O caricaturista e sua arte: Elias Jabbour, o marxismo contra Marx e o socialismo com capital.
- Igor Dias
- 9 de abr.
- 27 min de leitura
Atualizado: 9 de abr.
por Frederico Lambertucci
Em 2021, Elias Jabbour publicou um artigo no portal GGN, apontando brevemente sua concepção sobre a China e a definição dela como o que se consolidou nominalmente como "socialismo de mercado" ou "socialismo real". De lá para cá não somente tal concepção não mudou, mas ganhou mais projeção, tendo Jabbour como principal expoente e resultou na ascenção de diversos divulgadores online, do reformismo ao suposto campo radicalizado do marxismo brasileiro. Estes últimos parecem amaciar em suas referências a Jabbour as defesas dele do programa petista eleitoral de 2022, como "programa máximo", ainda que o que vimos foi o menos que o mínimo deste "máximo" que nunca existiu para além da retórica reformista.
Como o texto contém, de maneira geral, um sumário resumido de suas ideias, achamos que uma crítica conseguiria pegar pontos interessantes de sua construção teórica, se é possível chamar assim o que o apologista chinês faz.
Elias Jabbour, talvez, seja o melhor exemplo da decadência intelectual da Universidade Burguesa e de que forma a decadência ideológica da burguesia encontrou uma via específica nos ditos "intelectuais" progressistas e nos autointitulados "marxistas", que na realidade não passam de reformistas pagos a soldo. Sim, o reformismo, desde Bernstein, também produz seus próprios espadachins, que funcionam como salvaguarda do capital, mas pelo “lado oposto”.
No caso em tela, o “intelectual”, que só pode ser chamado assim em tempos da mais profunda miséria teórica e prática no movimento comunista, é um apologista do capital chinês.
Peguemos alguns argumentos de Elias Jabbour dos porquês a China seria "socialista". No pequeno texto indicado no início deste texto, ele resume seus argumentos, que são, no mínimo, risíveis, do ponto de vista de qualquer marxista sério e rigoroso. O primeiro argumento encontra-se já no primeiro parágrafo, segundo o propagandista chinês
É uma caricatura afirmar que os defensores do caminho socialista na China baseiam-se no fato da China ter estatais. É muito conhecida a noção marxiana para quem a forma de propriedade dominante é o que define uma formação econômico-social. A existência de estatais é um ponto de partida fundamental para as transformações que a China tem conseguido empreender. (Jabbour, 2021)
O argumento utilizado procura, paradoxalmente, se defender da “caricatura” afirmando que a questão não é a China ter “estatais”, ao mesmo tempo que é central na argumentação sobre o caráter da “formação econômico-social” que a China tenha estatais, como “forma de propriedade dominante”. Desse modo, que, no mínimo deveria ofender qualquer leitor por subestimar sua inteligência, Elias Jabbour busca se amparar na categoria marxiana, a tal "noção" marxiana de formação econômico-social para defender que a propriedade estatal, e lembremos que estamos falando de propriedade jurídica, é a forma dominante de propriedade e que, portanto, a China seria socialista, ou no mínimo estaria seguindo esse caminho.
Comecemos, portanto, com a categoria de formação econômico-social de Marx.
Ao discutir como uma nova forma de relação social de produção só pode se desenvolver a partir de certo grau de forças produtivas, as quais também correspondiam certas relações sociais de produção, Marx, nos Grundrisse, discute a peculiaridade da forma como na “formação econômico-social” burguesa, os elementos de relações sociais de produção passados, inclusive formas jurídicas de propriedade são assimilados, transformados segundo a relação social dominante da sociedade burguesa, por isso, diz ele que:
É preciso considerar que as novas forças produtivas e relações de produção não se desenvolvem do nada, nem do ar nem do ventre da ideia que se põe a si mesma; mas o fazem no interior do desenvolvimento da produção existente e das relações de produção tradicionais herdadas, e em contradição com elas. Se no sistema burguês acabado cada relação econômica pressupõe a outra sob a forma econômico-burguesa e, desse modo, cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto, o mesmo sucede em todo sistema orgânico. Como totalidade, esse próprio sistema orgânico tem seus pressupostos, e seu desenvolvimento na totalidade consiste precisamente em subordinar a si todos os elementos da sociedade, ou em extrair dela os órgãos que ainda lhe faltam. É assim que devém uma totalidade historicamente. O vir a ser tal totalidade constitui um momento de seu processo, de seu desenvolvimento (Marx, 2011, p. 283)
Como o leitor pode ver, na formação econômico-social da sociedade burguesa, o seu processo de tornar-se uma totalidade para-si, consistiu precisamente em subordinar todos os elementos da sociedade, ou em criar os novos. Por exemplo, a propriedade da terra, deve, necessariamente ser subordinada a forma de produção do capital, de modo a produzir a condição de sua reprodução própria, através do trabalho assalariado, como seu fundamento.
A peculiaridade da “formação econômico-social” da sociedade burguesa, é que o capital, exatamente pela sua universalidade fundada no trabalho assalariado, só pode continuar existindo como processo de contínua expansão, e, deve, subordinar e transformar todas as relações sociais na direção da sua própria estrutura produtiva. Isto é, para produzir o capital enquanto tal, tem que, necessariamente, transformar o trabalho em trabalho assalariado, por isto, Marx diz que “no sistema burguês acabado, cada relação econômica pressupõe a outra sob a forma econômico-burguesa e, desse modo, cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto”.
