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Além do romance: a família, o casamento e o destino social em “A mulher de trinta anos”

  • Foto do escritor: Wesley Sousa
    Wesley Sousa
  • 14 de jan.
  • 16 min de leitura

Atualizado: 24 de abr.




Por Wesley Sousa[1]

 

“A minha virtude repousa sobre princípios determinados e fixos. Saberei ter uma vida irrepreensível, mas, deixe-me viver” (BALZAC, in: A mulher de trinta anos [La Femme de trente ans]).

 

Advertência do autor: o texto consiste em alguns comentários mais ou menos esparsos sobre o romance “A mulher de trinta anos”, escrito por Honoré de Balzac. A hipótese de leitura é que este romance de folhetim publicado à época consiste, entre outras coisas, em expor o destino social do casamento, como aquela que se realiza na sociedade civil como elemento responsabilidade, mesmo à revelia das intenções de seu próprio autor: funciona como apêndice de uma instituição necessária e perene do capitalismo. Assim, no decorrer do texto, o leitor verá que não se trata propriamente de uma “crítica literária” no sentido estrito e formal de uma obra literária. Aliás, seria um trabalho exaustivo de elaboração, que não é a intenção. Tal trabalho teórico ultrapassaria o escopo pretendido. Trabalhos dessa magnitude, como se averígua em trabalhos competentes de nossa tradição crítica da literatura brasileira, são vistos como os de Luiz Costa Lima, Alfredo Bosi e Walnice Nogueira Galvão, para mencionar alguns nomes.

 

 

Um romance inacabado?

 

A hipótese de saída deste texto gravita na interpretação de que o romance “A mulher de trinta anos”, escrito por Honoré de Balzac (1799-1850), constitui numa construção estética e social diante da figuração do casamento. Mas interessa algo mais simples: pretendo uma argumentação mais rápida: destacar alguns aspectos do livro que recentrem, não apenas o aspecto estilístico, mas o modo como a composição do escritor nela adquire, em seu gérmen, narrações da vida social – as cenas privadas. Ao centrar nos elementos que sobressaltam ao ideal de análise literária, o modo como as personagens ali representam, em seus modos e nas dinâmicas das ações, as características de uma sociedade de época e as movimentações de classes sociais expostas. Com isso, Balzac oferece, pois, um quadro dinâmico e profundo da sociedade de sua época.


O romance está articulado, na parte da “Cenas da vida privada”, no que se refere à coleção imensa de “A Comédia Humana” – obra completa que contém cerca de 85 títulos. O romance em questão é composto por seis pequenas partes (escritas em momentos difusos em jornais locais), concluído em 1842 com uma nota específica: “Mesma história”. Observamos que o livro começa em 1813 (período Napoleônico) e termina em 1844. Como o autor deixa a entender ao longo da narrativa, no contexto de diversas mudanças históricas, as cenas sociopolíticas fornecem ao enredo a dinâmica própria, sem que o autor precisasse “criar” um cenário. Aliás, os cenários que aclimatam o enlevo da trama, em que as personagens se encaixem nela como peças moventes das ações, aparecem também, como comentou György Lukács, no ensaio “Narrar ou descrever?” (Lukács, 1968), não como figuras decorativas, mas como atuantes. Neste sentido, não é corrosiva a dissonância cronológica citada.


Basta, porém, um olhar atento a respeito personagem Julie, o eixo pelo qual a história se desenrola. A não-linearidade do enredo não é o central da composição de Balzac. Aos leitores e leitoras, o enredo é bem conhecido: ainda adolescente, apaixonada por Arthur d’Aglemont – um coronel do exército napoleônico –, Julie contraria a vontade do pai e decide se casar.[2] Rapidamente, o casal tem uma filha, mas Julie percebe que sua filha foi apenas concessão genitora; e acaba por sentir-se presa a uma vida conjugal apenas aparente e à maternidade. A filha Hélène, a mais velha, ama o pai, e não tem o amor da mãe. A menina percebe a indiferença, uma indiferença que repõe a infelicidade da personagem, adiante num quase monólogo com o Padre (representante do oficialato do Antigo Regime): a conclusão da confissão é que a maternidade é exclusiva às mulheres.


