Marx e Engels: novas traduções (MEGA)
- Barravento Revista
- 2 de abr.
- 29 min de leitura

Traduzido do alemão para o inglês por Kaan Kangal.
Traduzido do inglês para o português por Marco Aurélio Palu.
Apresentação
Na última década, o Brasil sediou um número importante de eventos relacionados à divulgação do projeto MEGA² (Marx-Engels-Gesamtausgabe), as obras completas de Marx e Engels. Pesquisadores relacionados ao projeto estiveram em nosso país participando de eventos acadêmicos, editoriais e políticos falando sobre o processo de publicação dos originais de Marx e Engels. Nomes como Michael Heinrich, Marcello Musto, Terrel Carver, Kevin Anderson contribuíram por (re)ascender o crítico e instigante debate sobre o renascimento e a atualidade da obra de Marx e Engels.
Não são de hoje, no entanto, os esforços pela redescoberta do pensamento dos pioneiros da crítica da economia política. Desde os anos 1960, alguns autores brasileiros e internacionais - poucos, é verdade -, buscaram nas novas edições da obra marxiana o arsenal necessário para enfrentar as crises de todo tipo que assolavam o seu tempo. Biografias, coletâneas e livros sobre Marx e Engels foram sendo lançados em toda parte do planeta, do Japão ao Brasil. Os desafios materiais e espirituais postos pelo século XX e XXI mostram que é urgente e necessário o resgate da obra de Marx em todas as suas dimensões e regiões.
Dimensões até então desconhecidas ou negligenciadas da obra de Marx e Engels, como ecologia, etnia, atividade e organização partidárias, entre outras, podem ser desveladas a partir das publicações da MEGA.
Com a presente tradução do HKWM pode-se perceber que, embora o esforço e o rigor editorial não dispensem um método filológico-genético com princípios sólidos, uma certa hermenêutica também foi necessária no trabalho de redescoberta dos materiais de Marx e Engels (por exemplo, com o apoio de cartas a terceiros).
Desse modo, é notável que na falta de uma obra acabada e sistematizada, que fosse capaz de fornecer um caminho seguro aos fundamentos do método de Marx e Engels, muitos pensadores, atribuindo “lacunas” ao pensamento dos autores alemães, se socorriam de Hegel, Maquiavel - até mesmo Kant.
Como é sabido, Marx recusou enfaticamente ser um marxista. Em carta a seu genro, Paul Lafargue - publicada pela primeira MEGA, em 1924, e presente nas MECW/Volume 46 -, no ímpeto de livrar-se de maus entendidos envolvendo seu nome, o Mouro declara “tudo que sei é que não sou marxista”. Publicada pela MEGA², redigidas em Londres da segunda metade de 1879 até novembro de 1880 e contidas em seu caderno de excertos dos anos 1879-81, as Glosas Marginais ao Manual de Economia Política de Adolph Wagner, um dos últimos trabalhos de Marx em vida, revelam o que Marx pensa de seu “sistema”: o marxismo não é um sistema socialista, completo, fechado e finalizado.
Muito ao contrário, ao final do Prefácio à primeira edição de O capital Marx é enfático em afirmar que todo avanço científico é bem-vindo. O estilo de nosso autor não é, portanto, clássico e sistemático, mas sim, como consta no Posfácio à segunda edição do mesmo livro “crítico e revolucionário”.
Também fica claro o ganho editorial que o projeto representa nessa empreitada: até os anos 1960, Marx e o marxismo eram, com raríssimas exceções, um capital político da URSS e dos Partidos Comunistas ao redor do globo. Ou seja, cumpriam a função precípua de legitimar esse Estado e esses partidos.
No que se refere ao problema do Estado, por exemplo, a trilogia de escritos sobre a França parecia consagrar a definição de Estado como Estado burguês – algo que fazia muito sentido no país da Revolução de 1789 –, privilegiando um entendimento “histórico” sobre o “idealista” da juventude. Sem o conhecimento de obras como as Glosas Críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social” de um prussiano e a Crítica a filosofia do direito de Hegel, a primeira publicada por Franz Mehring, em 1902, e a segunda por Riazanov, em 1927, na primeira MEGA, seja por extravio, omissão, negligência ou desconhecimento desses textos, perdeu-se a dimensão de base no pensamento marxiano de que o Estado e a política estão em vínculo orgânico com a propriedade privada, sendo sua contrapartida ideal e esfera comunitária alienada. Essa dimensão inarredável do pensamento de Marx não seria convenientemente aceita na URSS de Stalin, principalmente se temos em vista que as necessidades de legitimação ideológicas só cresceram com a II Guerra Mundial e a configuração geopolítica bipolar. Entre outras coisas, isso levaria aos países do Leste Europeu a se entenderem como subsistema do capital, pois ainda que não orbitassem em torno da propriedade privada dos meios de produção, isto é, ainda que não de forma propriamente capitalista, geriam seu capital mediante uma outra forma de propriedade, igualmente estranhada, a propriedade coletiva/não-social.
Talvez a maior e mais polêmica conquista atingida pelo projeto se refere aos manuscritos de O capital produzidos por Marx na década de 1860. Já é amplamente sabido as alterações, adições, supressões e subdivisões capitulares feitas por Engels na publicação dos livros II e III – especialmente desse último. Por exemplo, o capítulo sobre a crise do capital no livro III é seguido pelo da queda tendencial à queda de lucro, levando a um entendimento de que um deriva do outro. Algo que levou e ainda leva à resistências e óbices de toda sorte, dado que gerações de leitores, estudiosos e militantes ao redor do mundo se formaram nos originais e traduções baseadas nas publicações feitas por Engels. Graças à MEGA² hoje se sabe, mediante a consulta dos manuscritos originais de Marx, que isso foi realizado por Engels.