Ou seja, o que Marx está dizendo é que a constituição da sociedade burguesa enquanto uma totalidade, tem que necessariamente, tal como todo sistema orgânico, produzir todas as partes enquanto totalidades reciprocamente determinadas que se sustentam reflexivamente. Isto é, todas as partes são postas sob a forma econômico-burguesa, como pressupostos de outras relações da mesma sociedade burguesa. O trabalho assalariado, por exemplo, é pressuposto do capital, mas quando o capital se torna posto, a própria reprodução da força de trabalho enquanto elemento do trabalho assalariado, se torna reposta pelo capital, a determinação de reflexão significa partes que não são mais cindíveis, assim que o sistema orgânico do capital é uma totalidade concreta, como síntese real.
O que significa que, qualquer parte, para que continue existindo sob “a forma econômico-burguesa” deve necessariamente integrar elementos de formas passadas de sociedade, como pressupostos das relações do capital. Isto é, elementos preservados só sobrevivem na totalidade da sociedade burguesa, caso constituam-se como partes do processo de reprodução dessa formação econômico-social em que domina o capital como relação social fundamental.
É isso que Marx tem em mente, na análise da sociedade burguesa, quando nos Grundrisse discute a peculiaridade dessa forma social e sua relação com as formas de propriedade passada, diz ele que
A sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica da produção. Por essa razão, as categorias que expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, com cujos escombros e elementos edificou-se, parte dos quais ainda carrega consigo como resíduos não superados, parte [que] nela se desenvolvem de meros indícios em significações plenas etc. [...]. Do mesmo modo, a economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc. Mas de modo algum à moda dos economistas, que apagam todas as diferenças históricas e veem a sociedade burguesa em todas as formas de sociedade. Pode-se compreender o tributo, a dízima etc. quando se conhece a renda da terra. Porém, não se deve identificá-los. Como, ademais, a própria sociedade burguesa é só uma forma antagônica do desenvolvimento, nela são encontradas com frequência relações de formas precedentes inteiramente atrofiadas ou mesmo dissimuladas. Por exemplo, a propriedade comunal. Por conseguinte, se é verdade que as categorias da economia burguesa têm uma verdade para todas as outras formas de sociedade, isso deve ser tomado cum grano salis[e]. Elas podem conter tais categorias de modo desenvolvido, atrofiado, caricato etc., mas sempre com diferença essencial. [...]. Em todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações que estabelecem a posição e a influência das demais produções e suas respectivas relações. É uma iluminação universal em que todas as demais cores estão imersas e que as modifica em sua particularidade. É um éter particular que determina o peso específico de toda existência que nele se manifesta. [...].
[...].
O capital é a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina. Tem de constituir tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada, e tem de ser desenvolvido antes da renda da terra. Após o exame particular de cada um, é necessário examinar sua relação recíproca. (Ibid., p. 76-78)
Parece-nos que é evidente que, dado que o “capital é a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina”, e depois de dizer que em “todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações que estabelecem a posição e a influência das demais produções e suas respectivas relações” que Marx tem clareza do fato de que, ainda que relações não inteiramente superadas possam sobreviver no interior de uma “formação econômico-social”, elas só continuam existindo subordinadas a relação social que é predominante na reprodução social. No caso da sociedade burguesa, subordinadas ao próprio capital, enquanto “potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina”.
Dessa forma, é completamente compreensível que formas de trabalho escravo, ou mesmo na China, de trabalho “comunal” convivam com o trabalho assalariado. A questão fundamental é que, posto o trabalho assalariado como forma fundamental de relação social de produção, o capital pode tornar formas de propriedade e de trabalho, que não são assalariadas, em vantagem produtiva para sua própria reprodução.
O que é o trabalho familiar, praticamente artesanal, que produz jeans em fundo de quintal no México, ou a pequena propriedade familiar que produz seda no Brasil, ou mesmo o trabalho camponês do chinês que tem a permissão de uso da terra pelo Estado chinês, se não isso? No primeiro e no segundo caso não temos propriamente trabalho assalariado, mas temos trabalho abstrato que é apropriado, através do mercado mundial, pelos monopólios imensamente mais produtivos, e não há possibilidade de produção para o consumo, antes de tudo, se produzem mercadorias. No segundo caso, pela via política, o Estado chinês ao determinar o preço dos grãos e pela proibição do camponês da venda no mercado mundial dos grãos produzidos, ele impõe o preço e consequentemente determina o nível da apropriação de riqueza pelo Estado. Ao pagar abaixo do preço do mercado mundial pelo grão, tal forma de produção possui um caráter fundamental na reprodução do capital, pois rebaixa o valor da força de trabalho do trabalhador assalariado chinês através dessa apropriação. Em suma, transforma o que incautos chamariam de formas de “não-propriedade”, quando o verdadeiramente o são, em vantagem produtiva para o conjunto do capital na China.
Há ainda que ressaltar, que nessa “formação econômico-social”, o momento predominante é sempre o capital, pela sua própria natureza universalizadora e seus critérios reprodutivos, que, necessariamente subordinam todos os elementos para si e em última análise, permanecem sempre como formas da relação-capital.
