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  •  Voto nulo: o cretinismo parlamentar e a mistificação eleitoral em Belo Horizonte.

    Por Rafael Jácome João Leite (PSDB), Fuad Noman (PSD) e Paulo Abi-Ackel (PSDB) bateram o martelo sobre o apoio tucano na campanha de reeleição do prefeito crédito: Tiago Pena/Divulgação 1/2   "Pelo que esperam? Que os surdos se deixem convencer E que os insaciáveis Lhes devolvam algo?"   O cretinismo parlamentar e a mistificação eleitoral.   Rosa Luxemburgo, em seu texto “Social-democracia e parlamentarismo”, define o “cretinismo parlamentar” como uma postura típica do parlamento burguês que, confiante do papel histórico do Estado como único meio possível para resolução de conflitos sociais, busca impor “a ilusão de que o seu parlamento seja o eixo central da vida social, a força motriz da história universal” (Luxemburgo, 1904) ¹. Essa ilusão é mais que uma mera concepção conceitual descolada do papel que o Estado cumpre na sociedade burguesa, muito embora se expresse desta forma ilusória na cabeça dos engravatados do parlamento ou dos radicais românticos, ela se trata também do dispositivo ideológico que a sociedade burguesa busca universalizar a fim de garantir que o estado realize sua função “organizadora” das relações sociais no capitalismo em favor da burguesia. Em suma, tal mecanismo aponta para a consolidação de uma dinâmica que parte do princípio de que todos os conflitos entre as classes sociais (quando reconhece tais conflitos) encontra no Estado seu ponto máximo de resolução, como se o processo de identificação entre o Estado e as classes se desse de maneira imanente à própria existência do Estado. Também ignora (premeditadamente ou não) “as gigantescas forças históricas em ação do lado de fora, no âmbito do desenvolvimento social, totalmente despreocupado com a fábrica parlamentar de leis.”. Apesar de tal constatação remeter a questões mais amplas (em termos históricos), podemos deduzir que seu desdobramento alcança até mesmo situações bem pontuais e particulares, como eleições restritas ao âmbito municipal. E mesmo neste campo pouco definidor da luta de classes nacional e mundial, uma das consequências lógicas e práticas dessa concepção é de que não importa em qual situação for, todas as organizações da classe trabalhadora, em maior ou menor grau de força, deveriam, supostamente, obedecer ao imperativo categórico de ter que escolher invariavelmente entre as possibilidades eleitorais que estão dispostas na bandeja oferecida pelo garçom da burguesia na “festa da democracia” (o Estado), mesmo que nada ganhassem em termos substanciais para suas lutas. Pelos motivos elencados acima, essa consequência lógica e prática mistificadora diviniza a escolha eleitoral e desconsidera a construção cotidiana dos organismos da classe trabalhadora. Desconsidera, por exemplo, que o esforço da luta de classes e das organizações de trabalhadores que daí surgem não se trata tão somente de “coroar” de quatro em quatro anos os anseios de uma classe cotidianamente oprimida pelo trabalho e as variantes que disso surgem. Não é capaz de enxergar que a esquina histórica que nos encontramos aponta para a decadência cada vez mais crescente desses processos, visto a incapacidade até mesmo de um governo social-democrata de garantir seus pactos de migalhas aos trabalhadores. Portanto, esquece-se de priorizar o trabalho cotidiano dessas mesmas organizações e entender que em algumas conjunturas se posicionar validando as opções colocadas única e exclusivamente pela força de um processo viciado é diluir tal trabalho em favor de uma aposta cega nos desígnios de quem trata os assassinatos perpetrados pelas mineradoras em Minas Gerais como mero cálculo financeiro (tal como Zema, Engler, Fuad e os burgueses do minério). Aos mais afetivamente apegados ao ato de votar ou de mostrar virtude ao escolher o “menos pior”, independentemente do quão pior seja esse “menos”, é preciso dizer que não estou fazendo a defesa do abstencionismo eleitoral e engessando a questão com uma postura que Lênin chamaria de “esquerdista”. Tal postura abstencionista vai de encontro até mesmo à concepção marxista mais elementar sobre o processo eleitoral burguês ². O ponto é que o processo eleitoral burguês não é o centro de construção de uma organização de classe e nem mesmo o altar de realização dos anseios dos trabalhadores quando estes romperem as correntes do cretinismo, mas sim um meio transitório de SUBMETER elementos da dinâmica da sociedade burguesa aos objetivos táticos e estratégicos as pautas históricas dos trabalhadores em luta. Não cabe aos organismos marxistas, serem propagadores do misticismo parlamentar inerente ao processo