Ainda que os pesquisadores da MEGA, hoje tido como os herdeiros/guardiões do legado pessoal/autoral de Marx e Engels, insistam que são mais filólogos que políticos – afinal não se sabe se esses “marxólogos” são ou não efetivamente marxistas, pois isso não deixam claro - e que inclusive tenham essa ambiguidade em boa conta -, é um fato que confirma o infortúnio pela qual a obra de Marx ainda padece.
Isso, no entanto, não retira deles o mérito e o sucesso naquilo que se propõem.
Parte I
1. O projeto de Obras Completas de Marx & Engels (Marx-Engels-Gesamtausgabe [MEGA]) encarou desafios bem além daqueles tipicamente vistos em revisões, coleções, e processos editoriais de qualquer corpo editorial substantivo nesse nível[1]. Como parte integrante da história da recepção do marxismo no século XX, ela esteve diretamente envolvida em disputas sobre sua apropriação. As contradições decorrentes do fato de que o MEGA é tanto um projeto editorial acadêmico guiado pelos princípios da análise histórico-crítica dos textos, quanto um empreendimento dependente de mudanças políticas e financiamento estatal, podem ser estudadas exemplarmente em dois — ou, estritamente falando, até três – projetos da MEGA: o primeiro de 1924 até 1941, na União Soviética; o segundo, conhecido como MEGA², de 1965, na RDA (antiga República Democrática Alemã, ou Alemanha Oriental); e finalmente, depois de um hiato e um relançamento com conceito modificado e pequenas modificações pessoais, desde 1990, na Alemanha Ocidental.
O esforço em fornecer a fundamentação mais abrangente possível para o estudo das obras e biografias de Marx e Engels inevitavelmente entrou em conflito com as necessidades estatais de legitimação ideológica expressas pelo marxismo-leninismo. Uma preservação e uma disseminação irrestritas das obras originais livre de deferências estatais era impossível e, no caso da primeira MEGA, com o projeto tendo mesmo sido suprimido pela repressão e pela perseguição política. Ao mesmo tempo, o legado de Marx e Engels era gradativamente ameaçado pelo fascismo. Nesse sentido, foi corretamente observado retrospectivamente – logo após o resgate do projeto em meio às inseguranças vindas dos abalos históricos de 1989/90 – que “A MEGA é, no real sentido da palavra, um empreendimento secular, e seu começo, suas vicissitudes, e seu renascimento, espelham, quase paradigmaticamente, as tragédias históricas do século XX”.[2]
As origens do projeto remontam aos anos 1880. De acordo com a visão de Engels, uma edição ideal deveria compilar todos os escritos de Marx em ordem cronológica, apresentando os textos em sua forma histórica – sem cortes ou alterações, mas com os erros textuais corrigidos – e com o entendimento facilitado por meio de prefácios e notas de rodapé explicativas. No entanto, Engels, a quem foi confiado pelos herdeiros de Marx a preservação de seu legado, fora incapaz de conduzir seriamente um projeto editorial integral, devido principalmente aos seus mais de dez anos de trabalho editando o segundo (1885) e o terceiro (1894) volumes de O capital. Em vida, Engels permitiu “o partido” reimprimir apenas “umas poucas coisas menores” de Marx em “itens individuais, sem notas explicativas ou prefácios”, a fim de evitar “esse estilo fragmentário na edição completa, cuja publicação final estou comprometido”[3].
Ao mesmo tempo, Engels ficara satisfeito em ver que Eduard Bernstein “estava ansioso em iniciar-se nesses hieróglifos”, de tal forma que ele poderia mais tarde trabalhar nas “edições reunidas de coisas de Marx e eu mesmo”, incluindo também Karl Kautsky nessas “provisões necessárias”[4].
Sob a supervisão de Engels, várias obras foram publicadas, incluindo Trabalho assalariado e capital (1884 e 1891), A miséria da filosofia (traduções alemãs em 1885 e 1892), O 18 de brumário de Luís Bonaparte (3ª edição de 1885), A crítica o programa de Gotha (Neue Zeit, 1891), e A guerra civil na França (1891). Wilhelm Liebknecht já tinha apresentado a ideia de uma edição completa dos escritos de Marx em 1883. Entretanto, no âmbito de uma Biblioteca Internacional, apenas uns poucos trabalhos separados foram publicados, incluindo Revolução e contrarrevolução na Alemanha[5], e uma nova edição de Contribuição para a crítica da economia política[6], ambos editados por Kautsky.
Após a morte de Engels, em 1895, vários projetos editoriais foram iniciados pelo SPD, o qual gradualmente se tornou herdeiro de grande parte do legado de Marx e Engels. O primeiro passo foi uma edição em quatro volumes, Aus dem literarischen Nachlass von Karl Marx, Friedrich Engels und Ferdinand Lassalle, preparado por Franz Mehring em nome da liderança do partido e publicado pela Dietz, em 1902. Essa edição incluía algumas obras desconhecidas da década de 1840. Já a edição em três volumes das Teorias da Mais-valia[7], editada por Kautsky entre 1905 e 1910, dava sequência à publicação do extenso legado de manuscritos de Marx relativos à crítica da economia política, uma tarefa que Kautsky havia iniciado sob a orientação de Engels.