Atente-se ainda o leitor, que nos nossos três exemplos, o trabalho assalariado é facilmente combinável com as formas existentes trabalho, no exemplo do México e do Brasil, se pode, facilmente, contratar um trabalhador de fora da família na base de um contrato de trabalho, e no caso da propriedade estatal, ao qual é outorgado direito de uso ao camponês, o camponês pode simplesmente arrendar a terra ou mesmo contratar força de trabalho, passando com isso ao trabalho assalariado na produção agrária chinesa.
Nenhuma das relações sociais está em contradição com o modo de produção do capital de forma antagônica, são formas de propriedade constitutivas da relação capital, ainda que, se possa, em termos gerais, falar que são constitutivas da formação econômico-social.
Não obstante, ainda precisamos falar da propriedade estatal dos meios de produção pelo Estado, seria essa forma jurídica de propriedade antagônica ao capital e produziria uma “formação econômico-social” em que formas de propriedade concorrem entre si, como quer o apologista do capital chinês?
Vejamos o que diz Engels sobre a propriedade estatal
Enquanto as crises revelaram a incapacidade da burguesia de continuar administrando as modernas forças produtivas, a metamorfose das grandes instituições de produção e intercâmbio em sociedades por ações e propriedades do Estado mostraram a dispensabilidade da burguesia para esse fim. Todas as funções sociais do capitalista passam a ser exercidas por funcionários remunerados. [...]. Tendo o modo de produção capitalista alijado primeiramente os trabalhadores, ele passa agora a alijar os capitalistas e os remete, a exemplo do que ocorreu com os trabalhadores, à população supérflua, embora num primeiro momento não os atire ao exército industrial de reserva. Porém, nem a metamorfose em sociedades por ações nem a metamorfose em propriedades do Estado retiram das forças produtivas sua qualidade de capital. No caso das sociedades por ações, isso é evidente. E o Estado moderno, por sua vez, é apenas a organização que a sociedade burguesa monta para sustentar as condições exteriores gerais do modo de produção capitalista contra ataques tanto dos trabalhadores como de capitalistas individuais. O Estado moderno, qualquer que seja sua forma, é, portanto, uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, é o capitalista global ideal. Quanto maior é o número de forças produtivas que ele assume como sua propriedade, mais ele se torna um capitalista global real, maior é o número de cidadãos do Estado que ele espolia. Os trabalhadores permanecem trabalhadores assalariados, proletários. A relação com o capital não é revogada; ao contrário, é levada ao extremo. (Engels, 2015, p. 390)
Assim Engels ensina ao nosso apologista do capital chinês que a verdadeira propriedade privada capitalista é o capital, e não a propriedade jurídica, que permanece sempre formal, deste. O fato do Estado controlar uma massa maior de capital ou menor sob a posse dos meios de produção, só comprova o fato de que o Estado é, antes de tudo, pertencente a estrutura social do capital, não como “superestrutura” jurídico-política apenas, mas enquanto instrumento produtivo a serviço da reprodução do capital.
Desse modo, se a relação capital-trabalho é preservada, seja sob a posse de um punhado de capitalistas, seja sob posse estatal, nada se altera na relação real de subordinação objetiva do trabalho ao capital, pela qual
O caráter social da atividade, assim como a forma social do produto e a participação do indivíduo na produção, aparece aqui diante dos indivíduos como algo alheio, como coisa; não como sua conduta recíproca, mas como sua subordinação a relações que existem independentemente deles e que nascem do entrechoque de indivíduos indiferentes entre si. A troca universal de atividades e produtos, que deveio condição vital para todo indivíduo singular, sua conexão recíproca, aparece para eles mesmos como algo alheio, autônomo, como uma coisa. No valor de troca, a conexão social entre as pessoas é transformada em um comportamento social das coisas; o poder [Vermögen] pessoal, em poder coisificado. (Marx, 2011, p. 137)
Ora, na sociedade chinesa o caráter social da atividade, bem como a forma social do produto não comparecem como “algo alheio”, exatamente na medida em que todas as determinações e relações do capital permanecem controlando todo o metabolismo social? Não é o trabalho assalariado o que produz toda a riqueza social chinesa, apropriada sob a forma de mais-valia? Não é a completa separação dos indivíduos do controle real, determinado, o que existe na China? Pois, se existe capital, não pode haver nenhum tipo de controle real pelos produtores associados, na medida em que 1) o trabalho associado é completamente antagônico ao trabalho assalariado, ele só pode se pôr contra e superando a forma assalariada de trabalho 2) o capital é em-si mesmo a alienação do controle, na medida em que ele mesmo é trabalho objetivado alienado, a sua substância é isto, ele não pode conviver com nenhum tipo de controle real, pois sua existência permanece inteiramente condicionada a reprodução da separação entre produção e controle. Isto é, a própria existência do capital é constitutiva dessa separação, o que exige que um grupo de indivíduos personifique o trabalho e outra as exigências objetivas de sua reprodução ampliada, as personificações do capital, que podem ser os capitalistas, ou burocratas do partido, comandando o capital na forma de propriedade estatal chinesa.
É assim que a condição alienada da produção e seu caráter fetichista continuam determinantes na produção e no caráter da atividade e de vida do indivíduo. A estrutura geral da sociedade burguesa, suas determinações fundamentais permanecem completamente intocadas no processo reprodutivo da sociedade burguesa chinesa.