eleitoral burguês, sacrificando por desespero as finalidades e ações gestadas na construção da sua inserção na classe trabalhadora cotidianamente. A inversão do cretinismo parlamentar está tão consolidada que as liberdades coletivas disruptivas (hoje tão necessárias, mas que foram ganhando espaço “na unha” através da negação organizada, coletiva e proletária do status quo  capitalista e cristão) são apresentadas aos trabalhadores belo-horizontinos neste processo eleitoral como garantidas somente se um ex-militar (que chama o golpe de 64 de “revolução”) ganhar as eleições e se assim ele o quiser. Se apaga a necessidade de que, de fora do Estado, surjam novamente a força propulsora de permanência e avanço dessas liberdades, elegendo parlamentares realmente combativos e ligados organicamente aos nossos anseios. Parlamentares que tenham seu eixo central de atuação uma força histórica que extrapola os acordos de gabinetes. Se esconde por trás dessa ilusão algo que as organizações marxistas sabem muito bem: o Estado não nos representa e não nos abre as portas. As pessoas negras, LGBTs, mulheres combatentes e todo o conjunto da classe trabalhadora, geralmente tem que entrar no Estado aos ponta pés ou pular a janela através de algum acordo fisiológico que dilui o caráter transformador de nossas ações. Quando conseguem não abdicar de seus princípios na totalidade, precisam dançar conforme a música do cretinismo parlamentar: “todas as opções levam as neo liberalismo!”. Enquanto isso, por meio da ilusão democrática burguesa, “democraticamente” se pavimenta reformas de caráter eleitoral que cada vez mais filtram nossas possibilidades de usar o Estado e as eleições como ferramenta da classe. A tentativa permanente de cassação do mandato do combativo Glauber Braga é um exemplo dos mais básicos, mas também podemos elencar a distribuição dos recursos através da cláusula de barreiras que favorece os grandes e já consolidados partidos da ordem, reforma sindical que enfraqueceu uma instância de luta fundamental (sindicatos), o aumento da burocracia eleitoral para acesso a recursos tão necessário para atuação eleitoral dos partidos menos fisiológicos e por aí vai. Todas elas tidas como naturais e democráticas ou, no máximo, um acidente de percurso da necessidade do Estado enquanto regulador de um jogo político inquestionável de nossas lutas. Vocês não se incomodam com o que essa sacralização do voto, aliada ao estreitamento do funil eleitoral, está pavimentando, principalmente num contexto em que até uma guerra mundial e o ápice de uma crise climática são ventilados como o futuro do capitalismo? Se não estão, deveriam.   O voto nulo em BH.   2/2 “Sonham sim com isto: Os lobos os alimentarão, em vez de devorá-los! E que por amizade Os tigres os convidarão A lhes arrancarem os dentes! É por isso que esperam!” Os Esperançosos - Bertold Brecht   Ainda no primeiro turno, o jornalista e pesquisador em filosofia Raony Salvador (um militante formulador de noções bem perspicazes, mesmo que passível de possíveis discordâncias) publicou um vídeo  em suas redes sociais, com a temática de “Como tornar o voto em Fuad menos inútil?”. Raony, apesar de buscar fazer uma reflexão que de um ponto de vista marxista coerente busque relativizar demais o papel que Fuad cumpre, trouxe alguns elementos aproveitáveis em sua argumentação. Após o fim do primeiro turno, ficou evidente que a tentativa de Rogério Correia e Bella Gonçalves de construir uma frente ampla fracassou em articular qualquer aliança significativa, muito menos uma aliança realmente ampla. O que se viu, na verdade, foi uma tentativa desesperada do PT de garantir sua hegemonia, seguindo a lógica de que mais importante do que o apoio à figura apresentada é a necessidade de que essa figura pertença ao partido. No entanto, devido à conjuntura política, essa estratégia resultou em uma agonia evidente, deixando claro que o apelo de tal empreitada entre os setores trabalhadores era insignificante. A situação se torna ainda mais dramática quando lembramos que, no primeiro turno, uma fase em que qualquer movimento organizado entende como o momento de afirmar seus princípios ideológicos, especialmente para os movimentos políticos que ainda têm valores históricos a defender, vimos algumas lideranças do próprio PT se aliarem ao grupo fisiológico de centro-direita em Belo Horizonte. No entanto, há algo de “único” a se reconhecer nessa empreitada para a prefeitura: foi a primeira vez, em anos, que uma tentativa de frente ampla rachou de maneira risível e escancarada, antes mesmo de nascer. Um drama digno de eleição de síndicos. Contrapondo a lógica de pragmatismo que o campo petista historicamente utiliza como um dos