Na virada de 1910/11, um encontro ocorreu em Viena com as presenças de Marx Adler, Otto Bauer, Adolf Braun, Gustav Eckstein, Rudolf Hilferding, Karl Renner, e David B. Riazanov. Os participantes acordaram que, depois de expirar a lei de direitos autorais, em 1913, O Partido Social Democrata Alemão (SPD) teria como tarefa a produção de “uma edição completa das obras de Marx que reuniria todos as exigências científicas, totalmente perfeita, sistematicamente organizada, comparada com os manuscritos e as várias edições dos escritos de Marx, incluindo uma introdução e também longos índices”. [8]
Seguida dessa decisão, em 1913 foi publicada uma edição de quatro volumes da correspondência entre Marx e Engels (Briefwechsel zwischen Marx und Engels), editada por August Bebel e Bernstein. Os debates desencadeados por essa publicação revelaram, pela primeira vez, a tensão aguda entre os interesses do partido e os objetivos editoriais do projeto em sua integralidade. Bebel, Kaustky, Mehring, entre outros, temiam que uma publicação completa pudesse desacreditar determinados indivíduos e com isso prejudicar o partido. Por fim, contra a ideia original de Bernstein, ficou decidido em se publicar sob forma editada e parcialmente resumida as cartas, com algumas delas ficando inteiramente omitidas, sem critérios específicos para tais alterações. Essa decisão, por sua vez, despertou uma controvérsia sobre o valor mesmo dessas publicações. Somado a isso, Kautsky preparou uma “edição popular” do primeiro volume de O capital (1914), a qual incluiu um longo prefácio do editor, uma bibliografia, um índice de nomes, e um índice de assuntos - o último compilado por Riazanov. Em 1917, no decorrer da I Guerra, foi publicada uma coleção de dois volumes dos escritos de Marx e Engels, entre 1852-62, também editada por Riazanov. Entretanto, esses passos iniciais tornaram acessíveis apenas uma parte do legado literário de Marx e Engels.
Capa da edição publicada por Riazanov em 1927.
2. A primeira MEGA – foi só na União Soviética que foram estabelecidas as condições para uma edição das obras completas. Por um lado, isso fortaleceu os laços partidários, com o projeto vindo a ser, na sequência imediata da cisão no interior do movimento dos trabalhadores, uma iniciativa do Comintern, o qual decidiu implementá-lo sob a forma da MEGA em seu 5º Congresso Mundial, sediado em Moscou – que se combinava com a expansão do status das figuras clássicas do marxismo, incluindo Lênin, e depois, temporariamente, Stalin –, o que vinculou irrevogavelmente o projeto ao Estado Soviético e a seu partido. Por outro lado, a MEGA não teria acontecido sem os esforços de pesquisa profissionais e independentes de especialistas.
2.1 Riazanov tocou o projeto em frente, para o qual ele já tinha recebido permissão, em 1921 – enquanto Lênin ainda era vivo -, para contratar “colaboradores de fora do partido”[9]. Seus estreitos vínculos com a Social Democracia Alemã remontam aos tempos pré-guerra. Desde 1907, ele vivera como imigrante na Alemanha, Áustria, e Suíça, onde ele já teria se concentrado em assuntos editoriais. A liderança do SPD permitiu a ele fotografar o legado manuscrito. Além disso, Riazanov estabeleceu uma rede de correspondentes internacionais. Em Colônia, Trier, Paris, Bruxelas, e Londres, indivíduos reconhecidos puseram-se a trabalhar coletando documentos e materiais. A despeito das convulsões sociais, partes do legado – particularmente as cartas – foram continuamente transferidas para o arquivo de Moscou (o qual depois se tornaria parte do Arquivo do Estado Russo para História Política).
O projeto ficou assegurado por meio de acordos entre o Instituto Marx-Engels, de Moscou, e o Instituto para Pesquisa Social, em Frankfurt am Main, sob a liderança de Carl Grünberg, assim como também pelo estabelecimento da Sociedade Marx-Engels de Editores (Marx-Engels-Verlags-Gesellschaft), depois Marx-Engels-Verlag, sediada em Berlim.[10] Nessas bases, Riazanov dá início em Moscou a edição planejada em 42 volumes, a qual foi publicada em Frankfurt am Main e Berlim e, após 1933, impressa em Leningrado. Entre 1927 e 1941, doze volumes foram publicados. Neste contexto, uma série de primeiras edições foram lançadas – primeiro pelo Marx-Engel-Archiv, em 1925, e depois na MEGA -, as quais estimularam os estudos de crítica social, tais como o capítulo sobre Feuerbach, de A ideologia alemã, e A dialética da natureza, de Engels; os Manuscritos de 1844[11], e A ideologia alemã[12]. Particularmente, os assim chamados escritos juvenis fomentaram um debate sobre alienação e reificação no capitalismo. Em 1939, os Grundrisse foram publicados pela primeira vez em um volume especial da MEGA; seu impacto nas pesquisas sobre Marx não se deu antes da reimpressão realizada na Alemanha Oriental, em 1953.
2.2 Riazanov adere aos princípios histórico-filológicos de crítica textual. Além da publicação completa, baseada nas exigências da versão final, incluía-se agora o registro das relevantes versões manuscritas e impressas e também, ao menos em princípio, uma análise genético-textual. Ademais, teve lugar agora a proibição de interferências: todos os textos foram apresentados na língua original com base na testemunha textual específica, com ortografia e pontuação modernizadas e padronizadas, em contraste com as práticas editoriais da segunda MEGA. A equipe editorial de Riazanov fez contribuições extraordinárias, especialmente na transcrição de manuscritos complexos, determinando a autoria dos trabalhos publicados no anonimato e pseudoanonimato, bem como os datando. Porém, a tendência de Riazanov, movido por urgências políticas, em lançar seus projetos com preparação incompleta, teve um impacto negativo na consistência de seu quadro de publicações. Devido à falta de diretriz editorial adequada, não havia um esquema fixo que atribuísse às várias seções ao material, nem estrutura nem organização internas dos volumes individuais, especialmente de seu aparato acadêmico.