Podemos caracterizar de modo breve, como sugerem Corrêa, Hess e Rosa, que a “literatura é sempre mais rica do que a reprodução pura e simples da realidade”. Segundo os autores, um grande escritor explicita “elementos da vida social [que] são inseridos no texto literário pelo trabalho do escritor, que reduz as contradições sociais à estrutura do romance, do conto ou do poema, para, assim, ampliar e tornar visível o que está diluído na vida social” (Corrêa, Hess, Rosa, 2019, p. 23). Esse ponto de partida fornece o “caráter realista da criação literária”. Assim, o pressuposto dos autores é de que realismo não seria um modelo de literatura ou das artes, mas uma atitude criativa, um enlace artístico, que une a criação e o criador da obra; este será, pois, ao que se compele neste ensaio em tela, o realismo que se vê em Balzac.


Este desenrolar longe de ser um “romance inacabado”, como pode ser dito por aqueles ou aquelas que, ao lerem a obra, perceberem certas “desconexões” (é certo que Balzac, pela sua insana labuta de trabalho, não revisou a obra antes de publicá-la); ela deve ser lida como uma passagem de vida, de um ponto ao outro, da vida da mulher. Uma vida feminina, no caso, embora na cena do século XIX na França, traz um diagnóstico histórico de momentos e de experiências. Como sublinha novamente o filósofo húngaro György Lukács, ao se referir a Ilusões Perdidas – uma outra importante obra do autor francês –, assevera desta maneira: “Seu olhar penetra camadas mais profundas, ele enfrenta os problemas mais profundos. Percebe que o fim heroico da evolução burguesa na França é, ao mesmo tempo, o início da evolução do capitalismo francês” (Lukács, 1968, p. 103).


Ademais, esse desenvolvimento se mostra na forma que as personagens encorpam os movimentos históricos e nas cenas narradas: o velho e o novo formam a dialética do romance num presente próprio. Neste caso, atentemos ao romance aqui trabalhado.

 

Um ponto de dialética: o casamento burguês

 

No interessante estudo da professora de literatura comparada e literatura francesa, a estadunidense Sandy Petrey (cf. Petrey, 1988) redigiu uma interessante pesquisa que relaciona o realismo balzaquiano (na obra literária de O Coronel Chabert) na França com os escritos de Karl Marx (no livro O 18 de Brumário de Luís Bonaparte). A autora defende a tese de que “Balzac e Marx estão em perfeita concordância com a exata descrição da existência social requerer acordo de igual importância de como o material pode se tornar sem sentido e como o significado pode ser material” (Petrey, 1988, p. 461, tradução nossa). Esta concordância merece destaque. Não apenas por Marx ser um admirador e leitor conhecido da literatura de Balzac, mas por meio da arte literária, no qual os problemas e dilemas de mundo podem ser trazidos como são, revela sua grandeza com a universalidade dos dilemas humanos. As cenas parisienses retratadas na obra balzaquiana vão além do narrar a vida social, os costumes, as mudanças políticas e econômicas da França como algo decorativo.


Mais do que isso, Balzac era um tipo de conservador no aspecto político. Entretanto, ao estar atento ao mundo francês, às transformações e às dinâmicas que ali observava e vivia, pode desvelar, por meio de sua crítica, a vida dos amores “livres”, sob o casamento como forma de contrato jurídico e modelo familiar da vida humana no tempo presente. A crítica dos costumes (bem como a petulância das relações capitalistas), fora causadora de repugnância em Balzac. Isso que lhe possibilitou a seguinte problemática que envolve a personagem protagonista do romance: Julie era o momento-personagem que se dirigia às mulheres que correm atrás das paixões na nova vida burguesa “concedida”. Porém, com essa sensação de insaciedade, acabavam sofrendo as consequências dos seus atos. Ele observa atentamente este traço tanto psíquico quanto social no feminino.


No entanto, a obra acabou, por assim dizer, o “traindo”. Em A mulher de trinta anos, a passagem de Julie à Hèléne aponta que a infelicidade da mãe culminou numa culpa destinada à fuga de sua filha da realidade encarcerada (o que se pode ver na quinta parte). Tal fuga, embora relacionada ao princípio da escolha, não se descolou da vivência fortuita que Julie carregou para si. A sua filha mais velha, em um desabafo ao pai, quando veio em sua procura após fugir com um marinheiro:


Os meus desejos são mesmos excedidos; todos os meus caprichos, satisfeitos. Enfim, reino sob o mar, e sou obedecida como pode ser uma soberana. Ah! Feliz! Feliz não é a palavra que possa exprimir minha ventura. Pertence-me a parte de todas as mulheres! Sentir um amor, uma dedicação sem limites por aquele que se ama, e encontrar no seu coração um infinito sentimento onde a alma duma mulher se perde, e sempre! Diga-me, há ventura melhor? [...] A linguagem humana é insuficiente para exprimir uma felicidade celeste (Balzac, 1996, p. 130).