principais eixos de sua atuação política, tanto em Belo Horizonte quanto no cenário nacional, ficou evidente algo que há tempos está claro para as organizações da classe: esse campo se apoia no "pragmatismo da vitória" para neutralizar outras alternativas que possam surgir dentro dos movimentos sociais. Embora Duda represente uma variação desse progressismo fisiológico — algo que Zema certamente agradece ao PDT mineiro —, o fato de o PT não ter apoiado sua candidatura, independentemente dos critérios apresentados, apenas reforça que, mais do que qualquer compromisso com o combate ao "fascismo", o campo hegemônico da centro-esquerda brasileira está, na verdade, mais preocupado em manter uma constante aridez no solo fértil da luta de classes. Isso garante que seu hegemonismo não seja ameaçado pelas lutas que diz representar. Sabemos bem que esse drama todo não se resultou somente em perdas. A vereança do campo progressista em BH ampliou suas cadeiras, em comparação com a última eleição. Mesmo que a nível estadual e nacional tal ampliação possa ser considerada pouca, qualquer mandato em solo nacional pode se tornar uma vitrine útil para os anos seguinte, justamente por mobilizar símbolos e aspirações dos setores da classe que almejam derrotar o neo liberalismo do centrão (que Fuad representa) e sua consequência direta: o crescimento do bolsonarismo intra Estado e na classe. O que esse apoio romântico democrata de tais cadeiras demonstra é uma insegurança se tais mandatos belo horizontinos terão uma necessária, explicita e contundente postura contra os desdobramentos da capitulação que o PT tem consolidado nacionalmente, postura contundente que Sâmia Bonfim e Glauber Braga corretamente tem tido por se colocarem abertamente críticos e sem meios termos a projetos com Teto de Gastos (que certamente tem impactos municipais ou minimamente fortalece a sanha privatista do centrão e da direita no âmbito dos municípios). Caso não assumam tal postura, apostarão na coalizão sempre rebaixada ao centrão político, em um momento que rebaixamentos tem nos tirado as possibilidades de favorecer nossa classe numa disputa institucionalmente desigual. Acompanharemos! Indo para o finalmente... Ora, camaradas belo-horizontinos! São os mesmos militantes e apoiadores orgânicos desse campo em frangalhos que hoje lotam os perfis da UP, CST, PSTU, MRT e provavelmente lotarão os perfis do PCBR e do PCB (caso este último preze pelo balanço eleitoral feito na última live nacional ), comentando que tais organizações estão sendo "irresponsáveis" em puxar voto nulo. Esse mesmo campo que não foi capaz nem de fazer suas cúpulas se entenderem para costurar o que historicamente defendem (a frente ampla), demonstrando uma incoerência moral aliada com um pragmatismo que hoje demonstra falhas nacionalmente e municipalmente, exige dos combatentes da esquerda marxista e revolucionária uma diluição tática nessa bagunça burguesa. Não se dão conta nem mesmo da necessidade de corrigir as próprias falhas do campo, ainda por cima querem nos convencer que numa eventual reoxigenação do bolsonarismo (que se desenha no horizonte por culpa das próprias medidas do governo Lula, como teto de gastos e falta de combate ao agronegócio), supostamente serão capazes de tensionar para que a corda dos interesses de um ex-militar da época da “revolução” de 1964 tenda para os interesses da classe trabalhadora. Tais comentadores da luta de classes belo-horizontina (ao qual não se enquadra Raony, visto que conhece as lutas populares muito bem), se esquecem que as organizações que hoje tendem ao voto nulo, são organizações que, mesmo com números muito baixo, são a linha de frente dos combates e estão capilarizadas em ocupações, atuam em sindicatos de professores da rede municipal, constroem os movimentos feministas no histórico 8 de março belo-horizontino e a luta universitária, atuando cotidianamente em diversas frentes necessárias para a luta de nossa classe. São organizações que além de se pautarem por linhas históricas que não mistificam as eleições e por isso não transformam ela na finalidade última de suas ações, estão compromissados cotidianamente com o combate que devemos fazer a partir dos interesses da classe trabalhadora belo-horizontina. Dito isto, diante da crescente expectativa agoniante do desenvolver da conjuntura em solo nacional, nada mais coerente e fortalecedor de nossos meios de luta enquanto trabalhadores, que essas organizações não se pautem por diluir-se num momento tão delicado em promessas ilusórias de uma candidatura que nem mesmo o histórico PT e seu pragmatismo de frente ampla conseguiu superar. Apagar aspectos problemáticos como o fato de que Álvaro Damião (União Brasil), membro