Contudo, para o apologista chinês, tais constitutivos da sociedade burguesa, são unicamente "noções positivistas e neopositivistas”, como afirma no texto
Por outro lado noções positivistas e neopositivistas afirmam relação direta entre a dinâmica chinesa, os países desenvolvimentistas asiáticos e outras formas de Estado Industrial. Nesse caso as “teorias anteriores” são suficientes para explicar a China. Trata-se de uma meia verdade, a começar pelo regime de propriedade e a inauguração de formas superiores nas relações do ser-humano e a natureza. (Jabbour, 2021)
Abstraindo-se o completo relaxo quanto à forma do texto de Jabbour, convém indagar ao Jabbour se ele considera Marx e Engels “neopositivistas” avant la lettre ou se considera enquadrados no que ele menciona serem as “teorias anteriores”, que por algum motivo místico, excetuando-se a passagem do tempo, perderam a sua validade teórica, ainda que o objeto sob o qual sua teoria se constituiu, não foram formas singulares e efêmeras do desenvolvimento capitalista, mas sobretudo os fundamentos causais da sociedade burguesa, principalmente, as condições sociais de produção do capital enquanto tal, em relação às quais, os elementos singulares e as formas concretas são mutáveis, mas que conservam aquele caráter dialético da continuidade na descontinuidade e vice-versa.
Convém perguntar se apesar da casca “marxista” que Jabbour pretende atribuir a si mesmo, além desse formalismo tosco e rude, ao qual designaríamos o termo “neokantiano” caso não fosse sujar o nome dos já péssimos neokantianos, se o que Marx designa abaixo, não permanece como verdade teórica geral para a sociedade burguesa, incluindo a China:
O pressuposto elementar da sociedade burguesa é que o trabalho produz imediatamente valor de troca, por conseguinte, dinheiro; e então, igualmente, que o dinheiro compra imediatamente o trabalho e, por isso, o trabalhador tão somente na medida em que ele próprio aliena sua atividade na troca. Portanto, trabalho assalariado, por um lado, e capital, por outro, são apenas outras formas do valor de troca desenvolvido e do dinheiro enquanto sua encarnação. Com isso, o dinheiro é, ao mesmo tempo, imediatamente a comunidade real, uma vez que é a substância universal da existência para todos e o produto coletivo de todos. (Marx, 2011, p. 212)
Na China o trabalho não produz imediatamente valor de troca, e por conseguinte dinheiro? O dinheiro não compra força de trabalho, abstraída enquanto potência alienável, vendável? E enquanto vendável, o capital que a compra, seja estatal, seja privado, não controla o conjunto do processo de produção, inclusive a própria atividade do trabalho? Não continuam existindo, portanto, capital de um lado e trabalho assalariado, de outro? O dinheiro não permanece sendo a “comunidade real” enquanto vínculo social dos indivíduos com a totalidade social na China? Ou é alguma forma mística de sensação de pertencimento vinculada a “cultura” ou ao “confucionismo”, enquanto conteúdos ideológicos completamente dissociados das relações sociais reais de produção e distribuição e formas etéreas de consciência social.
E por conseguinte, qual seria essa “forma superior de relação do ser-humano e a natureza” quando o conjunto de alienações de que trata Marx nos Manuscritos econômico-filosóficos permanece existindo? E principalmente, quando a atividade do trabalho e o produto do trabalho permanecem alheios, tornando o gênero humano, a relação do trabalho com a totalidade da sociedade, como um meio para a existência física do trabalhador.
Esta produção é a sua vida genérica operativa. Por ela, a natureza aparece como obra sua e sua realidade. O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida genérica do homem, na medida em que ele se duplica não só intelectualmente, como na consciência, mas também operativamente (werktätig), realmente, e contempla-se por isso num mundo criado por ele. Por isso, na medida em que arranca ao homem o objeto da sua produção, o trabalho alienado arranca-lhe a sua vida genérica, a sua real objetividade genérica, e transforma sua vantagem sobre o animal na desvantagem de lhe ser retirado o seu corpo inorgânico, a natureza. (Marx, 2015, p. 313)
Então, do mesmo modo, na medida em que reduz a autoatividade, a atividade livre, a um meio, o trabalho alienado faz da vida genérica do homem um meio para a sua existência física. A consciência que o homem tem do seu gênero transforma-se, portanto, pela alienação, de modo que a vida genérica se torna um meio para ele.
Assim, o trabalho alienado faz:
3) do ser genérico do homem – tanto a natureza quanto a sua capacidade espiritual genérica (Gattungsvermögen) – uma essência alienada a ele, num meio da sua existência individual. Ele aliena do homem o seu corpo próprio, bem como a natureza fora dele, bem como a sua essência espiritual, a sua essência humana. (Marx, 2015, p. 313-314)
Não estão, na China, alienadas dos reais produtores, dos trabalhadores chineses, tanto o produto do seu trabalho, sob a forma de mercadorias, quanto a sua atividade, enquanto força de trabalho vendável e pertencente aos empregadores (sejam capitalistas, sejam burocratas do partido), e, portanto, não está a própria vida genérica, a qual o trabalho produz necessariamente enquanto gênero humano objetivamente constituído a partir da transformação da natureza? O gênero humano não se tornou, desse modo, meio para a existência do indivíduo sob mediação determinante deste com aquela, isto é, o trabalho assalariado?
E assim, sob a égide da reprodução do capital, enquanto invólucro do gênero humano, não está a natureza alienada, igualmente, dos indivíduos? Não é ela mesma, a natureza, um meio para a reprodução ampliada do capital, o qual está, necessariamente subordinado aos critérios do aumento da produtividade social do trabalho? O que implica em um critério unicamente quantitativo, abstrato, da relação entre homem e natureza, em que essa só conta enquanto menor tempo de trabalho socialmente necessário para sua exploração, como massa de trabalho alienado objetivado.
