram proibidos de usar o chapéu tui, como Kai Ho? Por que são, por assim dizer, uma oposição tolerável? Isso se explica pela afiliação do pensamento de ambos os tuis aliados ao clássico da sociologia Ka Me, que aparece como uma autoridade no seu campo. Brecht oferece-nos duas de suas máximas: “Não há nada que possa deter a força do povo quando o povo está unido”; “Só em plena liberdade é que se pode conquistar a liberdade”. Baseando-se na primeira máxima, o tui da Liga dos Camiseiros ameaça o Imperador com uma aliança entre as Ligas adversárias (a dos camiseiros vendem as camisas de que os sem-camisa são privados pela pobreza), na medida em que enfrentam um problema em comum. Mas nesse ponto, já começam a divergir. Sobre a unidade das Ligas, o tui aliado dos Sem-camisa pondera que não deve ser “de cima para baixo, e sim de baixo para cima”, mas o tui dos camiseiros revida: “A liderança de baixo é a gente mesmo que escolhe” (BRECHT, 1993, p. 126). A partir daí, as acusações se multiplicam: “Quem fala por sua boca é o seu Kai Ho”, “E pela sua os honorários pagos pelo traidor que é o Führer dessa liga de fazedores de pactos e de traidores”. Quer dizer, trocam as costumeiras acusações de comunista, da parte do sindicato patronal, e fascista, do lado do sindicato dos descamisados, quando ambos reivindicam as teses do mesmo autor[8]. Acabam partindo para as vias de fato e o tumulto se generaliza, para delírio de Turandot. O Imperador observa que “Eles nunca estão de acordo entre eles mesmos” e, por essa razão, convence-se de que “um congresso de tuis é suficiente para essa boa gente” (BRECHT, 1993, p. 128). Essa gente, a das ligas descontentes, é boa porque não representa uma ameaça real. A aliança se dissolveu antes mesmo de se realizar e a unidade popular não parece iminente. Além disso, os tuis gozam de grande prestígio entre o povo, o que se manifesta pelo comentário de Sen, um camponês idoso que chega em Pequim para realizar o sonho de estudar o tuísmo. Ele traz uma carga de algodão para vender e, com o dinheiro, pagar seus estudos, mas a mercadoria é confiscada pelo Império: “Há cinquenta anos que eu sonho em pertencer à grande irmandade daqueles que se chamam tuis, de acordo com as iniciais de Telect-Uai-In. São seus elevados pensamentos que fazem tudo funcionar no Estado. Eles são os guias da humanidade” (BRECHT, 1993, p. 120). A persuasão do povo pelo discurso intelectual parece pois viável ao Imperador. Em sua argumentação no congresso, esses guias da humanidade podem criticar tudo, menos o império da China e o monopólio do algodão. Também os pensadores franceses que buscamos examinar deixam de fora da sua crítica sempre os mesmos pontos: a propriedade privada, a divisão do trabalho, a organização da sociedade em classes. Assim, também enfrentam a enorme dificuldade de provar que dois mais dois é igual a cinco, como veremos. Os tuis da peça brechtiana têm como ocupação central produzir “formulações” sob demanda. Há uma especialização no interior desta atividade, por áreas do conhecimento ou habilidades determinadas. Eles têm a profissão em comum, e nesse sentido específico das corporações profissionais da Idade Média, são uma classe, que se organiza em uma Liga. Por isso, distinguem-se a longa distância pelo alto chapéu tui. Os tuis são uma das múltiplas classes de profissionais que compõe a mítica China criada por Brecht. A caracterização da população como um conjunto dividido em classes profissionais, em que cada uma tem um interesse próprio, é alvo da sátira brechtiana, já que oculta a real divisão social entre, por um lado, proprietários que são direta ou indiretamente detentores do poder político e que sustentam uma espécie de corte constituída também por tuis, e, por outro lado, o conjunto da classe trabalhadora. O tui Ki Leh, primeiro a discursar no congresso das lavadeiras, não deixa de definir o povo desse modo “exageradamente científico”, em que mistura proprietários e trabalhadores[9]. Embora sejam uma classe profissional, os tuis existem associados a diferentes esferas sociais. Há os que aconselham o rei, e são uma nobreza parasitária, espécie de cargo de confiança do governo, como o tui da corte. Há o redator da escola e reitor da universidade imperial, instituições oficiais em que os alunos pagam para estudar e tornarem-se tuis de diferentes especialidades. E, mais importante, há o mercado tui. Trata-se de uma feira em que os tuis aparecem como meros trabalhadores vendendo seus serviços no mercado. Não vendem exatamente sua força de trabalho, mas, numa forma semelhante a profissionais liberais pobres, vendem suas formulações, destinadas a resolver todo tipo de problemas[10]. Há propaganda desses serviços na Casa de Chás dos Tuis, que a desejosa Turandot visita: “Duas formulações menores por três ienes”, “Aqui se alteram opiniões. Ficam novas em folha”, “Mo-Si, o famoso Rei da Desculpa”, “Por que você é inocente? - Nu Shan lhe dirá”, “Você comercia. Eu forneço os argumentos”, “Faça o que quiser, mas formule decentemente” (BRECHT, 1993, pp. 114-15). Independentemente de pertencerem ao governo, de trabalharem nas instituições de pesquisa e educação oficiais, ou venderem seus serviços numa feira, todos os tuis