A democracia não é o que parece – ou pelo menos não é uma questão de vontade
- Lígia Cerqueira Fernandes
- 23 de jan.
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Ligia Cerqueira Fernandes
Igor Dias Domingues de Souza
A “democracia” absurdista
Assistimos nos últimos anos o descontentamento legítimo com o decréscimo da qualidade de vida ser capitalizado pela extrema-direita sob a máscara da radicalidade, apresentando-a como uma suposta solução dos problemas de nosso tempo aos olhos de parte considerável da classe trabalhadora. Viciada no fracassado projeto de conciliação de classes como saída política para sanar os problemas cotidianos da população, o amplo campo que convencionou-se chamar de esquerda parece não ter a menor ideia ou mesmo interesse de fazer frente à oposição reacionária, apoiando-se numa defesa irrestrita da democracia ao invés de apresentar propostas dirigidas à insatisfação generalizada, para disputar à altura a consciência dos trabalhadores, demonstrando na prática seu compromisso e pertencimento à classe.
A democracia, entretanto, não é mais que uma ditadura da classe burguesa[i], ao menos não essa “democracia pura” que foi defendida por Kautsky na década de 1910 e que hoje parece ser o consenso hegemônico da esquerda no que diz respeito aos seus horizontes de expectativa. Democracia essa que permite que um presidente advindo das classes trabalhadoras e por elas eleito escamoteie a luta histórica das massas para rezar o credo do mercado e enganar o povo com a ilusão de “liberdade e igualdade”, ironicamente repetindo a desonestidade observada por Lenin nos opositores da revolução soviética[ii].
No contexto da guerra civil russa de 1917-1922 (segundo Lenin[iii]), os “democratas” diziam que os bolcheviques haviam prometido a paz, mas que haviam entregado a guerra ao realizar a revolução, falseando a conhecida realidade de que aquela guerra estava sendo imposta pelas potências imperialistas ao povo russo e seus interesses, sendo necessário dar cabo dela para efetivamente alcançar a paz, em contraste com a guerra imperialista da qual a revolução socialista tinha se empenhado em retirar a Rússia. Da mesma forma, alegavam que os bolcheviques haviam prometido a democracia e entregado a ditadura, sabendo, sobremaneira, que os sovietes deram aos trabalhadores russos uma efetiva democracia participativa nunca antes vista na Rússia.
Isso porque a democracia é, em última instância, uma ditadura de classe e aqui não falamos apenas da democracia burguesa, como bem demonstra, novamente, Lenin[iv]. Os defensores da “democracia pura” são perfeitos democratas desde que os interesses do capital sejam preservados; esse é o sentido da democracia em abstrato, a democracia burguesa. No momento em que os trabalhadores ousam pôr em prática uma democracia mais efetiva e exercer o tal “poder do povo”, ou mesmo dar cabo de seus interesses sob o peso do regime burguês, tornam-se “antidemocráticos”, “violentos”, “traidores”, enfim, párias na própria sociedade que sustentam com sua força de trabalho.
Nesse sentido, o progressismo abandonou internacionalmente a perspectiva do trabalho, como bem aponta Chasin. A democracia efetiva das massas sumiu do vocabulário político dos partidos da esquerda institucionalizada, “democracia” e “cidadania” entraram em seu lugar. Não estamos aqui falando que as liberdades democráticas não possuam nenhum valor, muito pelo contrário: é o melhor que podemos obter para garantir as condições de vida para nossa classe sob o domínio do capital (não esqueçamos a sanguinária ditadura empresarial-militar que assolou nosso país de 1964 a 1985). Entretanto, o custo do democratismo para o amplo campo da esquerda foi o de tornar-se impotente frente às insatisfações populares na última quadra histórica.
Em contraste, é a extrema-direita que vem hegemonizando as respostas às insatisfações crescentes, tendo como exemplo a vitória do Partido Burguês com a recente eleição de Trump nos EUA. Ainda mais, é ela que tem pautado o debate público, fazendo com que o campo chamado de esquerda institucional recue incansavelmente. A exceção tem ocorrido justamente nos embates diretos entre capital e trabalho, como no caso da pauta do fim da escala 6x1 no Brasil e nas recentes greves dos trabalhadores da Amazon e dos estivadores nos Estados Unidos (estes últimos realizando sua maior greve em 50 anos), que foram abandonados em larga medida pela maioria do “progressismo”, tendo, no caso brasileiro, sua expressão no governismo cego em que a crítica se torna declaração de inimizade.