Talvez essas questões sejam muito “positivistas” ou “neopositivistas”. Ou será que já podemos dizer que essas qualificações são fugas fáceis para obstaculizar o debate?
Comentemos, por último, todo o restante do texto de Jabbour e tornemos ainda mais explícita sua miséria intelectual.
Diz ele que:
Existem novas regularidades geradas e a necessidade de novos marcos teóricos, conceituais e categorias à apreensão daquela totalidade. Definitivamente a chamada “Economia do Desenvolvimento” já demonstra fadiga à compreensão de realidades disruptivas. Minha diferença com os economistas do desenvolvimento heterodoxos não é se a China é socialista ou capitalista. Nossas diferenças residem na profunda opção conservadora deles em matéria de ciência e teoria do conhecimento. O positivismo deles os tornam grandes economistas para entender economias “estáveis” e sem grandes novidades no nível das relações dos seres humanos e a natureza. Enfim, são formados e modelados para entender um modo de produção específico.
A China é socialista? Esta pergunta não é da tradição marxista. Quem levanta esta questão é fiel ao figurino intelectual que tratei mais acima. Marx nos ensinou a buscar a compreender a natureza e a síntese de determinadas combinações entre fenômenos “subterrâneos” de diferentes idades históricas. (Jabbour, 2021)
O apologista tem razão sobre o fato de que novas regularidades exigem, de fato, novos marcos teóricos, ainda que nem sempre esses marcos teóricos necessitem de fundamentos ontometodológicos distintos, mas isto não vem ao caso aqui. A questão, fundamental, é que na medida em que é o capital a relação social fundamental da produção na sociedade chinesa, e na medida em que está se liga a partir do mesmo conjunto categorial ao mercado mundial, a mera existência de uma burocracia “comunista” não significa alteração alguma nas leis sociais de produção.
Por essa razão, na China encontramos as mesmas categorias que Marx, em O Capital, apreendeu as determinações mais profundas e gerais do modo de produção capitalista. Na China a produção tem por objetivo a mais-valia, a separação entre produção e controle é determinante da existência do capital enquanto relação social de produção, e como Engels bem explicou, mesmo a propriedade estatal não altera em nada as leis que regem a produção e a distribuição sob a lógica do capital.
É evidente que tais categorias se expressam em formas fenomênicas em tudo distintas, o capitalismo americano apresenta uma “configuração” distinta do francês, do inglês e do chinês, sem que nenhuma das expressões concretas do capital perda seu caráter de capitalismo, enquanto totalidades parciais do mercado mundial articulado em conjunto com as formações estatais do capital.
A divergência de Jabbour com quem realiza a crítica da China como forma de desenvolvimento capitalista, a quem ele coloca no mesmo balaio de “economistas do desenvolvimento heterodoxo”, é que diferente dele, não são apologistas cego do capitalismo chinês, e principalmente nada tem que ver com “opção conservadora” em “matéria de ciência e conhecimento”, mas sim do fato de que, os marxistas sérios e rigorosos, não são economistas, são críticos da economia política, e isso possui um sentido muito preciso. Ao invés de capitular frente à realidade, a crítica da economia política deve perquirir a matéria social, reproduzir intelectivamente a realidade em si mesma, tomando o conjunto das relações enquanto processos constitutivos de totalidades que possuem identidade e não-identidade.
Tal fato não implica essa espécie de relativismo teórico, dizer como as coisas realmente são implica dizer o que são, qual sua identidade última. No fundo, Jabbour promove um irracionalismo epistemológico tacanho como se para Marx, fosse impossível dizer o que algo realmente é. Ora, Marx apreendeu o que o capital é enquanto processo, enquanto relação, é evidente que não se pode simplesmente dizer “o capital é isso” e ponto, contudo é um processo real e teoricamente apreensível, cujas balizas fundamentais permitem dizer o que é o capital e o que é a negação do capital.
O relativismo epistemológico de Jabbour serve a um propósito muito claro, pois, caso fosse impossível determinar os fundamentos objetivos do socialismo enquanto processo de transição, qualquer tipo de fenômeno poderia ser apontado, como faz o apologista, como um passo na transição socialista. Assim, não é casual que a pergunta se a china é socialista seja tratada como pergunta que “não é da tradição marxista”, pode-se, dessa forma, se argumentar pelo mais puro relativismo se passando por um fiel marxista.
Marx não nos ensinou a compreender “a natureza e a síntese de determinadas combinações entre fenômenos ‘subterrâneos’ de diferentes idades históricas”, e não o fez simplesmente porquê Marx não é Weber. A ideia de que os fenômenos são “subterrâneos” e que sua constituição é uma síntese de diferentes idades históricas é simplesmente um tipo ideal, um pressuposto.
Marx, ao contrário, nunca partiu do fato de que os fenômenos que estão dados na realidade são frutos necessariamente subterrâneos de uma síntese, antes, o próprio fato do fenômeno constituir uma apresentação não exaustiva da realidade teve que ser explicado enquanto determinação, primeiro ontológica da realidade, depois metodológica, ainda que a segunda seja apenas em termos da relação fundamental entre sujeito e objeto, e nunca a produção de um método formal segundo o qual a realidade seria compreensível.