têm o direito de utilizar os famosos chapéus; independentemente de serem reconhecidos e ricos, ou desconhecidos e pobres, são todos socialmente respeitados por deterem o conhecimento, como uma classe de pessoas guardiãs do saber, da verdade, do uso da razão. Na Casa de Chás dos tuis, todos estão buscando ganhar a vida. Um prepara uma difícil formulação sob demanda do Banco Municipal para justificar o aumento de cobranças; outro descansa por ter já vendido “a um vendedor de tripas uma opinião sobre música atonal” (BRECHT, 1993, p. 115); um terceiro introduz o pagamento a prazo, já que os tempos são difíceis. Turandot paga o tui Nu Shan e se diverte discutindo o próprio desejo sexual; passa um garçom anunciando a demanda por “intelectuais com prática em comunicados ao público para lavar negócios sujos”, e completa em voz baixa, “vendas superfaturadas” (BRECHT, 1993, p. 117): três tuis se levantam e saem. A situação na Casa de Chás é tensa, devido à rebeldia popular. A polícia proíbe os tuis de atenderem clientes maltrapilhos, ao que um mendigo se levanta dignamente e sai; um tui menciona o alto preço das roupas; outro prevê que “Daqui a pouco os pobres já não vão se permitir nenhuma opinião”; um terceiro brinca: “Aqui só existe um problema difícil de resolver: quem paga o chá?” (BRECHT, 1993, pp. 115 e 117) Com essa caracterização, observamos que os tuis são uma categoria da divisão do trabalho, que precisam vender sua força de trabalho ou seus serviços. A despeito de seu maior ou menor reconhecimento e remuneração; sejam parte da corte, funcionários das escolas tuis, ou profissionais liberais que atendem outros trabalhadores, os tuis são não-proprietários, e precisam trabalhar para viver. Como classe profissional, concorrem entre si pelos empregos disponíveis ou por uma fatia do mercado de formulações. Suas condições objetivas, seu lugar na divisão social do trabalho, é, pois, o da classe trabalhadora, submetida aos fins dos contratantes. Mas seus altos chapéus, que ampliam o tamanho da cabeça, os distinguem do resto desta classe: trabalham com o saber e não com o fazer, com o pensar e não com o agir. Nisso consiste sua privilegiada posição social. Também na Casa de Chás, Turandot tem seu coração fisgado por um que a “agradou à primeira vista”. Não é, contudo, um intelectual, mas sim um “bonitão” que entra para comprar formulações do tui que oferece duas menores por três ienes. Gogher Gogh, é esse o nome do bonitão, provará ser o mais inteligente do reino, a despeito de ter falhado duas vezes nos exames de admissão da escola tui. Vale caracterizar brevemente esse personagem, já que é na história que envolve Turandot e o famoso assaltante Gogher Gogh num caso amoroso que Brecht figurará o estado em suas últimas consequências, e assim, a natureza mesma do estado. Trata-se de um aspirante a tui, que se tornou assaltante para pagar os estudos[11]. Hoje, contudo, lidera uma milícia remunerada para proteger os comerciantes de assaltos. Assaltos que ele mesmo executaria, caso não fosse pago para evitá-los. Tendo sido reprovado para ingressar na escola tui, desistiu dela, que, aliás, “não serve para nada” (BRECHT, 1993, p. 118). Vem à Casa de Chás dos tuis adquirir um discurso de justificativa por ter roubado a caixa e empenhado as armas de sua própria “empresa”, ou seja, seu bando miliciano, para pagar os exames escolares. Como não é um tui, não será no congresso das lavadeiras que ele fará sua inteligência brilhar. Até este congresso, ainda vigora a ideia, expressa por um eminente tui, de que “é o espírito quem decide sobre os destinos de um povo, não a força”. O ilustre Munka Du constata que, “Em agonia e desespero, o país volta os olhos para os intelectuais. O que eles dirão? (...) Oh, eu sinto a responsabilidade que recai sobre meus ombros” (BRECHT, 1993, p. 137). Com a sátira da classe intelectual e da política a um tempo, Brecht figura a crítica à divisão social do trabalho e à oposição entre razão/direito e força, que estão na base das teorias políticas burguesas, recolocando a compreensão da produção e da organização social da vida sobre bases materialistas. Digo recolocando porque Brecht acaba por figurar a viragem ontológica que Marx, nosso Kai Ho, opera ao desvelar o conteúdo da alienação: a esfera política é produto das relações materiais contraditórias da sociedade civil; o pensamento, como atributo do ser que pensa, é produzido mediante a atividade e as relações sociais deste ser. Essas duas clivagens sociais – a separação entre estado e sociedade e o desmembramento da atividade produtiva do ser humano em trabalho material e criação intelectual – são desmistificadas na peça de Brecht. Ficará claro que ambas se originam da forma privada da propriedade e da divisão da sociedade em classes. Em duas classes sociais, e não em múltiplas classes profissionais. NOTAS [1] Filósofa marxista, professora do CEFET-MG. Contato veraacotrim@gmail.com . [2] A peça de Brecht é uma releitura de Turandot, de Carlo Gozzi, uma comedia dell’arte encenada pela primeira vez em 1762. À moda do século XVIII, a peça se passa em uma China mítica e conta a história de Turandot, uma princesa traumatizada com os homens devido uma guerra anterior