Coloco em perspectiva a seguinte ideia: a novidade amorosa que a sociedade burguesa exposta por Balzac na “Comédia Humana”, e em especial, no romance em tela, se refere na evidenciação das novas relações conjugais, em que o amor já faz parte da própria individuação e da capacidade de escolha individual de seus agentes. É característico que, em dado momento – ou melhor, anos antes – a tia do esposo de Julie, a marquesa Listomère – uma senhora que, encarnada nos modos do Antigo Regime, venha a “consolar” a sobrinha de sua angústia pós-casamento. Aqui essa cena será muito distinta com o desabafo de Hèlene ao pai. O general é simples e amoroso à filha, e temeu perdê-la; Julie apenas é receptiva e permissível à senhora marquesa. A narrativa de Balzac consiste, então, em explicitar a personalidade condescendente da velha tia do esposo à personagem Julie: “A tia não chorou, porque a Revolução deixou poucas lágrimas nos olhos das mulheres da antiga monarquia” (Balzac, 1996, p. 34).


Outro ponto a ser notado é que, enquanto no âmbito político a Monarquia dos Bourbouns regressava ao domínio institucional no país, Balzac notando esse “regresso” – um regresso no sentido de retorno: “[...] a pobre Julie sofre um profundo desgosto que muito devia influir na vida: perdeu a marquesa de Listomère Landou”. Em outras palavras, a morte da velha tia significava, objetivamente, “a pessoa a quem a idade dava o direito de esclarecer Vitor, a única que, por conselhos sensatos, poder tomar mais perfeito o acordo entre a mulher e o marido, essa pessoa morrer. [...] Não tinha mais ninguém entre ela e o marido [...]” (Balzac, 1996, p. 37). Com isso, as novas normas morais, as intenções subjetivas dos afetos e das afeições, agora expostas na mediação da velha tia, deixaram enterradas junto a ela, os “velhos costumes”; a angústia e a incerteza de um amor desencantado, por outro lado, era patente.


Destaco que, se partir do pressuposto lukacsiano, a demarcação do realismo balzaquiano atravessa, até o final, com uma velocidade intensa, a dinâmica social existente emergente ao redor de Julie. Em seu diálogo com o Padre, Julie percebe sua indiferença religiosa para as explicações e justificativas do “destino” que escolheu; mais do que isso, entende-se um contraste entre “laicidade da relação matrimonial” oposta à exasperação cristã da união conjugal.


E, portanto, sobrevém a questão que acerca do que está em jogo para os dias de hoje: seria a tipologia social das representações e dos “papeis de gênero” (se assim podemos dizê-lo) colocados ali? Assim, num possível enquadramento, é observável que os papeis de gênero deveriam servir como ponto de chegada na crítica, ou seja, a subsunção de duas pessoas num casamento que está ligada à maneira de como a sociedade condiciona a relação amorosa, sob o prisma da cisão entre o público e o privado. Mas a discussão sobre o assunto, porém, excederia este espaço e o objetivo inicial do texto.


Entretanto, para o que interessa, a família, isto é, a base essencial assentada na sociedade civil, temos que a monogamia é o seu elemento objetivo, o que independe da crise da instituição, seja nos adultérios, seja nas “escolhas” afetivas no limiar do casamento. Antes disso, não é possível inferir, sociologicamente, que a “não-monogamia” (se é que isso tenha alguma base objetiva hoje) também seja uma “escolha” subjetiva, pelo mesmo motivo que a monogamia não seria. A questão é mais sutil. Mais do que isso, interessa notar, de Friedrich Engels, quando afirma em A origem da família, da propriedade privada e do Estado:


A indissolubilidade do matrimônio é consequência, em parte, das condições econômicas que engendraram a monogamia e, em parte, uma tradição da época em que, mal compreendida ainda, a vinculação dessas condições econômicas com a monogamia foi exagerada pela religião. Atualmente, já está fendida por mil lados. Se o matrimônio baseado no amor é o único moral, só pode ser moral o matrimônio onde o amor existe (ENGELS, 2012, p. 107).


