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Compra de ouro por bancos centrais e investidores privados.*

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    Murphy Stay
  • há 6 horas
  • 5 min de leitura

 

Rolando Astarita

Tradução: Lucas Rodrigues



Fonte: © Thinkstock
Fonte: © Thinkstock

 


Talvez o ponto mais controverso da teoria monetária de Marx gira em torno do papel monetário do ouro. A ideia dominante, inclusive entre os marxistas, é que a teoria de Marx havia sido válida quando a libra esterlina, o dólar estadunidense e outras moedas eram oficialmente convertidas ao ouro, mas haveria ficado desatualizada com a inconversibilidade oficial (no caso do dólar as cédulas não foram resgatáveis ("redimibles") em ouro desde Janeiro de 1934).

Em vários links anteriores (veja aqui , aqui, aqui ) sinalizamos as principais críticas a esse enfoque. Dentre os argumentos, sustentamos que, segundo a teoria de Marx, o dinheiro surge da necessidade de expressar o valor das mercadorias a través de um equivalente que encarna valor (tempo de trabalho social, objetivado). Por isso, segundo este enfoque, o valor do dinheiro não pode se fundar simplesmente no respaldo dos governos, nem é mera criação estatal. Mais ainda, como sinalizou Marx, om respeito a regimes monetários sem convertibilidade oficial (Prússia, Inglatérra durante períodos prolongados no século XIX) a relação entre a cédula com o ouro se estabeleceu através do mercado (o valor da cédula pode ser considerado o inverso do preço do ouro). No entanto, ("pero además"), e isso é chave, é um dado da realidade que o ouro continua sendo um ativo de reserva dos bancos centrais das principais potências. Nos finais de 2022 representava 77% das reservas oficiais dos EUA (8.133 toneladas de ouro); 73,5% das de Alemanha (3.366 toneladas); 68,3% da Itália e 63,2% de França. São cifras não desprezíveis em termos de riqueza imóvil. Por exemplo, as reservas oficiais de ouro dos EUA, ao preço (julho 2023) de 1.957 à onça equivalem a uns 560.000 milhões ( o valor livro registrado no FED é muito menor, US$ 42,22 a onça).Para que se mantém a tesourada essa massa de valor? Uma teoria monetária coerente deve poder explicar esta permanência do ouro nos sistemas monetários.


Aumentos recentes de compras de ouro por bancos centrais


A fim de atualizar nosso argumento, destacamos que nos últimos anos, vários bancos centrais aumentaram significativamente as compras do metal amarelo. Segundo o World Gold Council, no ano passado os bancos centrais agregaram às suas reservas 1.136 toneladas; um aumento de 152% com relação ao ano anterior. Foi o 13º ano consecutivo de compras líquidas; E foi a demanda anual mais elevada desde que se mantém registros, 1950. A tendência parece continuar esse ano.)No primeiro trimestre de 2023 os bancos centrais junto a outras instituições oficiais incrementaram suas tendências de ouro 228 toneladas, um aumento de 176% com respeito a 2022. Também é mantida a demanda de ouro (moedas e barras de ouro, principalmente) com motivos de entesouramento: em 2022 foram 1.107 toneladas. Se houve uma queda na demanda por ouro para ETF, as tendências destes ao final de 2022 totalizaram 3.473 toneladas. (ETF, sigla em inglês para Exchange Traded Fund; é um ativo que cotiza na bolsa e está respaldado por um subjacente, no caso o ouro).

Voltando as reservas de ouro dos bancos centrais, o maior comprador nos últimos meses é o Banco Popular da China (BPC). Depois de um período em que havia diminuído suas compras, em novembro de 2022 anunciou a compra de 62 toneladas. Com ela, as reservas oficiais de ouro superaram pela primeira vez 2.000 toneladas. As compras continuaram na primeira metade de 2023; Hoje (princípios de Julho) o stock [preservamos o anglicanismo do original] de ouro do BPC alcança as 2.330 toneladas.


A motivação por detrás da compra do ouro.