e cujo pai demanda que se case. Ela então exige cruelmente de seus pretendentes que resolvam três complicados enigmas, sob pena de morte. No final, acaba por ser domada por um príncipe cruel como ela, que a compreende. A peça ganhou versões de Schiller, Goethe, uma ópera de Puccini, um filme de Gerhard Lamprecht, e uma versão para o teatro de Yevgeny Vakhtangov, em Moscou, em 1922. É com esta interpretação que, acredito, Brecht está discutindo. A versão de Brech, satírica, é a única que altera completamente o enredo. Nesta, Turandot não é cruel e não tem poder político; é uma princesa ingênua, desbocada, que tem um fraco pelos intelectuais: “Tui da Corte – Certas formulações elegantes a excitam./ Turandot – Fisicamente./ Tui da Corte – Novas posições.../ Turandot – ... de ideias.../ Tui da Corte – ... deixam esta mulher totalmente escravizada a um homem./ Turandot – Sexualmente. Conta do sangue./ Tui da Corte – O sangue dispara do seu coração quando ela vê uma cabeça erguida, um gesto cheio de significados, quando ouve uma redonda.../ Turandot – ... frase” (BRECHT, 1993, p. 117). [3] Harvey escreve: “Gerard Duménil e Dominique Levy, depois de uma cuidadosa redistribuição dos dados, concluíram que a neoliberalização foi desde o começo um projeto voltado para restaurar o poder de classe”. E adiante: “A neoliberalização não foi muito eficaz na revitalização da acumulação do capital global, mas teve notável sucesso na restauração ou, em alguns casos (a Rússia e a China, por exemplo) na criação do poder de uma elite econômica” Ele afirma ainda: “A liberdade de mercado que Bush proclama como ponto alto da aspiração humana mostra não ser nada mais do que meios convenientes de disseminar o poder monopolista corporativo – e a Coca-Cola – pelos quatro cantos do globo, sem restrição” (HARVEY, 2008, pp. 26; 27 e 47). [4] A partir do fim da década de 1990, outros países passam a integrar a OECD, que hoje soma 38 membros e congrega assim algo em torno de 80% da circulação mundial de valores. Esses países são especialmente do leste europeu, mas também a Austrália e alguns latino-americanos. Para a lista completa, ver http://www.oecd.org/about/members-and-partners/. [5] Para dados e análise sobre o sistema carcerário nos EUA, ver WACQUANT, Löic. “Crime e castigo nos Estados Unidos: de Nixon a Clinton” Revista de Sociologia e Política nº 13, Nov/1999, pp. 39-50. No Brasil, o encarceramento cresce 618% entre 1990 e 2018. Para dados sobre o Brasil, ver o site do INFOPEN e AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CIFALI, Ana Cláudia “Política criminal e encarceramento no Brasil nos governos Lula e Dilma - Elementos para um balanço de uma experiência de governo pós-neoliberal”, Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 1, jan.-mar/2015, pp. 105-127. [6] Os fluxos migratórios internacionais de trabalhadores começam a ser significativos a partir de 1980, quando trabalhadores de países pobres se dirigem ao centro do capital. Esses fluxos dão um salto na década de 2010, quando passa a haver também significativas migrações no eixo Sul-Sul, que também se tornam mais femininos. Ver http://panoramainternacional.fee.tche.br/article/migracoes-internacionais-e-seus-fluxos-de-contradicoes/ e https://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:N-Qz8QtJz1EJ:https://nacoesunidas.org/estudo-da-oit-mostra-salto-no-numero-de-trabalhadores-migrantes-no-mundo/+&cd=3&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br [7] Os dados do Brasil exemplificam esse aumento: “(...) em 2017, 4.473 feminicídios representaram um aumento de 6,5% em relação a 2016. Conforme o 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018, os estupros no Brasil cresceram 8,4% de 2016 a 2017, passando de 54.968 para 60.018 casos registrados. Isso quer dizer que ocorreram cerca de seis estupros de uma mulher brasileira a cada dia. (...) De acordo com o Atlas da Violência, publicado em 2018, 4.645 mulheres foram assassinadas no país em 2016. Isso significa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Todavia, há uma diferença de 71% entre a taxa de homicídios das mulheres negras e as não-negras.” (PINASSI, Maria Orlanda. “A radicalidade revolucionária é feminina”. 07/03/2020 Disponível em: https://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/14075-a-radicalidade-revolucionaria-e-feminista?fbclid=IwAR2d0VwM86xmTJ5FNhnZU1-BoWV5nCGCVKHh2FE5NA5YPJzp76Db5mpbXlc) Em São Paulo, os assassinatos pela polícia aumentaram 23% entre 2019 e 2020 mesmo com a redução da criminalidade, de acordo com dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado. Ver https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-02/mortes-em-operacoes-policiais-aumentam-no-brasil-apesar-da-quarentena.html [8] Ka Me parece ser o Max Weber desta China mítica brechtiana. No Brasil, observamos que partidarismos que se colocam como opostos se valem igualmente deste sociólogo: as teses de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e de Fernando Haddad (PT) são ambas fundamentadas em Weber. [9] “Um bosque não é simplesmente um bosque, pois se constitui de diferentes árvores. Do mesmo modo, o povo não é simplesmente o povo. E de que se constitui o povo? Muito