A segunda questão é que, como vimos, para Marx, um sistema orgânico, uma totalidade para-si, sempre é produto de um processo em que uma relação constitui o momento predominante no processo, e subordina todos os elementos a sua própria reprodução. Se existe em uma formação social, elementos de “diferentes idades históricas”, esse fato deve ser averiguado na própria investigação da “matéria social”, nunca um pressuposto. E, ainda, mesmo que em um sistema orgânico hajam elementos de “diferentes idades históricas” o que é importante é a função que esse elemento cumpre na reprodução da totalidade presente, não enquanto traço remanescente que pode ser enquadrado conforme sua apresentação histórica genética. Isto é, a reprodução de um elemento de uma sociedade passado só é importante na medida em que sustenta a reprodução das outras partes e da totalidade da sociedade que é o objeto atual.
É por essas razão que Marx diz que
A anatomia do ser humano é uma chave para a anatomia do macaco. Por outro lado, os indícios de formas superiores nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria forma superior já é conhecida. Do mesmo modo, a economia burguesa fornece a chave da economia antiga etc. Mas de modo algum à moda dos economistas, que apagam todas as diferenças históricas e veem a sociedade burguesa em todas as formas de sociedade. Pode-se compreender o tributo, a dízima etc. quando se conhece a renda da terra. Porém, não se deve identificá-los. Como, ademais, a própria sociedade burguesa é só uma forma antagônica do desenvolvimento, nela são encontradas com frequência relações de formas precedentes inteiramente atrofiadas ou mesmo dissimuladas. (Marx, 2011, p. 76)
E finalmente, se vê a completa incongruência de Jabbour, ao fim quando diz no último parágrafo quando diz que
A Economia do Projetamento descoberta por Rangel fora produto de uma combinação (planificação soviética, keynesianismo é o capital financeiro). A Nova Economia do Projetamento que surge na China é algo em que estamos avançando em sua conceituação. Qual país capitalista trocou a iniciativa privada por dois milhões de técnicos à serviço de um Partido Comunista na gerenciamento da “destruição criativa”? Nada disso estava em algum escrito dos clássicos do materialismo histórico. É o que chamo de “historicamente construído. (Jabbour, 2021)
Caro leitor, usemos nossos neurônios, pelo menos mais do que Elias Jabbour, o que certamente não é difícil. Lhes pergunto, como é possível descobrir uma economia que não existe? Como a “Economia do Projetamento” pode ser ao mesmo tempo descoberta por Rangel e produto de uma combinação que, na realidade, nunca existiu? Ora, se se trata na realidade de um modelo produzido tomando elementos da planificação soviética, do keynesianismo e do capital financeiro, só pode ser um construto ideal a ser aplicado, e não a realidade. O que poderia estar mais distante do marxismo do que a produção de um modelo de gerenciamento do capital? Logo Marx que buscava apreender as relações sociais em sua totalidade, como processo objetivo realmente existente?
A crítica da economia política de Marx se volta para a apreensão da realidade tal qual ela está constituída, é por isso que ele diz que
Como em geral em toda ciência histórica e social, no curso das categorias econômicas é preciso ter presente que o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado tanto na realidade como na cabeça, e que, por conseguinte, as categorias expressam formas de ser, determinações de existência, com frequência somente aspectos singulares, dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que, por isso, a sociedade, também do ponto de vista científico, de modo algum só começa ali onde o discurso é sobre ela enquanto tal. (Marx, 2011, p. 77)
É cristalino o fato de que para Marx, teoria é a reprodução ideal do movimento real do objeto determinado, aqui, como diz ele, a “moderna sociedade burguesa”. Assim, a mistura eclética de modelos econômicos de forma a construir uma “cartilha” aplicável, ou buscar compreender a manifestação fenomênica de uma forma de desenvolvimento nacional do capital, como a chinesa, através da mescla estranha de três “modelos”, juntando a planificação soviética, com o pensamento keynesiano e o capital financeiro, seja lá como se pretenda realizar isto, não poderia estar mais longe e ser mais estranho ao pensamento de Marx.
Além, obviamente, de só poder produzir um “voo de Ícaro”, pois entre a relação social real que se desdobra processualmente no mercado mundial, e a malfadada e hoje esgotada via de desenvolvimento nacional do capital e o projeto de desenvolver o capital pelo Estado chinês através da “Economia do projetamento” só pode levar a um beco sem saída, pois no fundo, o capital nacional chinês nada tem de realmente nacional.
Em suma, Jabbour não pode conceituar uma forma de desenvolvimento econômico, com todas as suas relações, se ao invés de realizar sua crítica, no real significado marxiano de crítica, ele contrapõe à investigação um modelo idealmente elaborado e pré-concebido de “conceitos”, a partir dos quais constrói seu “objeto”.
De marxista Jabbour possui apenas o jargão. Do ponto de vista teórico se refugia no mais puro relativismo, ao tentar cancelar o questionamento fundamental dos critérios objetivos segundo os quais o socialismo pode ser caracterizado enquanto processo e na medida em que pretende cancelar o critério objetivo de validação do conhecimento. E ainda se torna um weberiano inconsciente quando em detrimento da investigação da realidade, realiza uma inversão em que a partir de um modelo ideal, que poderíamos facilmente atribuir ao Dr. Frankenstein, pretende conceituar o real. Caminho completamente oposto ao de Marx.