É a extrema-direita, portanto, que está conseguindo dialogar com o radical-absurdismo desses tempos, mascarando a precariedade das relações de trabalho, a insuficiência dos salários, as condições degradantes de vida (acesso à saúde, à alimentação de qualidade, ao lazer) e, não menos importante e crucial, as consequências da crise climática. Respondem satisfatoriamente às ilusões tão absurdas quanto a realidade que as gesta, em que a descarada saudação nazista realizada pelo bilionário Elon Musk na posse de Donald Trump na última segunda-feira é saudada com o benefício da dúvida por parte de alguns historiadores, mídia hegemônica e Liga Antidifamação (ADL) – que desde 1913 luta contra o antissemitismo – ao mesmo tempo em que o maluco do foguete seguirá do Sieg Heil para o comando do Departamento de Eficiência Governamental no centro do império.
A saída tem sido colocar a responsabilidade da queda da taxa de lucros (muito embora a massa dos lucros nunca tenha estado tão alta) sob a responsabilidade do indivíduo, convencendo-o ideologicamente de que ele tem a capacidade, a liberdade e o dever de sozinho alcançar melhores condições de existência; sem se dar conta que eleva, em verdade, os patamares de acumulação de bilionários como Musk & cia., os patrocinadores, e agora figuras públicas declaradas, da extrema-direita internacional.
O banquete da deterioração ideológica é completo, servindo entrada, prato principal e sobremesa. O menu de alternativas é variado, mas, em verdade, resume-se a poucas propostas concretas apresentadas em diferentes roupagens. Oferece-se como acesso ao lazer a vida de influencers, um lifestyle que possa ser mostrado nas redes sociais, uma viagem a Balneário Camboriú, Orlando ou Dubai. Como melhora da condição de vida, faz-se apologia à falsa liberdade de jogar no Tigrinho e nas Bets – pandemia que afeta profundamente o Brasil – ou de vender fotos no Onlyfans.
Poderíamos aqui ficar horas debatendo extensamente o quão mesquinhas, sofridas, absurdas e degradantes são as soluções apresentadas para os trabalhadores, mas este não é o ponto mais relevante na presente discussão. O ponto central é que tais soluções, ainda que bizarras e grotescas, não só são tornadas convincentes como ainda dão conta de esconder os interesses mais espúrios por trás do remédio prescrito, um verdadeiro placebo, doce no início e amargo no final.
Nos Estados Unidos, Donald Trump se fez parecer para muitos uma opção viável e conquistou a estranha eleição americana seduzindo o voto popular, enquanto leva a cabo uma agenda econômica que aprofunda a crise climática (basta ver os incêndios na Califórnia), com incentivos à indústria do carvão mineral e do petróleo aprofundam o extrativismo americano, e propaga uma política internacional de terror e xenofobia, com a assinatura de decreto que colocaria fim à cidadania estadunidense como direito de nascença, o retorno de Cuba para a lista americana de “Estados terroristas” (conquista histórica alcançada somente no dia 14 deste mesmo mês) e com a suspensão das sansões contra colonos israelitas na Cisjordânia (tomando postura mais incisiva ao lado de Israel no genocídio palestino).
Seguindo a agenda da extrema-direita global, no Brasil, Nikolas Ferreira confunde propositadamente a população com estratégias de comunicação de massas – ora por meio de cortinas de fumaça, mascarando seus reais interesses políticos, ora jogando luz sobre contradições e problemas do governo para fazer-se de bom moço – como no recente vídeo publicado em suas redes sociais sobre a questão da ampliação do monitoramento do PIX. Ao atacar tal medida, proposta nas novas regras de fiscalização da Receita Federal, ele articula os limites políticos do (há muito capitulado) governo Lula, construindo uma falsa noção de que, diferente do governo petista, ele estaria ao lado dos trabalhadores informais e dos pequenos negócios. Aproveita-se da falta de tato governista que só fez perturbar a população com um anúncio desleixado, não se esforçando nem ao menos para explicar o alvo da medida e suas possíveis consequências.