de um partido alinhado com o bolsonarismo, esta como vice de Fuad, para querer dar um revestimento de virtude ao desespero do campo progressista e dos trabalhadores conscientes de sua condição de maneira geral, é querer mascarar o fato de que o problema da conjuntura belo-horizontina se resolve em lutas muito maiores, em que devemos estar preparados e fortes. Nem mesmo passa pela práxis do campo progressista que a necessidade de se formar novas organizações, que hoje surge na oratória de tal campo por força do drama objetivo, deve sair da fraseologia e ir para a ação de fato. As organizações marxistas já pautavam isto, enquanto acordos dos mais diversos (acordos estes que nos trouxeram até Fuad X Engler) eram costurados sobre o ainda tão explicito problemático pacto de classes. Não cabe que os campos marxistas que, certamente estarão num futuro presente, nas fileiras da luta contra todas as variações burguesas de nossa tragédia atual, sacrificar seu trabalho árduo, seus princípios e sua luta continua contra todo o atraso que trouxe o Brasil até este patamar. Trabalho este que nunca cessou (nem mesmo em eleições!) e não merece ser sacrificado para “contribuir” com seus 0,65% de votos municipais indo para Fuad, agitando a bandeira de uma “revolução” (golpe de 64) que não é a nossa! Seguimos, camaradas. Num momento oportuno votaremos, mas não pelo desespero. Pela sobriedade de nossas fraquezas e nossas possibilidades dadas pela situação objetiva e pelo nosso compromisso junto a classe, superando nossas debilidades partidárias e rearticulando nosso campo para os imensos desafios que os anos seguintes tratarão de agravar. Fontes Bibliográficas: 1.      “Trata-se de uma ilusão, não apenas explicável em termos históricos, como também necessária, da burguesia em luta, ainda mais de uma burguesia que chegou ao poder: a ilusão de que o seu parlamento seja o eixo central da vida social, a força motriz da história universal. Essa é uma concepção, cuja florescência natural é o famoso “cretinismo parlamentar”, o qual, face à peroração autocomplacente de algumas centenas de parlamentares em uma câmara legislativa burguesa, não enxerga as gigantescas forças históricas em ação do lado de fora, no âmbito do desenvolvimento social, totalmente despreocupado com a fábrica de leis parlamentar. Mas é precisamente esse jogo das forças elementares cegas do desenvolvimento social do qual as classes burguesas participam, sem saber ou querer, que mina incessantemente não apenas o significado imaginado, mas qualquer significado do parlamentarismo burguês.”  LUXEMBURGO, Rosa. Social-democracia e parlamentarismo. Primeira edição: Sächsische Arbeiter-Zeitung (Dresden), I, nº 282, 5 dez. 1904. Publicado em: Gesammelte Werke, Berlim: Dietz, 1979. p. 447-451. Tradução: Kristina Michahelles. Disponível em Social-democracia e parlamentarismo ( marxists.org ) . Acesso em 19/10/2024. 2.      II. Por toda a parte, ao lado dos candidatos democráticos burgueses, sejam propostos candidatos operários, na medida do possível de entre os membros da Liga e para cuja eleição se devem accionar todos os meios possíveis. Mesmo onde não existe esperança de sucesso, devem os operários apresentar os seus próprios candidatos, para manterem a sua democracia, para manterem a sua autonomia, contarem as suas forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido. Não devem, neste processo, deixar-se subornar pelas frases dos democratas, como por exemplo que assim se divide o partido democrático e se dá à reacção a possibilidade da vitória. Com todas essas frases, o que se visa é que o proletariado seja mistificado. Os progressos que o partido proletário tem de fazer, surgindo assim como força independente, são infinitamente mais importantes do que o prejuízo que poderia trazer a presença de alguns reaccionários na Representação. Surja a democracia, desde o princípio, decidida e terrorista contra a reacção, e a influência desta nas eleições será antecipadamente aniquilada. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Mensagem da Direcção Central à Liga dos Comunistas . Março de 1850. Primeira edição: Distribuído sob forma de panfleto em 1850. Publicado pela primeira vez por F. Engels na 3ª edição de: K. Marx, Enthüllungen über den Kommunisten-Prozess zu Köln, Hottingen-Zürich, 1885. Fonte: Obras Escolhidas em três tomos, Editorial "Avante!". Tradução: Eduardo Chitas. Transcrição: José Braz e Maria de Jesus Coutinho, junho 2006. Direitos de Reprodução: © Direitos de tradução em língua portuguesa reservados por Editorial "Avante!" - Edições Progresso Lisboa - Moscovo, 1982. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1850/03/mensagem-liga.htm . Acesso em 19/10/2024.