E finalmente, o patético argumento de que a troca dos controladores do trabalho, gerenciadores do trabalho privado por funcionários públicos, fazem qualquer diferença, no quadro em que, de fato a função a qual são chamados a responder é a de serem impositores da lógica quantitativa, da produtividade social do trabalho. De forma alguma isso implica uma transformação qualitativa no sistema do capital.
Ora, o próprio fato de que o processo de trabalho requer “técnicos” – uma forma encontrada para escamotear o fato de que ocupam a mesma função na estrutura produtiva do que os gerentes capitalistas – demonstra que do ponto de vista da relação social, as determinações e a alienação entre produção e controle permanecem exatamente às mesmas. Mas agora, ao invés de alguns milhões de gerenciadores privados do processo de trabalho, se tem “dois milhões de técnicos”, gerenciando não a “destruição criativa”, mas a produção destrutiva, característica de nossa época histórica.
Nenhum dos “dois milhões de técnicos” a serviço do Partido Comunista Chinês, enquanto personificação do capital, controla o processo, é a lógica do capital, externamente determinada pelo mercado mundial que determina. Tal qual os capitalistas individuais estão sujeitos a lei do valor operando no mercado mundial, o Estado chinês e cada uma de suas unidades produtivas estão igualmente subordinadas a mesma estrutura social.
Por essa razão, enquanto a relação-capital existir, não faz a mínima diferença se são “técnicos” de empresas privadas que realizam o “gerenciamento do trabalho”, em verdade, da imposição dos critérios de ritmo e de controle do processo de trabalho sobre os trabalhadores, ou se são “dois milhões de técnicos à serviço de um Partido Comunista”, independentemente de quão bem intencionados estejam os técnicos ou o partido em questão.
Ao fim e ao cabo, o que Elias Jabbour chama de “historicamente construído” é qualquer coisa e qualquer fenômeno em qualquer lugar, ou em termos cinematográficos “tudo em todo lugar ao mesmo tempo”, mas que também pode ser nada.
É uma tautologia imbecil dizer que fenômenos sociais são “historicamente construídos”, nem Weber, nem mesmo o positivista Durkheim teriam divergências com essa frase. A questão não é se algo é historicamente construído, mas como o ser social se constrói historicamente, e fundamentalmente, qual a relação entre estrutura e história.
Quais as determinações ontológicas fundamentais da reprodução social e de uma forma determinada de reprodução social. Qual a identidade interna e a não-identidade de uma forma social com o desenvolvimento histórico. Quais são as determinações de uma totalidade que apresentam a negação ontológica de uma forma de reprodução social? Quais os elementos que constituem limites relativos e limites absolutos em uma estrutura social? O que caracteriza uma forma social e sua negação e com base nisso, quais as categorias transicionais de uma forma a outra?
Todas essas são perguntas que se dirigem a apreensão de determinações objetivas. Perguntar quais os fundamentos sociais do socialismo é uma pergunta que Marx, de maneira geral, balizou, compreendendo que apesar das particularidades históricas de apresentação do modo de produção capitalista, as formas nacionais do capital, as determinações mais gerais do capital, do Estado, deveriam ser negadas e superadas no processo de transição, através da positividade do trabalho associado, ou dos produtores livremente associados.
Marx nunca produziu uma relativização do conhecimento, negando a possibilidade de determinar o fundamento social de uma reorganização da sociedade sob a base do trabalho associado. Nos próprios Grundrisse, por exemplo, falando sobre o trabalho assalariado e o trabalho comunal, diz que:
O trabalho do indivíduo considerado no próprio ato de produção é o dinheiro com que ele compra diretamente o produto, o objeto da sua atividade particular; mas é um dinheiro particular que compra precisamente só este produto específico. Para ser diretamente dinheiro geral, teria que ser desde o início não um trabalho particular, mas trabalho geral, isto é, teria que ser posto como um elo na produção geral. Mas, com esta pressuposição, não é a troca que dá ao trabalho seu caráter geral, mas é antes seu pressuposto caráter comunal que determina a distribuição de produtos. O caráter comunal de produção faz, desde o início, do produto um produto comunal, geral. A troca que originalmente acontece na produção – que não é uma troca de valores de troca mas de atividades, determinada por necessidades e propósitos comunais – inclui desde o início a participação do indivíduo no mundo comunal de produtos. Com base em valores de troca, o trabalho só é posto como geral pela troca. Mas, neste fundamento [comunal], ele é postulado como tal antes da troca; isto é, a troca de produtos não é de maneira alguma o meio pelo qual a participação do indivíduo na produção geral é mediada. A mediação deve, claro, ocorrer. No primeiro caso, que procede da produção independente de indivíduos – não importa quanto estas produções independentes se determinem e se modifiquem reciprocamente post festum – a mediação acontece pela troca de mercadorias, pelo valor de troca e pelo dinheiro; todas expressões de uma e mesma relação. No segundo caso, a própria pressuposição é mediada, isto é, em uma produção comunal, a comunidade é pressuposta como a base da produção. O trabalho do indivíduo é posto desde o início como trabalho social. Assim, qualquer que seja a forma material particular do produto que ele cria ou ajuda a criar, o que foi comprado com o seu trabalho não é um produto específico e particular, mas antes uma porção especial da produção comunal. Ele não tem, portanto, nenhum produto particular para trocar. O seu produto não é um valor de troca. O produto não tem que ser antes transposto a uma forma particular