Esse projeto de Bolsonaro pouco se preocupa com soluções efetivamente transformadoras das condições da classe trabalhadora, ao menos é o que demonstra seu histórico recente de votos e declarações na Câmara dos Deputados, onde esteve contra a proposta de imposto zero para alimentos da cesta básica e se posicionou contra o fim da escala 6x1, e se empenha em uma agenda de fundamentalismo religioso agressivo e truculento que quase sempre tem a comunidade LGBTQIA+ (especialmente as pessoas transexuais) na mira da violência. Sua estratégia é efetiva, inclusive garantindo rapidamente o recuo do governo com relação à uma norma técnica de fiscalização das movimentações financeiras, e o deixando tranquilo para zarpar para os Estados Unidos com a comitiva da oposição reacionária no intuito de dar cabo a uma agenda política, comicamente frustrada.
O preço do Pix para a “democracia pura”
O que a polêmica da suposta taxação do PIX escancara é, justamente, a incapacidade do governo Lula de dar conta das condições reais de deterioração da vida da classe trabalhadora e combater decisivamente o irracionalismo que assola a política brasileira (e já nos conduziu ao Governo de Bolsonaro) – ao ponto de levar rasteira justamente de falsários como Nikolas Ferreira a despeito do apoio que que recebeu de setores da classe para derrotar eleitoralmente o bolsonarismo. Sabemos que a Instrução Normativa revogada, no fim, pelo Governo, não planejava, a princípio, taxar as transações ocorridas em bancos digitais. É sabido também que algo bem semelhante a uma notificação, por parte de bancos tradicionais, acerca da ocorrência de transações (nesse caso, de transferências e gastos de cartão de crédito) já era feita antes. Entretanto, essas condições tornam-se quase que discussões meramente formais, uma vez que ainda que a Instrução Normativa visasse o aprimoramento do monitoramento das movimentações financeiras para captar supostas sonegações fiscais, a tentativa de empenhar-se em fiscalizar possíveis evasões fiscais de uma faixa de renda que movimenta essa quantia é, em si, uma escolha política materializada, devendo ser essa escolha o objeto principal de análise na querela do PIX.
Em outros termos, é possível que houvesse um acréscimo da receita (talvez advindo da captura de crimes fiscais e muito provavelmente das mais de 200 instituições financeiras, especialmente fintechs, que seguem sem a obrigação de declarar suas transações), mas essa medida teria um custo político e aqui está o ponto: como o Governo Lula escolheria colher o custo político de uma medida que influencia uma parcela da população que pouco tem a ver com as reais condições de exploração da vida humana? E se compra esse desgaste, como não compra o desgaste de conscientizar acerca da farsa do equilíbrio fiscal?
Se o aumento da receita serve como base para o aprimoramento de políticas públicas, como essas políticas públicas dariam conta de melhorar as condições reais das pessoas se a regra fiscal (ou Arcabouço Fiscal) elaborado pelo executivo é incompatível, por exemplo, com pisos constitucionais destinados para Saúde e Educação? Indo além, a questão mostra como é plenamente possível que o governo volte atrás em suas medidas caso seja do seu interesse. Como pode então recuar na questão do PIX e não em diversas outras medidas de caráter negativo, como não recuou em sua proposta de exploração de petróleo na Foz do Amazonas mesmo após o Ibama ter rejeitado o projeto em outubro do ano passado por não apresentar alternativa viável para mitigar a perda de biodiversidade no caso de algum acidente, numa postura similar à de Trump e seu incentivo à indústria extrativista que contrasta com sua posição de liderança na COP-30, a ser realizada em Belém no mês de novembro?
Assim, o problema não é de ordem de comunicação governamental ou moral, como se a discussão fosse somente sobre como e porque as pessoas seriam “atraídas para a mentira”, como os maravilhados democratas de esquerda tendem a se questionar diariamente – quase como um recriar do discurso de que o que embasava a eleição de Bolsonaro era um ressentimento ou, em termos quase que psicanalíticos, uma pulsão de morte coletiva. Nos últimos anos vimos justificativas psicologizantes aos montes para explicar a razão do Bolsonarismo ter a capilaridade que tem, entretanto, como disse em março passado o filósofo e psicanalista Vladimir Safatle: a questão é mais real que o ressentimento.