2.3 Com a consolidação do regime stalinista e a ascensão ao poder dos nazistas, o projeto se encontrou sujeito às contingências da Era dos Extremos (Hobsbawn). Depois de 1933, a impressão e a distribuição das obras de Marx e Engels não foram mais possíveis na Alemanha. Em maio daquele ano, volumes da MEGA foram até mesmo tacados na fogueira. Eles também não podiam mais ser emprestados nas bibliotecas. De forma ousada e ao custo de perdas materiais substanciais, o espólio fora contrabandeado da Alemanha e lotado em um cofre de banco em Copenhague. Negociações entre a liderança exilada do SPD e o Instituto de Moscou sobre a venda e o armazenamento seguro do material falharam. Em 1935, as pequenas e grandes séries dos manuscritos econômicos de 1857/58 e 1861-63, juntamente a outros manuscritos menores, foram entregues ao Instituto de Moscou, via embaixada soviética em Viena, por meio do intermediário Marek Krieger.[13] Somente com a aquisição pelo Instituto Internacional de História Social, fundado em Amsterdã, em 1935, e sua transferência para a Inglaterra durante a ocupação alemã da Holanda, a totalidade da coleção foi salva da destruição.
Porém, o fator decisivo foi o desenvolvimento dentro da própria União Soviética. Stalin há muito via Riazanov, que desafiava os seus dogmas, como uma pedra em seu sapato. O trabalho de seu instituto foi se tornando cada vez mais difícil. Até onde pôde, Riazanov defendeu seus funcionários da perseguição política, garantindo que “à sua equipe exilada fosse permitida continuar trabalhando no local de exílio mediante o pagamento de uma taxa”[14]. No outono de 1930, Riazanov reclama que uma grande parte de sua equipe estava empregada apenas em meio turno, com alguns membros até mesmo “trabalhando no mesmo assunto simultaneamente para dois institutos”,[15] enquanto que o Instituto Lênin, responsável pela edição das obras de Lênin, podia recorrer a uma força de trabalho muito mais robusta.[16]Em 1931, num gesto de remover Riazanov e acabar com seu trabalho editorial independente, o Instituto Marx-Engels foi fundido com o Instituto Lênin; dos 243 empregados que foram “conferidos” durante esse processo, 131 foram dispensados[17], com o próprio Riazanov sendo exilado em Saratov e substituído por Vladmir Adoratskii. Entre os dispensados estava também Karl Schmückle, que tinha liderado o “grupo alemão” no departamento editorial. [18] Ele e Riazanov foram depois acusados, durante o Grande Terror, de atividades contra o estado e executados em 1938. A edição, despojada das suas melhores forças após 1931 (em sua maioria, os volumes editados sob Adoratskii foram preparados por Riazanov), foi descontinuada em 1941.
3. A Segunda MEGA – A descontinuação da edição crítico-textual não significou o fim completo da edição das obras completas. Pois, mesmo no interior do marxismo-leninismo, havia o interesse em tal edição, de forma que tornasse o “cânone” disponível para o trabalho do partido e servisse como elemento nuclear da formação escolar e universitária.
3.1 O trabalho de edição como reconstrução – A edição russa das obras de Marx-Engels (Sochinenia) pretendia cumprir duas funções. Essa edição, que foi planejada para aparecer simultaneamente com a primeira MEGA, já tinha sido decidida pelo 13º Congresso do Partido Comunista da União Soviética (bolchevique), em 1924, com a publicação se iniciando em 1928. Ela continuou mesmo após a suspensão da MEGA e, depois de ser interrompida pela Segunda Guerra Mundial, foi completada em 1947 com 28 volumes (o volume 20 não foi publicado) ao longo de 33 livros, marcando a primeira edição completa. Assim como a primeira MEGA, essa ficava dividida em três seções (obras, Capital, correspondências). Incluía 1.247 escritos e ensaios, assim como 3.298 cartas – 600 das quais foram publicadas pela primeira vez e apresentadas em texto integral, em oposição à edição de 1913. Após a morte de Stalin em 1953, essa edição foi substituída por uma segunda edição expandida em 39 volumes, e depois suplementada por 11 volumes adicionais, devido a cartas e documentos recém-descobertos.
Essa segunda edição russa serviu de base para a edição em língua alemã (MEW), que atraiu interesse significativo, particularmente na zona de ocupação soviética e na RDA, em parte porque fornecia os fundamentos necessários para as inúmeras edições individuais publicadas pós-1945. A decisão de criar essa edição foi tomada no Ano Karl Marx de 1953, tendo sido tomada pelo Instituto para o Marxismo-Leninismo no Comitê Central do SED (Partido Socialista Unificado da Alemanha). Em 1968, 39 volumes foram publicados (posteriormente mais 5 volumes suplementares).
