Crítica no movimento operário - Rosa Luxemburgo
- Murphy Stay
- 6 de nov. de 2024
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Atualizado: 6 de fev.

Fonte: Fundação Rosa Luxemburgo - < https://frl.rosalux.org.br/critica-no-movimento-operario1/ >.
Tradução: Kristina Michahelles.
Revisão e Nota de abertura: Wesley Sousa.
Nota Introdutória
Em seu pequeno texto, a teórica e revolucionária polonesa coloca em evidência um assunto central para a esquerda. O fundamento da acumulação teórica e organização se passa pela liberdade de crítica dentro e fora destas organizações que se pretendem revolucionárias. Luxemburgo, usando de exemplos e casos práticos, mostra como o dogmatismo e a hierarquização partidária sufocam o próprio movimento socialista, em suas pretensões. O texto, malgrado disparidade temporal e conjuntural que está para nós hoje, mostra-nos o central: só se pode haver um avanço na consciência política quando a voz da crítica estiver aberta, sobretudo na construção de organizações de base marxista. Claro que hoje muitas mediações precisam ser feitas com base na letra de Luxemburgo, mas seu espírito político é relevante para nosso tempo.
No caso brasileiro, no início dos 1930, surgiram condições objetivas e subjetivas para o desenvolvimento do marxismo (enquanto práxis) no Brasil. O texto de base, então, o Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil” é um dos exemplos desta possibilidade histórica que buscou-se efetivar enquanto acumulação crítica e teórica. Mas, ele também indica os limites ao pleno desenvolvimento do marxismo como teoria e práxis, seja na esfera da sociedade seja no âmbito da esquerda brasileira, devido justamente ao fechamento do horizonte da liberdade de crítica no interior das organizações, devido à burocracia hodierna.
Para situar o caso brasileiro, de modo rápido: em 1930, Mário Pedrosa (1900-1982) e Lívio Xavier (1900- 1988) publicaram um ensaio, que viria a se tornar a primeira contribuição marxista para o estudo da história do modo de produção capitalista em nossa terra, ou seja, trata-se do ensaio Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil, publicado no n. 6 do jornal A Luta de Classe. Texto central em discussões internas do grupo ao qual Pedrosa e Lívio pertenceram, a Oposição de Esquerda brasileira; certamente, tornou-se uma das bases do processo de amadurecimento de análises marxistas ulteriores da realidade brasileira. De lá até nossos dias, muita coisa se passou na história brasileira e do marxismo…
Enfim, sem estender demais, é importante ressaltar, que sem a liberdade de crítica, seja no âmbito partidário brasileiro, seja no aspecto da produção intelectual acadêmica ou militante dos setores da classe (em seus diversos campos), tal “separação” revela que não pode haver espaço para autoglorificação no “movimento comunista”, se pautando pela fé cega na estrutura organizativa ou práxis de campo. Seria como se o que existe fosse adequado à ideia de que qualquer concessão aos trabalhadores e oprimidos fosse uma “vitória do trabalho”, revelando aqui a miséria da teoria e sua mistificação. Com isso, a subordinação da explicação dos processos reais às necessidades políticas imediatas conduz ao dogmatismo teórico, eliminando a liberdade de crítica, tal qual escreve Luxemburgo neste texto de 1909. ***
Crítica no movimento operário Rosa Luxemburgo
“As revoluções burguesas como as do século XVIII precipitam-se rapidamente de sucesso em sucesso, um efeito dramático é suplantado pelo próximo, pessoas e coisas parecem refulgir como brilhantes, respira-se diariamente o êxtase; porém, elas têm vida curta, logo atingem o seu ponto alto e uma longa ressaca toma conta da sociedade antes que, novamente sóbria, aprenda a apropriar-se dos resultados do seu período impetuoso e combativo.
Em contrapartida, as revoluções proletárias como as do século XIX encontram-se em constante autocrítica, interrompem continuamente a sua própria marcha, retornam ao que aparentemente conseguiram realizar para começar tudo de novo, zombam de modo cruel e minucioso de todas as meias medidas, das debilidades e dos aspectos deploráveis das suas primeiras tentativas, parecem jogar o seu adversário por terra somente para que ele sugue dela novas forças e se reerga diante delas em proporções ainda mais gigantescas, recuam repetidamente ante a enormidade ainda difusa dos seus próprios objetivos até que se produza a situação que inviabiliza qualquer retorno e em que as próprias condições gritam:
Hic Rhodus, hic salta! [Aqui é Rodes, salta aqui mesmo!]
Hier ist die Rose, hier tanze! [Aqui está a rosa, dança agora!] (1)
Essas palavras, escritas há cinquenta anos por Karl Marx, hoje soam como se fossem uma descrição dos nossos dias.