bem. No povo há os funcionários, os copeiros, os proprietários rurais, os funileiros, os comerciantes de algodão, os médicos e os padeiros. Há também os oficiais, os músicos, os marceneiros, os vinhateiros, os advogados, os pastores de ovelhas, os poetas e os ferreiros. Sem esquecer os pescadores, as domésticas, os matemáticos, os pintores, os açougueiros, os farmacêuticos, os químicos, os guardas noturnos, os luveiros, os sapateiros, os professores de idiomas, os agentes de polícia, os jardineiros, os jornalistas, os portuários, os cesteiros, os garçons, os astrônomos, os peleteiros, os quitandeiros, os vendedores de gelo, os jornaleiros, os pianistas, os flautistas, os percussionistas, os violinistas, os acordeonistas, os tocadores de cítaras, os violoncelistas, os violeiros, os trompetistas, os tocadores de instrumentos de madeira, os comerciantes de madeira e os peritos em madeira. E quem já não ouviu falar nos vendedores de tabacaria, nos metalúrgicos, nos lenhadores, nos trabalhadores do campo, nos tecelões, nos pedreiros, nos arquitetos e nos marinheiros? Outros ofícios são os de fiandeiros, telhadores, atores, jogadores de futebol, escafandristas, garimpeiros, escultores, amoladores, cabelereiros de cachorros, hoteleiros, carrascos, escrivãos, carteiros, banqueiros, carroceiros, parteiras, alfaiates, mineiros, criados, desportistas e pilotos” (BRECHT, 1993, pp. 140-1). [10] Não posso deixar de me lembrar aqui de um episódio da minha própria formação intelectual, no primeiro ano da graduação em Filosofia na USP, e que alguns amigos irão também se lembrar. Um professor, hoje querido, mas que na época foi alvo de muitas críticas e rendeu muitas risadas, assim definia a filosofia, repetindo animadamente em toda e cada aula: “O que é filosofia, senhores? Filosofia é resolução de problemas!”. [11] Ao que Turandot pergunta: - Quer dizer que é mais fácil viver como intelectual do que como assaltante? O tui Nu Shan responde que não há muita diferença. (BRECHT, 1993, p. 119)

  • Alemanha - II. Revolução e Contrarrevolução, Friedrich Engels

    Tradução: Igor Dias Domingues de Souza; Iris Lays Silvestre; João Veloso Matos Revisão: João Veloso Matos O escrito a seguir foi originalmente publicado na página 6 do número 3285, volume 11, edição de terça-feira, dia 28 de outubro de 1851. Embora tenha sido assinado por Marx, neste trabalho, Engels se debruça sobre os conflitos de interesse entre a aristocracia e a pequena burguesia alemã, principalmente os liberais, na conformação do Estado Prussiano sob o regime de Frederico Guilherme IV. Ao caro leitor, uma boa apreciação do texto que segue! Igor Dias O movimento político da classe média, ou burguesia, na Alemanha, pode ser datado de 1840. Foi precedido de sintomas que mostravam que a classe endinheirada e industrial daquele país estava amadurecendo para uma situação que não lhe permitiria mais continuar apática e passiva sob a pressão de um monarquismo meio feudal, meio burocrático. Os menores príncipes da Alemanha, em parte para garantir a si mesmos uma maior independência frente a supremacia da Áustria e da Prússia, ou frente a influência da nobreza de seus próprios Estados, em parte a fim de consolidar, num todo, as províncias desconexas reunidas sob seu domínio pelo Congresso de Viena, outorgaram, um após outro, constituições de carácter mais ou menos liberal. Poderiam fazer assim sem nenhum perigo a si mesmos; porque se o Parlamento da Confederação, este mero fantoche da Áustria e Prússia, pretendesse usurpar sua própria independência como soberanos, saberiam que ao resistir às suas ordens seriam apoiados pela opinião pública e pelas câmaras; e se, ao contrário, essas câmaras se fortalecessem, poderiam prontamente comandar o poder do parlamento para derrubar toda a oposição. As instituições constitucionais bávaras, vurtemberguesas, badenianas ou hanoverianas não poderiam, sob tais circunstâncias, dar origem a nenhuma luta séria pelo poder político, e, consequentemente, o grande volume da classe média alemã manteve-se, em geral, apartada das querelas mesquinhas levantadas nas legislaturas dos estados pequenos, em sabendo que sem uma mudança fundamental nas políticas e na constituição dos dois grandes poderes da Alemanha, nenhuma valia teriam quaisquer esforços secundários e vitórias. Mas, ao mesmo tempo, uma raça de advogados liberais, oposicionistas profissionais, surgidos nessas pequenas assembleias: os Rottecks, os Welckers, os Roemers, os Jordans, os Stuves, os Eisenmanns, aqueles “homens do povo” (Volksmänner) que após vinte anos de oposição mais ou mais menos ruidosos, mas sempre mal sucedidos, foram levados ao topo do poder pela primavera revolucionária de 1848, e que, depois de terem mostrado sua completa impotência e insignificância, foram rapidamente derrubados outra vez. Esses primeiros espécimes em solo alemão do comerciante de política e oposição, tornaram familiar ao ouvido alemão a linguagem do constitucionalismo através de seus discursos e escritos, e por sua própria existência prenunciavam a aproximação de uma época em que a classe média se apoderaria e restauraria ao seu devido significado frases políticas que esses advogados e professores falantes