A MEW contém todas as obras, escritos, e artigos que foram editados (incluindo as várias obras anteriormente desconhecidas), junto com uma seleção de manuscritos, rascunhos, e materiais preparatórios (somando por volta de 1.700 textos), assim como todas as cartas preservadas pelos autores (pela primeira vez incluindo aquelas destinadas a terceiros, do qual um terço foi traduzido para o alemão). Foram feitas exceções ao princípio de integralidade do projeto com relação aos escritos juvenis, os quais foram posteriormente publicados em dois volumes suplementares, e a alguns escritos críticos sobre a autocracia russa e sua política externa (incluindo as revelações sobre a história da diplomacia no século XVIII).[19] Como evidenciado nas introduções e comentários, essa edição, que era internacionalmente respeitada, foi novamente alvo de interesse político.
A MEW foi considerada como uma edição de estudo, sem a ambição de completude, sendo destinada ao público leitor mais amplo. No entanto, a edição complexa, com suas ricas anotações no corpo do texto, era usada menos como uma “edição popular” e mais em consonância com as necessidades científicas de utilização de acadêmicos interessados. Ela também serviu de base para inúmeras edições individuais e selecionadas, e usada para traduções em outras línguas. Nesse sentido, a MEW assumiu os encargos e as funções de uma edição moderna e cientificamente reunida, muito embora tenha sido incapaz de cumprir essas demandas.
3.2 O início em 1965 – o conceito de MEGA de Riazanov foi revisitado no contexto do debate sobre o escopo e a estrutura da segunda edição expandida da Sochinennia durante o período do assim chamado degelo em Moscou e Berlim. Entretanto, demorou outras duas décadas para que um sucessor fosse estabelecido “após um longo e árduo trabalho”. [20] Esse atraso se deveu principalmente às preocupações ainda prevalecentes na liderança do partido, especialmente no PCUS, de que a MEGA tivesse um carácter “predominantemente” “científico-acadêmico” [21] e, além disso, pudesse minar a teoria marxista-leninista, pois demonstrava que poderia superar a edição de Lenin em volume.
Em 1965, uma comissão editorial conjunta ficou encarregada da preparação da edição; somente dez anos depois é que foi publicado o primeiro volume da segunda MEGA. Mesmo de uma “perspectiva marxista-leninista” foi surgindo gradativamente o entendimento de que “a retenção politicamente motivada das obras de Marx e Engels [...] seria anticientífica e politicamente insensata”. [22] Mesmo com toda a oposição, o princípio mesmo de integralidade do projeto poderia assim ser mantido. No que se refere à estrutura, foi adotada a divisão básica de Riazanov por tipo de obra, com escritos introdutórios – sumários, excertos, cadernos, notas individuais, listas literárias, e anotações marginais – sendo reunidos em uma seção adicional. Esse projeto, que em muitos sentidos segue os padrões científicos – o excelente trabalho filológico realizado em Berlim e em Moscou foi amplamente reconhecido pela comunidade acadêmica internacional –, foi clara e inerentemente marcado por “uma relação tensa entre o credo marxista-leninista e as aspirações acadêmicas, os propósitos legitimadores e o cuidado editorial”.[23]
3.3 Recomeço de 1990 – se a MEGA deveria ou não continuar após o fim da RDA e da União Soviética foi uma controvérsia política e científica entre aqueles que agora tomavam decisões diante de novas estruturas de poder. A transição bem-sucedida para uma “edição acadêmica e independente do partido”[24] se deveu principalmente às parcelas interessadas do público alemão e internacional – como expresso, por exemplo, em uma campanha de apoio sem precedentes de acadêmicos japoneses.
O Instituto Internacional de História Social e a Casa Karl Marx da Fundação Friedrich Ebert, em acordo com os editores anteriores de Berlim e Moscou, fundou a Fundação Internacional Marx-Engels em Amsterdã, em outubro de 1990, a qual adquiriu todos os direitos autorais e desde aí continuou a MEGA. Além das instituições acima mencionadas, são membros a Academia de Ciências Berlim-Brandenburgo, o Centro de Pesquisas Históricas da Fundação Friedrich Ebert, em Bonn, e o Arquivo para História Política e Social do Estado Russo, em Moscou. Em 1993, de acordo com um comitê internacional presidido pelo filósofo Dieter Henrich, o Conselho de Ciência Alemão recomendou sua continuação. Os princípios editoriais foram revisados, reduzindo o escopo de 164 para 114 volumes, com os planejados 40 volumes de notas marginais de Marx e Engels sendo abandonados, entre outras alterações. A estrutura anterior foi mantida: Obras, artigos, rascunhos (32 volumes), na seção I; Capital e manuscritos preparatórios (15 volumes), na seção II; Correspondência (35 volumes), na seção III; e Excertos, notas e anotações marginais (32 volumes), na seção IV.[25] Daí em diante, a responsabilidade científica coube a uma rede de pesquisa internacional com times editoriais em três continentes (na Europa, Japão e EUA, do qual o centro de comunicação está localizado na Academia de Ciências Berlim-Brandenburgo.
4.1 O novo material disponibilizado na segunda MEGA, principalmente através da extensa seção de excertos, documenta minuciosamente o processo de estudo de Marx. Isso inclui, por exemplo, os excertos de ciências naturais, geologia e química, que fornecem novos parâmetros sobre a visão de Marx da relação entre sociedade e natureza[26], e também os elementos de um marxismo ecológico em sua obra.[27] Também foi significativamente expandida a base de materiais a respeito de seus escritos políticos e jornalísticos (New York Tribune, excertos históricos, minutas do Conselho Geral da AIT), aprofundando assim a compreensão da atividade política de Marx.