Pois bem, o argumento de Engels aponta para dois problemas existentes: o primeiro é a historicidade pela qual a monogamia surge (por isso, é histórico, e não “escolha” deliberada); o segundo é que o amor autêntico é antitético ao tipo de existência de um matrimônio no qual o amor seja insignificante (e daí a relevância da subjetividade como par relacional à individualidade moderna). Mas há, por outro lado, outra ambiguidade: o mesmo o “amor romântico”, que cada vez mais consolidou a individuação do ser social, na sua escolha pessoal de relação, só pode existir onde se tem uma base objetiva de deliberação, isto é, moderna. Por isso, arriscaria dizer que o assim chamado pós-modernismo[3] (a respeito de uma época histórica) estaria estritamente vinculado a uma cultura de mercado, para se valer de Fredric Jameson[4], a qual nossa subjetividade e os afetos se tornaram cada vez mais mercantilizáveis. Em outros termos, na monogamia, o afeto individual pode se sobrepor às dinâmicas comunitárias de relações (a capacidade de deliberação individual); para voltar às palavras de Engels, carreguem aí consigo suas contradições.


Passada esta leve digressão e voltando ao romance, ao observarmos de perto o título, que marca apenas um ponto culminante da vida da mulher, ele tem como foco a sua maturidade. Temos que a maturidade não são os “trinta anos” fixos de Julie, mas refere-se às capacidades de experiências adquiridas e acumulativas, de novos e melhores atributos que só a idade pode fornecer, reverberando também uma condição social que tais elementos tornam-se proeminentes. Com isso, mulheres mais maduras apresentam-se mais interessantes do que as mais novas, pelo fato evidente destas – as mais jovens – estarem mais suscetíveis às escolhas irrefletidas, ou tomadas por momentos de grande euforia. A obra ao trazer a vida de Julie desde nova até sua maturidade marca esse aspecto de transitoriedade das ações, emoções, etc. que a história é constituída.


Nas mulheres novas da idade da marquesa, essa primeira dor é a mais marcante de todas e é sempre causada pelo mesmo fato. A mulher, e principalmente a mulher nova, tão grande pela alma como pela beleza, nunca deixa de se consagrar à vida para a qual a natureza, o sentimento e a sociedade a impelem com violência. [...] De resto, esses sentimentos nunca se confiam; para se consolar uma mulher, é mister saber advinha-los; porque, sempre amarga e religiosamente sentidos, permanecem na alma, como uma avalanche que, se precipitando sobre uma encosta, esmaga o que encontra até achar um lugar (Balzac, 1996, p. 64).


Segundo o escritor, a mulher madura é vista com bons olhos, pois supera a ingenuidade da mocidade em cuja condição é passageira. A história de Julie não é somente a história de uma pequena-burguesa em ascensão (conhecida como “marquesa”), não é uma narrativa frustrada de uma mulher que se decepciona com um casamento “escolhido” por ela, que suas lamúrias seriam, portanto, individualistas e mesquinhas. Na verdade, o que está em jogo na obra de Balzac, segundo penso, é que esses elementos serão efeitos, não suas causas reais. No romance, a personagem quase sucumbe à paixão por outro homem, Lord Arthur Grenville, mas a relação não prospera: o dever do casamento a impede de concretizá-la. Assim: “Não me quero prostituir a meus olhos nem aos olhos do mundo; se não serei mais ao sr. d’Aiglemont, nem de nenhum outro” (Balzac, 1996, p. 52).


É notável que no seu amante inicial vê-se que a conveniência das relações extraconjugais, por parte das mulheres, era apenas uma resposta imediata às traições dos homens durante o casamento até então normalizadas; e no romance, Balzac efetua este contraste, no final, buscando sintetizar os desfechos pelos quais a velha Julie não pode dar-se conta. Em suas palavras:


O desgosto será tão mortal como poderia ser a terrível doença que me curou. Não me julgo culpada. Não, os sentimentos que concebi por si são irresistíveis, eternos, mas bem involuntários, e eu quero me conservar virtuosa. Contudo, serei ao mesmo tempo fiel à minha consciência de esposa. Aos meus deveres de mãe e aos votos de do meu coração (Balzac, 1996, 52).