costumavam usar sem saber muito sobre o sentido originalmente atribuído a elas. A literatura alemã, também, trabalhou sob a influência da agitação política em que toda a Europa tinha sido jogada pelos eventos de 1830. Um grosseiro constitucionalismo ou um ainda mais grosseiro republicanismo, foram pregados por quase todos os escritores da época. Tornou-se cada vez mais habitual, particularmente aos tipos inferiores de literatos para compensar a falta de inteligência em suas produções, através de alusões políticas que certamente atrairiam a atenção. A poesia, os romances, as resenhas, o teatro, cada produção literária fervilhava com o que fosse declarado “tendência”, em outras palavras, com exibições mais ou mais menos tímidas de um espírito antigovernamental. A fim de completar a confusão de ideias que reinavam na Alemanha após 1830, com estes elementos da oposição política estavam misturadas recordações universitárias mal digeridas da filosofia alemã e rastros incompreendidos do socialismo francês, particularmente do Saint-simonismo; e a panela de escritores que discorreu sobre esse conglomerado heterogêneo de ideias presunçosamente se autodenominou "Jovem Alemanha" ou "A Escola Moderna". Eles, desde então, se arrependeram de seus pecados juvenis, mas não melhoraram seu estilo de escrita. Por fim, a filosofia alemã, o mais complicado, mas, ao mesmo tempo, mais seguro termômetro do desenvolvimento da mente alemã, declarou-se a favor da classe média quando Hegel, em sua “Filosofia do Direito", declarou a monarquia constitucional como a última e mais perfeita forma de governo. Em outras palavras, ele proclamou a aproximação da chegada das classes médias do país ao poder político. Sua escola, após sua morte, não parou aqui. Embora a seção mais avançada de seus seguidores, por um lado, tenha submetido cada crença religiosa ao suplício de uma crítica rigorosa e abalado em sua base o antigo tecido da cristandade, eles ao mesmo tempo apresentaram princípios políticos mais ousados do que até então haviam chegado aos ouvidos alemães, e tentaram restaurar à glória a memória dos heróis da primeira revolução francesa. A língua filosófica confusa em que essas ideias foram vestidas, se obscureceu tanto a mente do escritor quanto a do leitor, cegou igualmente os olhos do censor, e foi assim que os escritores “jovens hegelianos” desfrutaram de uma liberdade de imprensa desconhecida em outros ramos da literatura. Desse modo, era evidente que a opinião pública passava por uma grande mudança na Alemanha. Gradualmente, a grande maioria daquelas classes cuja educação ou a posição na vida as permitiu, sob uma monarquia absolutista, obter alguma informação política e formar algo nada semelhante a uma opinião política independente, se uniram em uma poderosa falange de oposição ao sistema existente. E, ao julgar a lentidão do desenvolvimento político na Alemanha, ninguém deve omitir a dificuldade de obter informações corretas sobre qualquer assunto em um país onde todas as fontes de informação estavam sob o controle do governo, onde desde a Ragged School [Escola Esfarrapada] e a Escola Dominical até o jornal e a universidade nada era dito, ensinado, impresso, ou publicado a não ser que tivesse previamente obtido sua aprovação. Observemos Viena, por exemplo. O povo de Viena, na indústria e na manufatura, talvez os melhores da Alemanha; em espírito, coragem e energia revolucionária, provando-se muito superiores a todos, eram ainda mais ignorantes a respeito de seus reais interesses, e cometeram mais absurdos durante a revolução do que quaisquer outros, e isto era devido em grande medida à quase absoluta ignorância no que tange aos assuntos políticos mais comuns em que o governo de Metternich tinha sucedido em os manter. Não são necessárias mais explicações para compreender por que, sob tal sistema, a informação política era um monopólio quase exclusivo daquelas classes da sociedade que podiam se permitir pagar para que ela fosse contrabandeada para dentro do país e, mais particularmente, daqueles cujos interesses eram mais seriamente atacados pelo existente estado das coisas — a saber, as classes manufatureira e comercial. Elas foram, por conseguinte, as primeiras a se unirem em massa contra a continuidade de um absolutismo mais ou menos disfarçado, e a partir de sua passagem para as fileiras da oposição deve ser datado o começo do movimento revolucionário real na Alemanha. O pronunciamento de oposição da burguesia alemã pode ser datada de 1840, da morte do falecido rei da Prússia, o último fundador sobrevivente da Santa Aliança de 1815. O novo rei foi reconhecido por não ser nenhum apoiador da monarquia predominantemente burocrática e militar de seu pai. O que a classe média francesa tinha esperado do advento de Luís XVI, a burguesia alemã esperava, em alguma medida, de Frederico Guilherme IV da Prússia. De todos os lados se concordava que o velho sistema estava ultrapassado, desgastado e devia ser abandonado; e aquilo que tinha sido suportado em silêncio sob o reinado do antigo rei era agora proclamado em alta voz como intolerável. Mas se Luís XVI, “Louis le Désiré”, fosse um simples e despretensioso simplório, semiconsciente de sua própria nulidade, sem