Particularmente significativa para a reconstrução de sua obra principal é a seção de O capital, a qual inclui todos os manuscritos econômicos de 1857 em diante, assim como a seção IV (os cadernos de Manchester, Paris e Londres). Pela primeira vez o processo de pesquisa de Marx é documentado de forma abrangente. Em seu Prefácio à edição popular do volume II do Capital, Kautsky lança suspeita de que Engels “nem sempre compreendeu a linha de pensamento e nem sempre organizou e editou os manuscritos de acordo com ela”. A publicação completa fornece um novo ímpeto à pesquisa e discussão sobre a divisão de contribuições entre Marx e Engels nos volumes II e III de O capital, nas versões manuscritas e impressas do volume III, e nos planos gerais inacabados da principal obra, assim como as questões mais amplas relativas à gênese, escopo, e relevância contemporânea da análise de Marx sobre o capitalismo. Graças às publicações de cartas de terceiros, as quais estão disponíveis em sua totalidade até o fim de 1866 na seção III, a “história textual autêntica” do Capital pode ser “bem melhor” reconstruída “do que fora possível aos comentadores e leitores anteriores, os quais tiveram que confiar exclusivamente nos relatos pessoais, mais ou menos subjetivos [...], dos nossos dois autores”.[28]
4.2 Ao mesmo tempo, os desafios surgidos das diferentes necessidades na leitura e uso dos textos tornaram-se aparentes. O aspecto decisivo aqui é o princípio genético-textual, que dá forma aos princípios de qualquer edição crítica de obras com base em padrões editoriais modernos. A inspiração filológica na preparação da segunda MEGA foi retirada de Goethe e Brecht: o objetivo principal não é mais produzir um texto que fique o mais próximo possível das intenções do autor, mas sim documentar o texto em sua gênese, desde o primeiro rascunho até a versão final. A revisão crítica do texto, no sentido de corrigir as passagens claramente errôneas, é levada a cabo com grande cautela e detalhamento. Utilizando de um método originalmente desenvolvido por Richard Sperl e Inge Taubert, a gênese de uma obra é desvelada desde seus rabiscos conceituais até a versão final autorizada: as obras separadas são reproduzidas em sua inteireza na seção textual, baseados ou no manuscrito, ou na primeira impressão. Mediante várias consultas ao aparato acadêmico o desenvolvimento do texto em sua totalidade pode então ser rastreado e compreendido.
Desde o seu lançamento a segunda MEGA foi acompanhada por controvérsias envolvendo essa abordagem. Membros da equipe do Sítios Nacionais de Pesquisa e Memória da Literatura Clássica Alemã, de Weimar, não viam a “gênese documental” das obras separadas como “uma tarefa independente de uma edição completa e historicamente crítica”[29] Além de uma investigação específica sobre a história filológica das obras, também foi possível interagir e recepcionar as obras de Marx e Engels sem depender totalmente da gênese textual e de diferentes versões minuciosamente preparadas.
As aspirações de Marx e Engels não seriam tão bem atendidas se suas obras fossem apenas cuidadosamente restauradas, reduzindo assim o marxismo a uma “história das ideias focado unicamente na perpetuação e interpretação daquilo que Marx pensou”.[30] O fato de que, após 1990, os esforços editoriais relativos ao legado de Marx e Engels pudessem ser desvinculados de sua constelação de compromissos políticos e ideológicos prévios não significou o fim da tensão entre as suas recepções acadêmicas e as críticas da prática social da obra agora academicamente processada. Mesmo o seu papel como componente central da ideologia oficial não acabou, como o trabalho editorial e as discussões na República Popular da China demonstram. Entretanto, com a segunda MEGA, uma fundação sólida foi estabelecida, contra as quais todas as formas e trabalhos de divulgação do legado de Marx e Engels devem ser confrontados.

Parte II
1. China – A Marx-Engels-Gesamtausgabe cumpre um importante papel na República Popular da China, como demonstrado por vastos esforços de tradução e pesquisa, particularmente a partir dos anos 1990. Nesse contexto, a MEGA¹, iniciada por David B. Riazanov, foi compreendida como um objeto de pesquisa historiográfica, enquanto que a MEGA² amplamente traduzida para o chinês.
Indicações primárias de que a emergência da MEGA¹ já tinha atraído interesse na República da China (1911–1949) podem ser encontradas em 1933 nos jornais de esquerda e de orientação marxista Xianxiang Yiekan (Fenômeno Mensal) e Chuban Xiaoxi (Publicações da Atualidade). Em 1939, Wu Enyu, sob a supervisão de Harold Joseph Laski, escreveu uma tese de doutorado em Londres intitulada A evolução das ideias sociais e políticas de Karl Marx com especial referência ao período 1840-1848, na qual ele usava volumes da MEGA¹ como fonte.[31]
Naquele momento, os escritos de Marx e Engels ainda eram amplamente desconhecidos na China. O Manifesto foi publicado em chinês na sua totalidade pela primeira vez em 1920, enquanto o primeiro volume do Capital apareceu somente em 1936.[32] Os volumes originais da MEGA¹ estão disponíveis apenas em algumas poucas instituições acadêmicas tendo sido traduzidos para o chinês só em fragmentos. A tradução e publicação sistemática e planejada dos trabalhos de Marx e Engels começa em 1956, sob a direção do Gabinete Central de Compilação e Tradução (GCCT) em Pequim, que operava sob o Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh). Em 1985, foi produzida uma edição chinesa de 50 volumes, baseada principalmente na segunda edição russa da Marx-Engels Collected Works (MECW).