  • MANIFESTO CONTRA O PACOTE ANTIPOPULAR - Assinamos!

    Link para o manifesto : Manifesto contra o pacote antipovo Falemos sem meias palavras: as políticas adotadas pelo governo Lula no campo da economia são neoliberais. Ainda que o governo acene aqui e acolá para os movimentos sociais, através de ações isoladas no que diz respeito ao reconhecimento de pautas históricas da classe trabalhadora, em suas movimentações substanciais ele tem pavimentado o caminho de derrotas. Lula, Haddad e sua trupe caminham para a consolidação de uma dinâmica econômica e política cujos resultados amargos já conhecemos. Em 2022 uma escolha foi feita: a rejeição de Bolsonaro. Tal escolha se materializou através tanto das manifestações pela vacina e contra o golpismo bolsonarista, como também nas urnas em 2022. Mas um “cheque em branco" foi assinado quando elegemos Lula sem que, em troca, ele fosse forçado a defender um programa econômico antiliberal e, de fato, de esquerda. No entanto, longe de ser um cheque com a assinatura dos setores burgueses, que não possuíam força suficiente para se livrar da figura de Jair Bolsonaro, nele constavam a rubrica dos trabalhadores e trabalhadoras, dos setores mais oprimidos e explorados do país, aos quais o que realmente interessa é o aumento real dos salários, a criação de postos de trabalho não precários, a valorização do SUS, o fortalecimento do nosso sistema público de ensino, o fortalecimento dos mecanismos de combate à bandidagem do agronegócio, a abertura do diálogo com os setores públicos e privados em greve e o aumento da qualidade de vida dos trabalhadores de um modo geral. Interesses que na verdade estão muito distante das intenções neoliberais de um governo que implementa políticas que fortalecem quase exclusivamente os setores burguesia. E o governo faz isso cinicamente, escondendo-se atrás dos símbolos de luta da classe trabalhadora. Não é o momento para desânimo! É o momento da crítica e de realismo somados ao mais forte impulso de mobilização. Por esse motivo a Revista Barravento assina e recomenda a assinatura do “Manifesto contra o Pacote Antipopular”, pois mesmo que este tenha limites em relação às verdadeiras necessidades de organização revolucionária de nossa classe, entendemos que tal organização se dá em muitas frentes e deve começar a partir de condições concretas expressas no manifesto. Abaixo um trecho do manifesto: "O pacote de austeridade agora anunciado e amplamente divulgado pela imprensa é a segunda fase desse programa: um ataque direto aos direitos sociais, buscando comprimir o que é garantido pela Constituição para que caiba dentro de um teto de gastos artificialmente limitado. As medidas em discussão incluem a flexibilização de direitos trabalhistas, como a redução da multa de 40% do FGTS para demissões sem justa causa e do seguro-desemprego, além de possíveis alterações no abono salarial e no BPC. O objetivo é claro: reduzir e restringir direitos básicos para obedecer às regras fiscais que priorizam as exigências do mercado às custas do bem-estar social. Mas quem paga essa conta? No caso do BPC, as principais vítimas são mulheres idosas negras e pessoas com deficiência, que constituem a maioria das beneficiárias e dependem diretamente desse programa para sobreviver. Trata-se de um pacote antipopular, que ignora deliberadamente as desigualdades estruturais do país e agrava a situação dos mais vulneráveis."