O debate público sobre a “questão PIX” ainda teve a participação daqueles que são “somente liberais”, os que não são propriamente o Nikolas Ferreira e que tamparam o nariz para surfarem na onda de Bolsonaro. Esses, por sua vez, dizem que o governo petista só faz pensar em arrecadar – criticam a tentativa de financiar políticas públicas que possuem seus méritos de atenuar, minimamente, as condições degradantes a que muitos brasileiros são expostos, como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida. Para esse grupo, pouca diferença faz se o asfixiamento do SUS ocorra caso o arcabouço fiscal condene à míngua essa que é uma das poucas conquistas históricas no Brasil que se mantém de pé – afinal de contas, eles são pagos por meios de comunicação que lucram com as verbas publicitárias de grandes planos de saúde.
Aqui está a quase ironia do destino: se Haddad rezou a cartilha do mercado[v] e ainda assim foi jogado aos leões, qual o sentido político de bancar o bom moço aos olhos da Faria Lima?
Não adianta Lula bradar aos quatro ventos que é o mais democrata da turma, isto é, mais democrata em relação a Bolsonaro. Isso pode até ter rendido a ele uma vitória eleitoral em 2022, mas não será suficiente contra o abandono de sua base política em benefício da democracia como valor universal, ou da unidade como valor estratégico como disse Coutinho. Ironicamente, quanto mais caminha para obedecer a sanha dos sanguessugas burocratas no santuário do Deus Mercado, mais perto fica da desaprovação que atingiu Bolsonaro no peito e premiou o próprio Lula com uma volta à presidência. O Fortuna!
Não há nada pior para a esquerda que “falhar” aos olhos da classe trabalhadora. O governo Lula III tem sido fiel escudeiro do limitado horizonte democrático desta esquerda institucional cadavérica, pondo de lado os interesses concretos dos trabalhadores em prol da governabilidade, da mediação com o capital, e mascarando as derrotas com a ilusão de “igualdade e liberdade” democráticas. Dessa sequência de derrotas e recuos, concomitantes ao fortalecimento da extrema-direita potencializado por essa democracia e por essa esquerda bunda mole, não é possível prever quando a classe se recuperará ideológica e organizativamente.
Essa “democracia pura” que abarca tanto Lula quanto Trump é uma ilusão formalista defendida acriticamente para a manutenção das instituições, como se pairasse no reino da politicidade e fizesse menção somente à segurança de ritos político-jurídicos burocráticos, sem sequer abarcar as condições efetivas de participação popular no suposto regime do poder do povo. Como Lula provará que é democrata para além de manifestar sua vontade de sê-lo se está empenhado em demolir as poucas conquistas alcançadas nos últimos anos?
Lula pode querer ser democrata – e no seu conceito aburguesado de democracia, ou em comparação ao absurdo que foram os anos de governo Bolsonaro e às perspectivas terríveis que se aproximam, talvez realmente seja – mas, mais uma vez, a realidade parece exigir muito mais de sua prática política do que está disposto a se comprometer pela classe trabalhadora. Sua classe de origem necessita de uma efetiva e verdadeira democracia e não da panaceia pequeno-burguesa que o amplo campo progressista tem colocado à frente da perspectiva do trabalho em sua atuação política.
Frente aos dilemas, a única solução possível parece ser responder à altura das condições degradantes colocadas, já que a verdadeira democracia reside precisamente na ação das massas populares expressando seus próprios desejos cada vez mais vigorosamente e com maior convicção. A democracia, como já apontamos, é uma ditadura de classe; a verdadeira democracia também e se expressa na governança concreta das massas: é o socialismo, é a ditadura do proletariado.
[i] Para uma boa tradução em português, ver: LENIN, V. I. Sobre a “Democracia” e a Ditadura. In: Democracia e Luta de Classes: textos escolhidos. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 19-24.
[ii] LENIN, V. I. Como enganar o povo com as palavras de ordem da Igualdade e da Liberdade. In: Democracia e Luta de Classes: textos escolhidos. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 25-62.
[iii] Como enganar o povo com as palavras de ordem da Igualdade e da Liberdade. Op. Cit.
[iv] Sobre a “Democracia” e a Ditadura. Op. Cit.
[v] Chamam atenção os recentes ataques ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), ao seguro-desemprego, ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), ao abono salarial, e à política de valorização do salário mínimo.




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