opiniões fixas, regido principalmente pelos hábitos contraídos durante sua instrução, “Frederick William le Désiré” era algo completamente diferente. Enquanto ele certamente superou seu original francês na fraqueza de caráter, ele não era despretensioso nem desprovido de opiniões. Tinha se familiarizado, de forma um tanto amadora, com os rudimentos da maioria das ciências e julgava-se, por conseguinte, suficientemente ilustrado para considerar como definitivos os seus juízos acerca de qualquer questão. Ele se certificou de que era um orador de primeira linha, e certamente não havia nenhum caixeiro-viajante em Berlim que pudesse vencê-lo, seja na prolixidade da pretensa sagacidade ou na fluência da elocução. E, acima de tudo, ele tinha as suas opiniões. Ele odiava e desprezava o elemento burocrático da monarquia prussiana, mas apenas porque todo seu apoio era direcionado ao elemento feudal. Ele mesmo um dos fundadores e principais contribuintes do Berlin Political Weekly Paper, a assim chamada Escola Histórica (uma escola que vive das ideias de Bonald, De Maistre e outros escritores da primeira geração de legitimistas franceses), ele visava uma restauração, tão completa quanto possível, da posição social predominante da nobreza. O rei, o primeiro nobre de seu reino, cercado em primeira instância por uma corte esplêndida de poderosos vassalos, príncipes, duques e condes; em segunda instância, por uma numerosa e rica baixa nobreza; governando de acordo com seu critério sobre seus burgueses e camponeses leais, e assim sendo ele mesmo o chefe de uma hierarquia completa de classes sociais ou castas, cada uma das quais deveria gozar de seus privilégios particulares, e ser separada das outras por uma barreira quase intransponível de nascimento, ou de posição fixa e inalterável; o todo dessas castas, ou os “estamentos” se equilibrando simultaneamente tão satisfatoriamente em poder e influência que uma completa independência de ação deve permanecer ao Rei - tal era o beau ideal que Frederico Guilherme IV se comprometeu a realizar, e que está tentando outra vez concluir no presente momento. Levou algum tempo até que a burguesia prussiana, não tão bem versada nas questões teóricas, encontrasse o sentido real da tendência de seu rei. Mas o que logo descobriram foi o fato de que ele se inclinava no sentido oposto aos de seus anseios. Mal o novo rei encontrou o "dom da palavra”, liberto da morte de seu pai, já começou a proclamar suas intenções em inúmeros discursos; e cada discurso, cada ato seu, contribuía para o afastamento de seus simpatizantes da classe média. Ele não se importaria muito com isso, se não fosse pela dura e surpreendente realidade que interrompeu seus sonhos poéticos. Infelizmente, esse romantismo não é muito ágil em seus cálculos e esse feudalismo já não contava com seu anfitrião desde Dom Quixote. Frederico Guilherme IV tomou parte largamente nesse desprezo pelo dinheiro vivo que já foi a herança mais nobre dos filhos dos cruzados. Ele encontrou em sua ascensão um sistema de governo caro, embora parcimoniosamente organizado, e um Tesouro do Estado moderadamente cheio. Em dois anos todo vestígio de excedente foi gasto nos festivais da corte, procissões da realeza, generosidades, subsídios a nobres necessitados, decadentes e gananciosos, etc. e logo os impostos regulares não eram mais suficientes para as exigências da Corte ou do Governo. E assim Sua Majestade logo colocado entre um déficit gritante de um lado e a lei de 1820 do outro, lei na qual todo o empréstimo novo, ou qualquer aumento da taxação então existente foi tornado ilegal se sem o consentimento da "futura Representação do Povo". Essa representação não existiu; o novo rei era menos inclinado ainda que seu pai para criá-la; e se fora predisposto a isso, sabia que a opinião pública tinha mudado maravilhosamente desde sua ascensão. De fato, as classes médias, que em parte esperavam que o novo rei concedesse imediatamente uma constituição, proclamasse a liberdade de imprensa, o julgamento por júri etc. — em suma, ele próprio assumiu a liderança daquela revolução pacífica que eles queriam para obter a supremacia política — as classes médias descobriram seu erro e se voltaram ferozmente contra o rei. Na província do Reno, e mais ou menos generalizada por toda Prússia, a classe média ficou tão exasperada que, na falta de homens capazes de representá-los na imprensa, chegaram ao ponto de uma aliança com o partido filosófico extremo, do qual falamos acima. O fruto dessa aliança era a Gazeta Renana de Colônia[1], um jornal que foi suprimido após quinze meses de existência, mas a partir do qual pode ser datada a existência do jornalismo na Alemanha. Isso foi em 1842. O pobre rei, cujas dificuldades comerciais eram a mais aguda sátira às suas propensões medievais, logo descobriu que não podia continuar a reinar sem fazer uma ligeira concessão ao clamor popular por aquela "Representação do Povo", que, como último resquício das promessas há muito esquecidas de 1813 e 1815 tinham sido incorporado na lei de 1820. Ele encontrou o modo menos digno de censura de satisfazer essa lei desagradável ao convocar os Comitês Permanentes dos Parlamentos Provinciais. Os Parlamentos