  • Liev Tolstói: entre a cultura e a revolução

    por Wesley Sousa e Pedro Badô Com a publicação das revisões das traduções em nossa revista , referentes aos textos de V. Lenin sobre o escritor Liev Tolstói, a tentativa é de contribuir com a certa difusão do pensamento de Lenin para além da crítica à sociedade russa (economia e Estado), mas também no aspecto da literatura e da cultura (no caso, a literatura tolstoiana). Independente de certos limites, estes textos a quem teve – ou terá – a oportunidade de os ler perceberá que sobressalta a profundidade da interpretação do revolucionário russo: Lenin toma a obra do seu compatriota não a partir de um aspecto ideológico, nem do descolamento de realidade na qual a narrativa surge. O mais significativo na obra de Tolstói, que Lenin enfatiza, é a aparente contradição entre um “beato louco” e um escritor que, literariamente, foi um “revolucionário” (o “escritor genial”) que pulula no conjunto da obra. Fato é que Tolstói não passou incólume às agitações que culminaram na revolução de 1905. A narrativa polifônica que emerge no escritor será central para o que, posteriormente, György Lukács analisa sob o prisma do realismo em relação a esta literatura (Lukács, 2011). Nos dizeres do filósofo francês Jacques Rancière, por exemplo, no texto “Efeito de realidade e a política da ficção”, temos uma interpretação singular acerca da ficção narrativa moderna. O autor comenta: “Verossimilhança não é somente sobre que efeito pode ser esperado de uma causa; ela também diz respeito a o que pode ser esperado de um indivíduo vivendo nesta ou naquela situação, que tipo de percepção, sentimento e comportamento pode ser atribuído a ele ou ela” (Ranciére, 2010, 79). Apesar da leve digressão, ela se mostra basilar no comentário em torno das traduções e no espectro de recepção estética. Embora não seja o intuito entrar em questões que, dentro da tradição marxista, seja extensa de teoria e crítica literária, aqui a ideia é apenas destacar a ambivalência interpretativa de Lenin acerca de Tolstói, já naqueles anos iniciais do séc. XX e no calor da revolução de 1905. Além disso, reaver que o marxismo é muito mais amplo e complexo do que certos reducionismos caricatos, seja daqueles que o desacreditam ou seja quando o tomam como paradigma de fórmulas prontas também.  Em outros termos, seguindo os passos do crítico literário galês Raymond Williams, a crueza do modelo “base/superestrutura” desemboca à contragosto por colocar a arte e a cultura como “efeitos” ou meros “reflexos” da base material. Eis a contradição do esquema, seus limites e sua insignificância filosófica. A totalidade social de produção e reprodução da vida, no intercâmbio homem-natureza, as mediações são decisivas para as atividades práticas (ou “superestruturais”). Raymond Williams, nos anos 70, no ensaio “Base and Superstructure”, publicado no livro “Marxismo e cultura”, trabalhou com uma boa síntese referente à famosa proposição marxiana acerca da “determinação” de base e superestrutura:  No entanto, quanto ao homem que toca o piano, quer seja para si, quer seja para os outros, não há dúvida: ele não é de forma alguma um trabalhador produtivo. Assim, o construtor de pianos é a base, mas o pianista é superestrutura. Como uma forma de considerar a atividade cultural e, incidentalmente, a economia da atividade cultural moderna, essa noção conduz, claramente, a um beco sem saída. Mas para qualquer esclarecimento teórico, é fundamental reconhecer que Marx estava, naquele momento, envolvido em uma análise de um tipo particular de produção, a produção capitalista de mercadorias. Dentro de sua análise desse modo de produção, ele teve de dar à noção de “trabalho produtivo” e “forças produtivas” um sentido específico de trabalho primário sobre materiais de maneira a produzir mercadorias (Williams, 2011, p. 48). Neste sentido, o que estamos a argumentar é que, centralmente, a relação entre “base e superestrutura”, da qual aparece de fundo nos textos de Lenin – também tão cara às perspectivações marxistas ou materialistas da cultura –, não é algo simples. Muitas vezes, até hoje, reside o erro grosseiro da sobredeterminação esquemática entre base e superestrutura, tanto consciente quanto inconscientemente. Nas palavras de Williams, por conseguinte: “Quando nos vemos analisando uma obra particular, ou um grupo de obras, com frequência percebendo a da comunidade essencial de que faz parte e sua individualidade irredutível, devemos primeiro nos voltar para a realidade da sua prática e para as condições de prática tal como foi realizada” (Williams, 2011, p. 66). A sacada leninista na interpretação