para atingir um caráter geral para o indivíduo. Em vez de uma divisão de trabalho, trabalho que necessariamente é criado no intercâmbio de valores de troca, aconteceria uma organização do trabalho cuja consequência seria a participação do indivíduo no consumo comunal. No primeiro caso, o caráter social de produção é posto apenas post festum com a elevação dos produtos a valores de troca e o intercâmbio destes valores de troca. No segundo caso, é pressuposto o caráter social da produção, e a participação no mundo de produtos, no consumo, não é mediada pela troca de produtos de trabalho ou de trabalhos mutuamente independentes. É mediada, antes, pelas condições sociais de produção no interior das quais o indivíduo é ativo. Aqueles que querem transformar diretamente o trabalho dos indivíduos em dinheiro (isto é, o seu produto também), em valor de troca realizado, querem, portanto, determinar diretamente o trabalho enquanto trabalho geral, isto é, negar precisamente as condições nas quais ele deve ser transformado em dinheiro e valores de troca, nas quais ele depende do intercâmbio privado. Esta demanda só pode ser satisfeita em condições nas quais já não pode ser feita. O trabalho com base em valores de troca pressupõe, precisamente, que nem o trabalho do indivíduo nem o seu produto sejam diretamente gerais; que o produto só atinge esta forma passando por uma mediação objetiva [gegenständliche], por meio de uma forma de dinheiro distinta de si mesmo. (Marx, 2011, p. 170)
Assim, o fundamental real sob o qual se assenta a produção, fundamento do socialismo/comunismo, é o trabalho social antefestum, isto é, o trabalho comunal como elo social da produção. Se no capitalismo o trabalho social só se afirma enquanto social na troca, em que se prova como social pelo valor de troca, o trabalho comunal é social já na própria produção, porque é trabalho geral imediatamente, de todo o conjunto social, e seu produto é imediatamente geral, pois apropriável pelo conjunto da sociedade.
Em suma, é evidente como Marx já apreende determinações da positividade do trabalho livre da alienação do trabalho, enquanto trabalho genérico, elo imediatamente conectado com a produção em geral. Distintamente da relação privada de distintos ramos da produção, privados ou públicos, que só se tornam social posfestum, e que o produto do trabalho só ganha caráter social através da abstração do trabalho enquanto objetivação alienada e abstrata.
Com isto, cessa o caráter externo e alheio do produto e da atividade do trabalho, tal qual delineou Marx já em 1845 na Ideologia Alemã:
Esse fixar-se da atividade social, essa consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo situado acima de nós, que foge ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e aniquila nossas conjeturas, é um dos principais momentos no desenvolvimento histórico até aqui realizado. O poder social, isto é, a força de produção multiplicada que nasce da cooperação dos diversos indivíduos condicionada pela divisão do trabalho, aparece a esses indivíduos, porque a própria cooperação não é voluntária mas natural, não como seu próprio poder unificado, mas sim como uma potência estranha, situada fora deles, sobre a qual não sabem de onde veio nem para onde vai, uma potência, portanto, que não podem mais controlar e que, pelo contrário, percorre agora uma sequência particular de fases e etapas de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que até mesmo dirige esse querer e esse agir. (Marx; Engels, 2007, p. 38)
A superação desse caráter alienado do trabalho, eis a tarefa de uma revolução comunista, e, certamente, não a reposição dessa alienação sob o controle do Estado, como personificação do capital. Pois, como aponta Mészáros
O capital deve ser superado na totalidade de suas relações, caso contrário o seu modo de reprodução sociometabólica, que a tudo domina, não poderá ser deslocado mesmo em relação a assuntos de relativamente menor importância. Isto porque o capital “não é uma simples relação, mas um processo, em cujos vários momentos sempre é capital. [...] a troca não permaneceu inalterada com a colocação formal de valores de troca, mas avançou necessariamente para a sujeição da própria produção ao valor de troca. (Mészáros, 2011, p. 711)
A nosso juízo, é exatamente disto que se trata, a impossibilidade de superar o capital na totalidade de suas relações resultou na reposição de seu modo de reprodução sóciometabólica, que não pode ser deslocado. Exatamente porque o capital é um processo, que permanece sempre capital, e no qual, a produção de valores de uso sempre se subordina a produção de valores de troca.
Dessa forma, fica claro, tanto como Jabbour não poderia estar mais distante do marxismo, quanto, ao mesmo tempo, a China não poderia estar realizando nenhuma transição ao socialismo, que possui, fundamentos objetivos, balizadores, pelos quais um processo pode realmente ser bem sucedido, e em relação aos quais, não existe nenhum sinal nas relações sociais existentes na China nos dias de hoje.
Tal qual colocou Mészáros, o capital domina o conjunto das relações sociais e não pode ser deslocado, nem superado de forma parcial, ou é superado em sua integralidade – e isto é impossível em um só país – ou se repõe como o comando geral sobre o trabalho com todos os seus imperativos objetivos reprodutivos.
Bibliografia:
ENGELS, Friedrich. AntiDuhring. São Paulo: Boitempo, 2015.
JABBOUR, Elias. A China é Socialista? in: Portal GGN. Disponível em: https://jornalggn.com.br/internacional/a-china-e-socialista-por-elias-jabbour/. 23 fev. 2021.
MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl; Engels, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2011. MARX, Karl. Cadernos de Paris e Manuscritos econômico - filosóficos de 1844. São Paulo: Expressão Popular, 2015.





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