Com isso, gradualmente a infelicidade de Julie se tornaria uma doença física: a tristeza que a leva a cair em profunda depressão. O decaimento físico de Julie é um sinal de que as relações humanas estão descaracterizadas por sua natureza. Alienação, que atinge ambos sexos; o aviltamento da felicidade comunitária atinge e remodela a subjetividade. O amor, o elo entre dois indivíduos, se tornaria um sentimento frívolo e banal.


O diagnóstico da psicologia humana das personagens como elemento de ação delas, em que a trama parece tomar caminhos próprios, conforme Lukács expõe em “O Romance Histórico”, pode ser colocado da seguinte maneira: ao fazer um paralelo comparativo de Balzac com Walter Scott, argumenta o autor que Balzac vai muito além do escritor inglês, pois o escritor francês é quem “desenvolveu da maneira mais consciente o impulso que Walter Scott deu ao romance, criando assim um tipo superior e até então inédito de romance realista” (Lukács, 2011, p 106). O impulso consciente, para Lukács, é a capacidade de que o escritor teve de desvelar a psicologia das personagens, de tal modo que elas se autonomizariam na trama e, assim, o escritor seria um narrador atento aos desenvolvimentos imanentes, sem imputar resultados ou desfechos previamente estabelecidos para coadunar com a ideação anterior do autor.


Este é um exemplo típico na trama. Seu desenrolar adota um sentido histórico, e não lógico. Quando percebemos que no seu decorrer as transformações francesas no cenário político são trazidas à baila como indissociáveis das movimentações internas das personagens, o romance de Balzac não se trata de um romance de folhetim, mas consiste expor o destino social da instituição do casamento – seja como ele se realiza (forma histórica de organização comunitária recente) –, atravessando uma crítica ao convencionalismo burguês.

 

Considerações finais

 

Atentemos a alguns pontos. Menciono três. 1) É possível partir de um pressuposto de que o romance de Balzac seja uma obra que coloca a figura feminina, censurada à época, sob um prisma de compreensão, sem quaisquer julgamentos morais? 2) Também podemos entender o romance, cujo enredo seria a compreensão dialética entre o amor e o casamento na sociedade burguesa, na figura de madura Julie, passando por Hèléne e a jovem Moïna?[5] 3) O casamento, neste aspecto, pode ser considerado uma degradação moral?


Para esboçar algumas saídas às perguntas acima, coloco alguns pontos preliminares. Para isso, centralizo um ponto de cada vez e ofereço, ao final, não uma conclusão, mas direcionamentos. No primeiro ponto, destaco que a moralidade do romance se expressa quando, no decorrer da trama, as frustrações dos romances extraconjugais de Julie nunca são colocadas como empecilhos à felicidade, mas a infelicidade é que se torna inviável às tentativas amorosas suas.


No segundo ponto, seu marido nunca se opõe às vontades da esposa, o que, por si só, longe de ser algum critério derradeiro, passa a ser notado que ele não tem poder moral para mudar as condições existentes de Julie. O general passa o romance inteiro como coadjuvante da trama. Seu papel secundário dará a sustentação para a infeliz concatenação do final: as perdas dos filhos e filhas, e a esposa que se vê fustigada pela vida que leva. Já sua vida de burocrata do Estado, enfadonha e medíocre, apenas é compensada à um amor fraterno à filha mais velha como alívio sentimental que lhe deu algum motivo para agir. De fato, não se trata de moralizar as questões sociais, mas de identificar, como realiza Balzac, de como as relações sociais são moralizadas.


Por outro lado, a marquesa Julie, aos 30 anos, “ápice poético da vida das mulheres”, teve a oportunidade de conhecer o diplomata Charles de Vendesesse; e ao se entregar intensamente a esta nova paixão, o romance caminha para um acontecimento e circunstâncias que pouco a pouco desenharão um destino trágico da vida burguesa: a reificação das relações humanas. A reificação é aqui um fenômeno em que a materialidade da vida é determinante para o modo de viver, em que as pessoas não se relacionam como entidades próprias, mas por coisas, e as coisas são, na trama de Balzac, um destino confinado na degradação da autenticidade vital e sentimental das personagens. Nisso, o casamento burguês desempenhará o papel de reificação do amor como escolha sentimental e consciente. Na questão, a mais interessante aqui destacar, por fim, a seguinte passagem:


A marquesa viu certamente um presságio do céu no respeito que o destino parecia ter pela filha preferida, e apenas umas fracas recordações dos filhos que a morte lhe arrebatara ao sabor dos seus caprichos, e que conservava no fundo de sua alma, como se esses túmulos erigidos num campo de batalha, que quase desaparecem sob as flores do campo (Balzac, 1996, p. 139).