de Tolstói, em alguma medida, é salutar em desmistificar a tese da “determinação” ideológica sobre o produto artístico, que, por outro lado, infelizmente, se tornou a política cultural nos países do chamado “socialismo real”, tal como relata István Mészáros em “A revolta dos intelectuais na Hungria” (Mészáros, 2018). O “esquematismo” nas artes e na cultura, segundo relatava o jovem filósofo, já nos anos 50, tinha muito de conservador e pouco de revolucionário. O “realismo socialista” era o termo guarda-chuva para mascarar a limitação daquela sociedade que estava aquém do ideal de superação definitiva das contradições sociais outrora existentes. A ambivalência está na antecipação dada por Lênin na desautorização de uma interpretação política do objeto cultural e artístico; e aparece, sob os comentários da obra tolstoiana, com significativo peso teórico. Mas, como frisamos, aquilo que o revolucionário russo consegue enquanto intérprete da obra de Tolstói acaba por ir água abaixo no aspecto da “literatura de partido”, adotada poucos anos depois pela política revolucionária pós-Lênin.  No aspecto ideológico, o que importa realmente é o diminuto peso de importância se Tolstói politicamente foi um reacionário para compreensão de sua literatura. Por outro lado, o que interessa, então, é se sua ideologia moralizante não se sobrepõe às denúncias da penúria que o mercado capitalista impôs aos povos. Posto que em sua literatura ele fez transparecer um significativo apelo à experiência do que possibilitou alargar sua visão compositiva: a vida regida pela opressão de classe e pela “abstração” material é um mal. Para parafrasear Lenin, o utopismo de Tolstoi tem em seu bojo reverberações ortodoxas e profundamente moralistas. A partir disso é preciso entender como tais elementos críticos, ainda que às avessas, fornecem um “espelho” de seu tempo, num material literário educativo para o povo russo, apesar de suas consequências e desejos pessoais. O problema, porém, é que a perspectiva de Lenin acabou por dar certa vazão – em grande parte contra sua vontade – na perspectiva em torno da produção artística e cultural sob os ditames do partido comunista anos depois, o que redundou numa desgraça intelectual. Aliás, é o documento histórico de Lenin que serviu de base para que, a partir de 1925, Stalin e o Partido assumissem o controle e o dirigismo da produção cultural na URSS (da “política cultural”) após seu falecimento (Napolitano, 1997).  O historiador Marcos Napolitano recapitula, com clareza, o movimento daquele período da efervescência da Revolução de Outubro e a questão cultural revolucionária. A “agitação cultural” e a “construção da nova ordem socialista” eram termos do mesmo problema. Assim, segundo o autor, na recém-instituída União Soviética, duas grandes tendências debatiam o problema cultural: a) os formalistas , ligados à Revista Frente de Esquerda da Arte  (LEF): Maiakovski, Isaac Babel, Meyerhold (que influenciará decisivamente o cinema de  Eisenstein), para citar os mais notórios; b) o “proletkult’, movimento criado em 1904 por Bogdanov, que buscava instituir uma nova arte proletária, diferenciada da “arte burguesa”. Ao longo dos anos vinte uma outra corrente, mais afinada com a ortodoxia partidária, aos poucos ganhará força, rejeitando tanto as “formas” revolucionárias da LEF, quanto à possibilidade de um rompimento com a “herança cultural” burguesa: eram os naturalistas, ligados ao naturalismo social da década de 1890 e às idéias de Plekhanov. “O Comissário de Instrução A. V. Lunatcharski, mais afinado com o Proletkult , coordenava as diversas frentes do esforço de guerra ‘cultural’. Mas a relação entre o Partido e os movimentos culturais não era isenta de conflitos e contradições, e remontava ao período anterior à Revolução” (Napolitano, 1997, p. 7-8). Tudo isso foi trazido por nós para esclarecer que é significativo que o déficit crítico das interpretações de que a cultura tivesse um peso “secundário” ou apenas residual. Por isso o esquema “base/superestrutura” não é eficaz, pelo contrário. Como se a luta pela emancipação fosse apenas uma tarefa que alcançasse os artistas como se deles esperássemos “engenheiros da alma” (na tosca formulação stalinista). Noutros termos, se Lênin já destacava que a cultura e as artes não eram simples “reflexo” ou “determinadas” ipsis litteris  pela produção material somente; por outro lado, a perspectiva leninista de “literatura de partido” na URSS tornou-se complicada a sobreposição do “realismo socialista” como contraposição à “arte burguesa”, pois esta seria “ilusória”, “subjetivista” e “abstrata”. Enquanto que o “realismo