A revolução proletária se distingue da burguesa em primeira linha pelo fato de que, nela, o povo trabalhador luta pelas suas próprias causas. Nessa luta, só pode contar com as suas próprias forças, deve aproveitar cada passo em falso para o futuro, estar sempre aprendendo e ponderando se o caminho escolhido é o correto, se os meios aplicados levam ao objetivo.
O povo trabalhador que se vê diante de tarefa tão importante não tem tempo nem possibilidade de refletir sobre a questão com tranquilidade e profundidade muitos anos antes da luta. Geralmente só vai para o combate quando é chegada a hora, e só ao longo dele, com ajuda da parte do proletariado já esclarecida pela social-democracia, ganhará clareza sobre sua própria natureza, a natureza do adversário, bem como sobre seus objetivos.
O proletariado aprende e se forma durante a luta, no momento do sacrifício em confronto com o adversário. Do grau dessa consciência depende o resultado da vitória.
E como o proletariado chega a essa consciência? Lê brochuras, apelos, jornais, escuta discursos de pessoas que lhe aconselham diversas coisas. Ele próprio deve avaliar qual lado está com a razão, porque disso depende o caminho a ser escolhido. Consequentemente, aproveitar a liberdade de reuniões e de imprensa é o principal fator que permite ao proletariado se conscientizar durante a própria luta; com isso, o proletariado luta para poder se reunir, discutir suas questões e conhecer seus amigos e inimigos na imprensa livre. Se a primeira condição para a conscientização do proletariado é forçar o governo a conceder a liberdade de reunião, opinião e imprensa, a segunda é o aproveitamento incondicional dessa liberdade, a liberdade total de crítica e discussão entre os trabalhadores em luta. A liberdade de opinião e imprensa é uma condição para que o proletariado se conscientize, a outra é que ele não se imponha amarras, que não impeça que se discuta sobre isso ou aquilo. Os trabalhadores esclarecidos do mundo inteiro sabem disso e estão sempre preocupados em conceder o direito a externar livremente sua opinião mesmo ao pior adversário. Dizem: que o próprio inimigo apresente sua concepção ao povo trabalhador para que possamos responder, para que a massa trabalhadora possa ter clareza sobre quem é amigo e quem é inimigo.
Por essas razões, a parte consciente do proletariado, a social-democracia [o socialismo da época - nota W. S.], está atenta para a liberdade de opinião, discussão e crítica. Só nesse fogo cruzado é que o trabalhador pode ter clareza sobre sua causa e formar sua opinião. Na luta atual, em que questões tão difíceis pesam sobre os ombros do proletariado na Rússia e na Polônia, a discussão e a crítica são muito mais urgentes para nós. Sempre e por todo lado a social-democracia mostrou de forma exemplar a sua utilidade às massas. (2)
Já o Partido Socialista Polonês, o PSP, (3) age de outra forma.
Centenas de cartas de círculos operários relatam que, toda vez que os membros do PSP formaram a maioria, os membros de outros partidos eram impedidos de forma inescrupulosa de expressar a sua opinião, e, quando estavam em minoria, tentavam obstaculizar a discussão com balbúrdia e gritaria!
Não somos sentimentais. Não perderíamos nenhuma palavra de condenação se aqui e acolá a paixão desembocava em gritaria, se, no calor do combate, o curso normal da discussão ficasse obstruído. Quando o proletário exaltado, que certamente não é nenhum intelectual, luta por uma causa sagrada para ele, não raro o sangue quente vence a razão. Mas não se trata de casos isolados, e sim do sistema. Isso atesta, por exemplo, as correspondências que nos fornecem os relatos, assim como toda a tática do Partido Socialista Polonês. Desde sempre, diante da existência de diferenças programáticas no socialismo polonês que diziam respeito a tarefas fundamentais do nosso movimento, o PSP fechou os olhos com a argúcia de um idiota e a sensibilidade de um palhaço. Para eles, a social-democracia – primeiro partido cujo programa político foi uma aplicação do socialismo científico às condições polonesas – era um grupo de incitadores e intrigantes que semeavam a “discórdia”. (4)
A razão disso não foi apenas a falta de senso de ridículo e a ignorância total. Nesse comportamento obstinado e renitente de se ridicularizar havia uma certa ideia “tática”.
Para as massas operárias, o PSP nunca esteve aberto ao debate. Sempre se defendeu com toda a força, só para que as massas não percebessem as críticas ao seu programa. Se essa crítica não passa de provocação, por que ainda gasta tempo com ela? Não se permitia aos trabalhadores membros do PSP trazer para dentro da organização publicações de outros partidos. Eram obrigados a acreditar naquilo que dizia o PSP, assim como os católicos fieis são obrigados a crer naquilo que se ensina na igreja.