Cada vez mais analistas de mercado do ouro e funcionários dos bancos centrais reconhecem que com suas compras de ouro muitos bancos centrais procuram respaldar suas moedas em um ativo que não é passivo de outro governo ou banco central. Em particular, se trata de reduzir a dependência com respeito ao dólar como moeda de reserva (operou-se uma desdolarização  de reservas internacionais nos últimos 20 anos; voltamos sobre esse tema em um próximo artigo.) Em particular, a diminuição da exposição ao dólar estaria no primeiro plano das preocupações da China. As sanções da OTAN à Rússia depois da invasão à Ucrânia foram um alerta. Com respaldo dos aliados europeus, os EUA congelou reservas oficiais russas; excluiu a Russia do sistema de comunicação SWIFT para as compras de ouro por parte dos bancos centrais, e o caso da China, em primeiro lugar , se explica nesse contexto de tensões geopolíticas crescentes. Lembremos que as reservas da China, avaliadas em uns US$ 3,2 Bilhões, estão majoritariamente em dólares e bônus do tesouro dos EUA. As compras de ouro reduzem a exposição a represálias financeiras e monetárias; e fortalecem o respaldo das moedas nacionais.

Em uma perspectiva histórica, se calcula que ao redor de 208.874 toneladas de ouro foram minadas ao longo da história (WGC, fevereiro 2023) das quais aproximadamente dois terços foram entre 1950 e o presente. Sempre segundo o WGC, todo o ouro extraído da terra entraria em um cubo de 22 metros de lado (No seu Ouro e moeda na história 1450-1920 Pierre Vilar diz que todo o ouro disponível na Europa em 1500 poderia ser contido em um cubo de 2 metros de lado). Dado para os defensores da teoria quantitativa do dinheiro: A massa de moeda-ouro nunca pode ser comparada com a quantidade de mercadorias multiplicadas pelos seus preços (inclusive quando regia o padrão ouro).

Destacamos por sua vez que se mantém o papel do metal amarelo com reserva de valor: Aos finais de 2022 o ouro em barras e moedas, incluindo o que respaldava ETFs, totalizava 46.517 toneladas (22% do total). O stock de ouro em forma de joalheria alcançava

95.547 toneladas (46%). Uma parte deste ouro é empregada em joalheria barata, já que o objetivo é o entesouramento (por exemplo, na índia). Por sua vez, os bancos centrais reuniam 35.715 toneladas (17%) e “outros” stocks 31.096 toneladas (15%).


O ouro como “existência da riqueza Abstrata”

Os dados anteriores encaixam mal com a conhecida afirmação de Keynes de que o ouro em sua função monetária seria “uma bárbara relíquia”, em vias de extinção, ou pouco menos. Passam-se os anos e as décadas e os Stocks da “bárbara relíquia” sustenta-se e inclusive se incrementam, na medida em que cresce a riqueza burguesa. A teoria de Marx, ao contrário, sugere uma explicação do fenômeno que parte de reconhecer que o ouro representa uma relação social (O Capital, Cap1,livro 1). De maneira que seu entesouramento deve poder se explicar pela mesma natureza do modo de produção capitalista. A esse respeito, Marx resgata o elemento de verdade contido no ideal mercantilista de acumular ouro e prata: É manifestação, diz, da “vocação da sociedade burguesa, fazer dinheiro”. Acumular ouro e prata é incrementar “a existência da riqueza abstrata” (Contribuição para a crítica da Economia Política). é “abstrata” porque o valor de uso do ouro passa a ser expressão do seu contrário, do valor, algo que é puramente social, por fora do conteúdo material da riqueza (questão teoricamente irresoluta para os que explicam o valor do dinheiro-ouro por sua utilidade). O qual subjaz a aspiração de “ correr atrás do tesouro eterno que não pode ser corroído nem pelas formigas, nem pela ferrugem” (Contribuição..).


Em definitivo, tudo indicaria que o ouro segue sendo “a forma sempre pronta, absolutamente social da riqueza” (O Capital), não só para investidores privados, senão também para os Estados capitalistas e seus bancos centrais: Daí também o fetiche do ouro. A crítica marxista não deveria ignorar estas questões, que estão no seio das contradições da mercadoria (e em consequência, do capital).



Referências bibliográficas:


MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. Tradução e introdução de Florestan Fernandes. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008. Notas do tradutor:


*Texto originalmente publicado no blog Economia e Marxismo no dia 27 de Julho de 2023 **Na tradução usamos  a edição da Contribuição à crítica da Economia Política da Expressão Popular para não  traduzir a passagem de Marx para uma terceira língua: Do alemão-espanhol-português. No  texto original de Astarita, a citação ao texto de Marx usa polilla onde a Expressão Popular  usou formiga. Pollila é literalmente Mariposa, o que é contra intuitivo para o leitor brasileiro  já que na passagem Marx se refere a algum animal capaz de “perfurar” as cédulas, como as formigas fazem com as folhas das árvores. ***No original: “y el de China”  expressão coloquial comum no espanhol rioplatense para se referir “ao caso de..” ou “na  situação de...”.


 

 
 
 

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