Enquanto essa edição cumpria um papel crucial na disseminação e no estudo dos escritos de Marx e Engels, ela também exibia fraquezas substantivas – principalmente porque quase todos os textos foram traduzidos do russo e não das línguas originais.[33] Em 1986, no sentido de fornecer uma apresentação mais compreensível e confiável das obras de Marx e Engels, o Comitê Central do PCCh decidiu produzir uma segunda edição chinesa. Após uma comparação de várias edições estrangeiras da MECW, foi determinado que essa nova edição seria baseada originalmente na MEGA². O projeto previa uma edição em 70 volumes, estruturados em quatro seções similarmente a MEGA²: obras, Capital e manuscritos afins, correspondências e excertos. No entanto, essa segunda edição chinesa seria menos extensa que a MEGA²: as últimas duas seções seriam traduzidas somente em parte (por exemplo, a maioria das cartas endereçadas a Marx e Engels seria omitida), e os volumes dos aparatos seriam completamente excluídos. Os primeiros três volumes apareceram em 1995, e em 2017, 28 volumes foram publicados.
Na preparação e desenvolvimento da segunda edição chinesa, numerosos artigos da MEGA² - incluindo seus planos editoriais, linhas diretivas, e introduções aos volumes individuais – foram traduzidos para o chinês e publicados em jornais do GCCT dedicados aos estudos sobre Marx/Engels ou Marx-Engels-Lênin-Stalin. Entretanto, esses jornais foram destinados ao uso interno do GCCT. Na verdade, essas publicações eram essencialmente um periódico cujos títulos variados refletiam seu foco em evolução: Materiais sobre as obras do marxismo-leninismo em resumo (1978-1981), Materiais de pesquisa sobre marxismo-leninismo (1982-1989), Estudos de Marx-Engels (1989-1995), Estudos de Marx-Engels-Lênin-Stalin (1996-2006, formada pela fusão do periódico anterior com os anteriormente separados Lenin Studies e Stalin Studies), e, após 2006, Materiais de pesquisa sobre marxismo.[34]
3. Bastidores políticos da ascensão da MEGA na China – somente um pequeno número de leitores chineses foram capazes de estudar as obras de Marx e Engels no alemão original. Consequentemente, a tradução desses textos do alemão para o chinês foi essencial para disseminação do marxismo na China. No entanto, esse processo vai bem além da mera conversão linguística, ele também requere um entendimento profundo dos textos originais e uma análise cuidadosa das similaridades e diferenças entre as culturas ocidental e chinesa. Mao-Tsé-Tung já tinha reconhecido o significado do trabalho de tradução durante a Guerra Sino-Japonesa em Yan’an. Ele considerava o monge Xuanzang – quem, durante o reinado do imperador Taizong de Tang (século VII), tinha traduzido inúmeras escrituras budistas para o chinês, principalmente do sânscrito – e o renomado escritor e tradutor Lu Xun, como figuras ativas no Movimento 4 de Maio, que tinha promovido a recepção da cultura ocidental na República da China, como modelos para a tradução chinesa.[35]
Durante o 7º Congresso do Partido (1945), Mao criticou fortemente a tendência em desvalorizar o trabalho de tradução e enfatizou que o marxismo-leninismo teria permanecido desconhecido na China sem os esforços dos tradutores.[36]
Na China, a tradução das obras dos clássicos do marxismo contribuiu para a transformação dos discursos teóricos e políticos desde a fundação da República Popular. Mais ainda, como Ngeow Chow Bing argumenta em seu estudo sobre o GCCT, a “pesquisa marxista” permanece importante para o Partido Comunista da China, tal como a justificação “ideológica” continua a ser um componente crucial no processo de tomada de decisões.[37] “Se reformas políticas e econômicas pudessem ser formuladas nos termos que Marx teria aprovado, essas reformas teriam tido uma resistência menor. Assim como é improvável que o Partido advogue a democratização à maneira ocidental, ideias sobre reforma encontradas nos escritos de Marx e Engels, e mesmo de Lênin, essa combinação de marxismo e reformismo do GCCT pode muito bem ser relevante”[38] Ngeow enxerga o GCCT cada vez mais o GCCT como um “think tank político”, cuja liderança inclui “defensores bem conhecidos das reformas políticas e da democracia”.[39]
4. Pesquisa e controvérsias – a relevância da nova edição chinesa das obras de Marx e Engels se tornou evidente à luz dos desenvolvimentos históricos. De 1949 até 1978, a investigação marxista na República Popular da China foi baseada largamente nos desígnios do “diamat”. Com a publicação da nova edição, esforços têm aumentado a libertação das amarras da teoria marxista dogmática tradicional e ajudado a reinterpretar a doutrina de Marx incorporando métodos hermenêuticos e fontes até então inacessíveis.
Pedra angular nesse desenvolvimento foi a marca do livro de Zhang Yibing, Huidao Makesi (Back to Marx), de 1999. Diferente de todo trabalho de pesquisa do marxismo chinês, ele grifou a importância do retorno aos textos originais. O livro recebeu atenção considerável na China, a despeito de enfrentar críticas contundentes – alguns temiam que uma reconstrução meticulosa dos textos pudesse ofuscar seus interesses práticos [40] - a tendência em direção à pesquisa textual ganhou apoio e reconhecimento, principalmente entre jovens estudiosos marxistas.