Há uma problemática, embora no livro não seja tão central – o título –, o qual se tem o circuito de movimentos que estão em volta: a obra, temos o que ficava conhecida a expressão “a mulher balzaquiana”. Foi na maturidade que Julie, Hélène ou Moïne revelaram o que são de fato. Essas revelações, entre os desejos consolidados, anseios e as paixões vividas, não são posturas arbitrárias, mas condicionantes. Fica claro que Balzac não moraliza seu romance, mas percebe que as moralidades são uma espécie de jogo de forças, pelas quais as personagens recompõem suas características, ainda que elas sejam tonificadas pela frieza dos atos. Assim, a “mulher de trinta anos” é aquela em que as escolhas amorosas e as uniões conjugais ultrapassariam as normas sociais das relações imperfeitas e instituídas.[6]


Para finalizar, faço um adendo final de deslocamento no texto: se a um crítico literário possa importar o que está em jogo na tessitura social romanesca, então é cabível dizer que um estudo materialista do romance considerará os elementos proeminentes nas investigações literárias, seja elas quais forem (um estudo, qual seja, que foque na internalidade construtiva da obra, e menos na tipificação exterior delas).

 

Referências


BALZAC, Honoré. A mulher de trinta anos. Tradução Marques Rebelo. 5° edição. Ediouro, 1996.


CORRÊA, Ana Laura dos Reis; HESS, Bernard Herman; ROSA, Daniele dos Santos (orgs.). Caderno de literatura: um percurso de formação em literatura na educação do campo. 1° edição. São Paulo: Expressão Popular, 2019.


EAGLETON, Terry. Marxism and critical literary. (With a new preface by the author) London e New York: Routledge, 2003.


EAGLETON, Terry. The Illusions of Postmodernism. Tradução da primeira edição por Blackwell Publishers: Oxford; Inglaterra, 1996 (Versão Digital).


ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução Leandro Konder. 3° edição. São Paulo: Expressão Popular, 2012.


JAMESON, Fredric. Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism. Duke University Press, 1989.


LUKÁCS, György. “Balzac: Les Illusions Perdues”. In: Ensaios sobre literatura. Organização e apresentação Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 101-121.


LUKÁCS, György. “Narrar ou descrever?”. In: Ensaios sobre literatura. Organização e apresentação Leandro Konder. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, 47-99.


LUKÁCS, György. O Romance histórico. 1° edição. Tradução Rubens Enderle. Apresentação Arlenice Silva. São Paulo: Boitempo, 2011.


PETREY, Sandy. “The Reality of Representation: Between Marx and Balzac”. Critical Inquiry, v. 14, n. 3, 1988, p. 448-468.


[1] Doutorando em Filosofia pela UFMG.

[2] Em uma das passagens que mostra os diálogos tensos entre o velho pai e a filha: “Pois bem, minha filha, escuta-me. As moças sonham muitas vezes com uns seres nobres e encantadores, criaturas perfeitamente ideais, e assim forjam umas quiméricas fantasias acerca dos homens, dos sentimentos e do mundo; depois, elas atribuem inocentemente a um caráter as perfeições com que sonharam, e nele confiam; elas amam no homem de sua escolha esse ente imaginário; porém, mais tarde, quando já não podem fugir à desgraça, a aparência enganadora que elas embelezaram, o seu primeiro ídolo, enfim, muda-se num esqueleto odioso” (Balzac, 1996, p. 21).

[3] Aqui me subsidio da teoria de Terry Eagleton: “The Illusions of Postmodernism” (1996).

[4] JAMESON, Fredric. Postmodernism, or The Cultural Logic of Late Capitalism. Duke University Press, 1989.

[5] “A situação desta mãe compreender-se-á explicando a da filha” (Balzac, 1996, p. 143).

[6] Convém advertir também o duplo aspecto da produção artística/literária aqui entendida: “Podemos ver a literatura como um texto, mas podemos também ver como uma atividade social, uma forma de produção social e econômica que existe ao lado de outras formas interrelacionadas com elas” (EAGLETON, 2003, p. 56, tradução nossa).

 
 
 

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