Provinciais haviam sido instituídos em 1823. Eles eram constituídos para cada uma das oito províncias do reino pela: (1) alta nobreza, as famílias anteriormente soberanas do Império Alemão, cujos chefes eram membros do Parlamento por direito de nascença. (2) Representantes dos cavaleiros, ou baixa nobreza. (3) Representantes das cidades. (4) Pelos deputados do campesinato, ou pequenos agricultores. Estava tudo organizado de tal maneira que em todas as províncias as duas seções da nobreza sempre tiveram a maioria do Parlamento. Cada um dos Parlamentos Provinciais elegeu um comitê, e esses oito comitês foram então convocados a Berlim para formar uma Assembleia Representativa com a finalidade de votar o tão desejado empréstimo. Declarou-se que o Tesouro estava cheio, e que o empréstimo era requerido, não para necessidades atuais, mas para a construção de uma ferrovia do Estado. Mas os comitês unidos deram ao rei uma recusa terminante, declarando-se incompetentes para atuar como representantes do povo, e solicitaram à Sua Majestade que cumprisse a promessa de uma constituição representativa que seu pai havia dado, quando queria a ajuda do povo contra Napoleão. A sessão dos Comitês reunidos provou que o espírito de oposição já não se limitava à burguesia. Uma parte do campesinato se juntou a eles, e muitos nobres, sendo eles próprios grandes fazendeiros em suas próprias propriedades, e comerciantes de milho, lã, aguardente e linho, exigindo as mesmas garantias contra o absolutismo, burocracia e restauração feudal, tinham igualmente se pronunciado contra o Governo e a favor de uma constituição representativa. O plano do rei havia falhado de forma notável; ele não tinha dinheiro e aumentou o poder da oposição. A sessão subsequente dos Parlamentos Provinciais foi ainda mais infeliz para o Rei. Todo eles pediram por reformas, pelo cumprimento das promessas de 1813 e de 1815, uma Constituição e uma imprensa livre; as resoluções para os parlamentos, em alguns momentos, foram formuladas com bastante desrespeito, e as respostas mal-humoradas do rei exasperado tornaram o mal ainda maior. Nesse ínterim, as dificuldades financeiras do governo foram aumentando. Durante algum tempo, os abatimentos feitos sobre as verbas destinadas aos diferentes serviços públicos, as transações fraudulentas com o "Seehandlung" [N.T.: Banco do Estado da Prússia], um estabelecimento comercial que especulava e negociava por conta e risco do Estado, e há muito atuando como seu corretor de dinheiro, foram suficientes manter as aparências; o aumento das emissões de papel-moeda do Estado forneceu alguns recursos; e o segredo, no geral, tinha sido muito bem guardado. Mas todos esses artifícios logo se esgotaram. Houve outro plano empreendido: a criação de um banco, cujo capital seria fornecido em parte pelo Estado e em parte por acionistas privados; a direção principal pertenceria ao Estado, de forma a permitir ao Governo sacar grandes montantes dos fundos desse banco, e assim repetir as mesmas operações fraudulentas que já não fariam com o "Seehandlung". Mas, é claro, não havia capitalistas que entregassem seu dinheiro nessas condições; os estatutos do banco tiveram que ser alterados, e a propriedade dos acionistas asseguradas das usurpações do Tesouro, antes que quaisquer ações fossem subscritas. Assim, tendo falhado este plano, não restava senão tentar um empréstimo, se encontrassem capitalistas que emprestassem seu dinheiro sem exigir a permissão e garantia daquela misteriosa "futura Representação do Povo". Rothchild foi solicitado, e ele declarou que se o empréstimo fosse garantido por esta "Representação do Povo", ele assumiria a coisa a qualquer momento — caso contrário, ele não poderia ter nada a ver com a transação. Assim, cada esperança de obter o dinheiro tinha desaparecido, e não havia nenhuma possibilidade de escapar da fatal “Representação do Povo.” A recusa de Rothschild foi conhecida no outono de 1846, e em fevereiro do ano seguinte, o rei convocou todos os oito Parlamentos Provinciais para Berlim, formando um "Parlamento Unido". O trabalho desse Parlamento — estabelecido pela lei de 1820 — era, em caso de necessidade, votar empréstimos e aumentar impostos, mas além disso não tinha direitos. Sua voz sobre a legislação geral deveria ser meramente consultiva; deveria reunir-se, não em períodos fixos, mas sempre que o rei quisesse; e deveria discutir nada além do que o Governo desejasse apresentar. Naturalmente, os membros ficaram pouco satisfeitos com o papel que deveriam desempenhar. Eles repetiram os desejos que haviam enunciado quando se reuniam nas assembleias provinciais; as relações entre eles e o governo logo se tornaram azedas, e quando o empréstimo, que foi novamente declarado necessário para a construção de ferrovias, foi exigido deles, eles novamente se recusaram a concedê-lo. Essa votação encerrou brevemente a sua sessão. O rei, cada vez mais exasperado, dispensou-os com uma reprimenda, mas continuou sem dinheiro. E, de fato, ele tinha todos os motivos para se alarmar com sua posição, visto que a Liga Liberal, chefiada pelas classes médias, compreendendo grande parte da baixa nobreza, e todas as diferentes seções das ordens inferiores — a Liga Liberal estava determinada a ter o que queria. Em vão o rei havia declarado, no discurso de abertura, que nunca concederia uma constituição no sentido moderno da palavra; a Liga Liberal insistiu numa constituição representativa tão moderna, anti-feudal, com todas as suas consequências, liberdade de imprensa, julgamento por júri, etc. e antes que eles conseguissem, nem um centavo de dinheiro eles concederiam. Havia uma coisa evidente: que as coisas não podiam continuar por muito tempo dessa maneira, e que alguma das partes deveria ceder, ou que uma ruptura — uma luta sangrenta — deveria ocorrer. E as classes médias sabiam que estavam às vésperas de uma revolução, e se prepararam para ela. Eles procuravam obter por todos os meios possíveis o apoio da classe trabalhadora das cidades e do campesinato nos distritos agrícolas, e como se sabe, no final de 1847, não havia um único personagem político proeminente entre a burguesia que não se proclamasse "Socialista", a fim de garantir pra si a simpatia da classe proletária. Veremos esses "Socialistas" trabalhando aos poucos. Essa ânsia da burguesia dirigente em adotar, pelo menos a sinais exteriores do socialismo, foi causada por uma grande mudança que havia ocorrido nas classes trabalhadoras da Alemanha. Desde 1840 havia uma fração de trabalhadores alemães que, viajando pela França e Suíça, haviam absorvido mais ou menos as grosseiras noções socialistas ou comunistas então correntes entre os operários franceses. A crescente atenção dada a ideias semelhantes na França desde 1840 tornou o socialismo e o comunismo moda também na Alemanha, e já em 1843, todos os jornais fervilhavam com discussões de questões sociais. Uma escola de socialistas logo se formou na Alemanha, distinguindo-se mais pela obscuridade do que pela novidade de suas ideias; seus principais esforços consistiam na tradução das doutrinas fourieristas francesas, saint-simonianas e outras para a linguagem confusa da filosofia alemã. A escola comunista alemã, totalmente diferente dessa seita, foi formada mais ou menos na mesma época. Em 1844, ocorreram as Revoltas dos Tecelões da Silésia, seguidas pela insurreição dos impressores de chita de Praga. Essas revoltas, cruelmente reprimidas, revoltas de trabalhadores não contra o governo, mas contra seus patrões, criaram uma comoção profunda e deram um novo estímulo à propaganda socialista e comunista entre os trabalhadores. O mesmo aconteceu com as revoltas do pão durante o ano de fome de 1847. Em suma, da mesma maneira que a Oposição Constitucional reuniu em torno de sua bandeira a grande massa das classes proprietárias (com exceção dos grandes latifundiários feudais), também as classes trabalhadoras das cidades maiores buscavam sua emancipação nas doutrinas Socialista e Comunista, embora, sob as leis de imprensa então existentes, eles soubessem muito pouco sobre elas. Não se podia esperar que tivessem ideias muito definidas sobre o que queriam; eles sabiam apenas que o programa da burguesia constitucional não continha tudo o que eles queriam, e que seus desejos não estavam contidos no círculo constitucional de ideias. Não havia então nenhum partido republicano separado na Alemanha. As pessoas eram ou Monarquistas Constitucionais, ou grosso modo, explicitamente Socialistas ou Comunistas. Com tais elementos, a menor colisão deve ter causado uma grande revolução. Embora a alta nobreza e os oficiais civis e militares mais velhos fossem as únicas bases seguras do sistema existente; embora a baixa nobreza, as classes médias comerciais, as universidades, os mestres-escola de todos os graus e até mesmo parte das fileiras inferiores da burocracia e dos oficiais militares estivessem todos aliados contra o governo; embora por trás deles estivessem as massas insatisfeitas do campesinato e dos proletários das grandes cidades, apoiando, por enquanto, a Oposição Liberal, mas já murmurando palavras estranhas sobre tomar as coisas em suas próprias mãos; embora a burguesia estivesse pronta para derrubar o governo, e os proletários se preparassem para derrubar a burguesia por sua vez; esse governo seguiu obstinadamente em um curso que deve provocar uma colisão. A Alemanha estava, no início de 1848, às vésperas de uma revolução, e essa revolução certamente viria, mesmo que a Revolução Francesa de fevereiro não a tivesse apressado. Os efeitos que essa Revolução Parisiense teve sobre a Alemanha veremos em nosso próximo texto. LONDRES, setembro de 1851. NOTAS 1. “A Gazeta Renana” Esse jornal foi publicado em Colônia como órgão dos líderes liberais Hansemann e Camphausen. Marx contribuiu com certos artigos sobre a Assembleia Representativa, que criaram uma comoção tão grande, que a ele foi oferecida em 1842 — embora com apenas 21 anos de idade — a editoria do jornal. Ele aceitou a oferta e então começou sua longa luta com o governo prussiano. Claro que o jornal foi publicado sob a supervisão de um censor, mas ele, homem bom e fácil, foi irremediavelmente ludibriado pelo jovem incendiário. Assim, o governo enviou um segundo censor "especial" de Berlim, mas a dupla censura mostrou-se desigual à tarefa, e em 1843 o jornal foi suprimido.

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