Da mesma forma que é importante para a igreja que as “ovelhas” acreditem no que dizem os pastores, em vez de emitir coisas inteligentes, as pessoas do PSP instilaram na massa determinados conceitos como se fossem artigos de fé, tentando impedir com todos os meios que os membros do partido escutassem os argumentos dos adversários. Assim, qualquer divergência de opinião, mesmo dentro das próprias fileiras, era vista como desorganização e provocação, a fim de criar uma igreja de fieis em vez de um quadro de trabalhadores com pensamento consciente e crítico. Eles fanatizaram as massas, obnubilando seus cérebros com uma nuvem de crença, para que nenhuma luz iluminadora penetrasse neles. Seu intuito não foi o de esclarecer os trabalhadores, e sim de distorcer sua razão.
Nós, no entanto, fizemos chegar as publicações do PSP às nossas organizações, pois nos importava formar uma consciência independente no proletariado.
Agora que o PSP não consegue mais esconder a crítica mantendo os seus membros em círculos conspiradores, que tampouco pode deixar a crítica de lado ou omiti-la diante de seus membros porque os oradores da social-democracia comparecem a centenas de manifestações, o partido não consegue mais tentar impedir a livre discussão nem convencer as massas de sua nocividade. Nas manifestações ouvimos oradores do PPS dizendo: “Camaradas, não é tempo para debates ou para brigas, pois a luta nos espera”.
Nós respondemos: “Precisamente porque a luta nos espera temos que ganhar clareza sobre a sua natureza por meio do debate”. Se existe algo que pode acabar com a fragmentação política do proletariado, é a discussão, é a crítica.
Se o PSP acreditasse na possibilidade de conseguir defender com êxito o que anuncia, teria que expor voluntariamente os seus argumentos à luz da crítica. Mas o PSP sabe como é fraca a sua posição, razão pela qual tenta impedir a crítica com todos os meios.
Qual a solução?
Mostremos à massa, repetidamente, a necessidade da crítica e da discussão. Se dermos o exemplo aos adversários com o nosso comportamento e se mostrarmos, como sempre fizemos, que entre nós a palavra e o ato são coerentes, até nos círculos dos adeptos do PSP surgirá uma repulsa contra essa ação nociva e sacrílega com que se tenta impedir a discussão. Se as pessoas do PSP aproveitarem para obstaculizar a discussão quando por acaso estiverem em maioria, então, trabalhadores, saiam da reunião depois de um protesto calmo, porém decidido.
Se, no entanto, um pequeno grupo tentar impedir a discussão com gritaria, então a massa deve apontar com calma, porém determinada, como é repugnante esse tipo de ação e obrigará os gritões a deixar a sala.
A liberdade total de crítica e discussão é do interesse do movimento operário e deve ser obtida a qualquer preço dentro do espírito do lema da Internacional: “A libertação da classe trabalhadora deve ser obra da própria classe trabalhadora”.(5)
***
Notas de rodapé:
(1) Nota de revisão: citamos a versão brasileira da editora Boitempo: p. 28-29. MARX, Karl. O 18 Brumário de Luis Bonaparte. Tradução de Nélio Schneider, 2011. [N. revisão]
(2) Logo depois da eclosão da Primeira Guerra Mundial, Rosa Luxemburgo escreveu sobre a capitulação da social-democracia internacional, que ela avaliou como sendo uma catástrofe universal, expressando-se da seguinte maneira: “O proletariado atingirá o objetivo de sua viagem – sua libertação – se souber aprender com os próprios erros. Para o movimento proletário, a autocrítica, uma autocrítica impiedosa, severa, que vá à raiz das coisas, é o ar e a luz sem os quais ele não pode viver. A queda do proletariado socialista na presente guerra mundial não tem precedentes, é uma desgraça para a humanidade. Mas o socialismo só estaria perdido se o proletariado internacional não quisesse medir a profundidade de sua queda e não desejasse aprender com ela.” (A crise da social-democracia, em Rosa Luxemburgo, Textos escolhidos, vol. II, São Paulo, Editora UNESP, 2017, p. 18).
(3) N. da T. : Em polonês: Polska Partia Socjalistyczna, PPS. [N. T]
(4) Rosa Luxemburgo refere-se ao seu partido, a Social-democracia do Reino da Polônia e Lituânia (SDKPiL), fundada em 1893, que fez parte do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) de 1906 a 1911. [N. T]
(5) Marx, Engels [carta circular para Bebel, Liebknecht, Bracke e outros], in MEW, v. 19, p.165. Um motivo muitas vezes usado por Rosa Luxemburgo, que surgiu pela primeira vez no cenário político em Paris em junho de 1848, e no qual ela tenta enfatizar especialmente a natureza da revolução operária. [N. T]
Publicado originalmente em 9 de janeiro de 1906, In: Czerwony Sztandar, nº 3, 9 de janeiro de 1906, p.1-2. Publicado em Rosa Luxemburgo, Arbeiterrevolution 1905/06 – Polnische Texte, org. por Holger Politt, Berlim, Dietz, p.151-54.
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