Nesse contexto, Wang Dong propõe as novas bases para a pesquisa de Marx (2006), onde ele rejeita os três modelos interpretativos tradicionais – nomeadamente, explicar o pensamento de Marx da perspectiva de Engels, da União Soviética, ou do Ocidente – ao contrário, defende uma interpretação baseada nos próprios escritos de Marx, enquanto que estabelece simultaneamente uma tradição independente na investigação marxista chinesa. É frequentemente lamentado que não haja uma pesquisa original chinesa nem baseada na MEGA², em contraste ao grande volume de traduções de obras internacionais (às quais apareceram, por exemplo, nos jornais Tendências Teóricas Internacionais e Marxismo e Realidade). Além disso, o desenvolvimento e publicação da própria MEGA² ocorreu em grande parte sem o envolvimento do partido (enquanto que, por exemplo, pesquisadores japoneses há muito tempo desempenharam um papel importante nisso). O primeiro estudo conjunto sobre a história da MEGA e seus princípios editoriais foi Da MEGA¹ à MEGA²: a emergência e o desenvolvimento das obras reunidas de Marx e Engels, de Zhao Yulan (2013).
A adoção da MEGA² na China tem sido, entretanto, contraditória. Enquanto Nie Jinfang e outros defendem que a recepção ortodoxa somente pode ser superada, e um verdadeiro entendimento do marxismo adquirido, se alguns textos de Marx e Engels ainda desconhecidos em chinês – principalmente manuscritos, excertos e notas – forem traduzidos e estudados em grande profundidade,[41] outros, tal como Hu Daping,[42] pedem que a pesquisa marxista foque mais em questões atuais de desenvolvimento que a sociedade enfrenta. Há ainda aqueles que questionam o projeto da MEGA² como um todo. Sun Leqiang (2012) critica que ambos os projetos da MEGA estão manchados pela ideologia soviética desde o seu início. À respeito da MEGA² há ainda o debate sobre as diferenças entre a MEGA-Dietz e a MEGA-Akademie. Xia Fan aponta para a controversa classificação do manuscrito sobre Feuerbach dentro do complexo IA (Ideologia alemã), demonstrando com a visão da MEGA-Dietz mudou com relação à da MEGA-Akademie, e de como a última desconstruiria o legado de Marx.[43]
A MEGA² também desperta, aqui e ali, expectativas irrealistas, tal como a crença de que irá se criar uma imagem nova e sem falhas de Marx que resistiria a toda crítica ao marxismo. Wei Xiaoping rejeita tais mistificações e clama por uma abordagem mais realista, que reconheça as funções fundamentais da MEGA²: apresentar o texto e o processo criativo de Marx e Engels na sua inteireza e com fidelidade, permitindo deste modo uma abordagem acadêmica à sua obra e tornando evidente o seu valor único.[44]
Referências da Parte I
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Referências da Parte II
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Esta é uma tradução do verbete ‘MEGA’, presente no Dicionário Histórico-Crítico do Marxismo (Historisch-Kritisches Wörterbuch des Marxismus [HKWM]), vol. 9/I (Hamburgo: Argument, 2018), pp. 388-404.
© Berliner Institut für kritische Theorie (InkriT)
[1] - Esta é uma tradução da entrada ‘MEGA’ no Dicionário Histórico-Crítico do Marxismo (Historisch-Kritisches Wörterbuch des Marxismus [HKWM]), vol. 9/I (Hamburgo: Argument, 2018).
[2] - Lohmann 1999.
[3] - Engels 2001a, p. 210. See also Engels 2004, pp. 497-8.
[4] - Engels 2001b, pp. 258-9.
[5] - Volume 24, 1896.
[6] - Volume 30, 1897.
[7] - Aqui optamos por traduzir do inglês Surplus como ‘mais-valia’ e não “mais-valor”, tal como o termo vem sido traduzido (corretamente) do alemão Mehrwert no Brasil nos últimos anos, especialmente a partir da publicação dos Grundrisse em solo nacional em 2011. Nossa opção se baseia no fato de que é conhecimento comum a obra levar o título nessa grafia/dicção (MAP).
[8] - Citado em Langkau 1983, p. 127.
[9] - Hecker 1993, p. 18, fn. 5.
[10] - Cf. Vollgraf et al. 2000.
[11] - MEGA1 vol. I.3 (1932); Kröner edition in 1932.
[12] - MEGA1 vol. I.5 (1932/33).
[13] - Cf. Mis’kevič 2013, p. 7
[14] - Rokitjanskij 2001, p. 14.
[15] - Referat, p. 111.
[16] - Referat, p. 113.
[17] - Rokitjanskij 2001, p. 20.
[18] - Cf. Röhr 2014, p. XXI.
[19] - MECW, vol. 15, pp. 25-96.
[20] - Dlubek 1993, p. 41.
[21] - Dlubek 1994, p. 70.
[22] - Dlubek 1993, p. 45
[23] - Dlubek 1994, p. 100.
[24] - Vollgraf 1993, p. 69.
[25] - Cf. Grandjonc/Rojahn 1995.
[26] - Cf. Griese 2006..
[27] - Cf. Saito 2016.
[28] - Vollgraf 2017, p. 54.
[29] - Quoted in Dlubek 1994, p. 89.
[30] - Haug 1983/1985, p. 25.
[31] - Cf. Zhang 2015, p. 15f.
[32] - Xy and Lin 2017, pp. 73-4.
[33] - Cf. Xy and Lin 2017, pp. 77-8.
[34] - Cf. Zhao 2016, p. 285-6.
[35] - Mao 1993-9 (Letter to He Kaifeng on Newspapers and the Question of Translation Work, 15 September 1942), vol. 2, p. 441.
[36] - Mao 1993-9 (Resolution of the Seventh Congress of the CPC), vol. 3, p. 418.
[37] - Bing 2015, p. 572.
[38] - Ibid.
[39] - Ibid., p. 554.
[40] - Cf. Nie 2008.
[41] - Nie 2005.
[42] - Hu 2003.
[43] - Xia 2007, p. 50f.
[44] - Wei 2013.