socialista”, por sua vez, seria a “verdade histórica” e a edificação do “novo homem” e a “vitória do proletariado”. Decerto é apressado, entretanto, jogar a “culpa” em Lênin, pois não é esta a proposição. A questão elementar é contudo a compreensão e a relevância da produção cultural concomitante (como um complexo de complexos nas esferas sociais…) para uma nova concepção de mundo que caminhe em conjunto com as transformações da vida sem sobrepujar um ou outro aspecto da realidade social. Antes de tudo, o resultado crítico de Lênin é sempre com vistas à superação completa que o capitalismo engendrou e se constituiu em sua gênese. Para mencionar Lênin de um dos textos acerca do caráter reacionário e não revolucionário, no aspecto mais propriamente político tolstoiano: “Em todos os países em que prevalece o modo de produção capitalista, há um socialismo que exprime a ideologia da classe destinada a substituir a burguesia e há um socialismo que corresponde à ideologia das classes que a burguesia substituiu” (Lenin, “Tolstói e sua época”). Na sociedade burguesa não há heróis. Ao contrário do “realismo socialista”, ao qual o “povo” e a glorificação do “proletariado” se configuraram em exigência do artista socialista, ou seja, uma produção de sua “engenharia” edificante. Mas, em resumo, se quisermos sabermos o “espírito de época” de uma dada sociedade, ou um tempo histórico específico, devemos olhar, de modo distinto, para seus indivíduos constituintes. O romance, no final das contas, é a forma de como se estrutura a sociedade burguesa – por isso ele é sua forma épica (Lukács, 2011). Tanto a grandiloquência burguesa e suas frivolidades, quanto o “retrato” social do socialismo eram, por extensão, contraditórios. A questão que sobrevém é: o que tem a ver tudo isso com Tolstói? A sua trincheira de luta, ainda que por vias distintas, e por vezes contraditórias, partia-se da denúncia daquilo que as promessas que mais tarde surgiriam mediante a burocracia da URSS, e que não iriam mais cumprir: o ideal de libertação.  Conforme salienta Napolitano, “apesar do afastamento em relação aos paradigmas revolucionários bolcheviques, os movimentos de vanguarda dos anos sessenta operavam uma releitura das experiências estéticas em torno do momento revolucionário soviético. Eisenstein e, sobretudo, Maiakowski foram tomados como as primeiras vítimas do stalinismo, antes mesmo dos ‘ Processos de Moscou ’, primeiras vítimas do cerceamento da consciência revolucionária imposto pelo stalinismo, que alguns anos depois tomaria conta de toda a sociedade” (Napolitano, 1997, p. 17). Para finalizar, pode-se dizer que a produção romanesca de Tolstói sobrevive ainda que seu tempo tenha se passado; por isso, seu romance teve uma realização grandiosa. Ela sobreviveu àquilo que não existe mais (o “feudalismo russo”), e hoje ainda nos provoca a sensação de leitura não apenas como se fosse um registro de tempo, mas na vivificação temporal daquilo que se foi (dilemas humanos e as contradições morais e históricas). Claro, a intenção não é simplesmente repetir os comentários de Lênin, mas de levantar brevíssimas questões e suscitar problematizações – no bom sentido da palavra – ou seja, provocações condizentes para uma revisão crítica com os olhos retrospectivos, a partir de elementos histórico-conceituais que extrapolam tal contexto das publicações do autor russo sobre o “autor genial”. Importante é não cometer o erro, conforme muitos poderiam pressupor, de um “recuo” do ideal de realização utópica de superação do capitalismo no atual contexto (e seus impasses) porque a realidade “diz” o contrário (por comodismo ou resignação). Enfim, a URSS se foi e a obra de Tolstói ficou. A cultura (no caso da literatura), neste caso, foi sobrevivente à revolução. Referências  NAPOLITANO, Marcos. Arte e revolução: entre o artesanato dos sonhos e a engenharia das almas (1917-1968), [Dossiê Esquerda] Revista de Sociologia e Política , n. 8, 1997, p. 7-20. LUKÁCS, György. O romance como epopeia burguesa. In : Arte e sociedade . tradução e notas Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ. MÉSZÁROS, István. A revolta dos intelectuais na Hungria . Tradução João Pedro Bueno. Revisão Claudinei Rezende. São Paulo: Boitempo, 2018.  RANCIÈRE, Jacques. Efeito de realidade e a política da ficção. Tradução Carolina Santos. São Paulo, Revista Novos Estudos CEBRAP , n. 96, março, p. 75-90, 2010. WILLIAMS, Raymond. Base e superestrutura. In : Cultura e materialismo . Tradução André Glaser. São Paulo: UNESP, 2011, p. 43-68.

  • Do gerenciamento da crise à implantação da catástrofe: o colapso climático de nossa era e as “saídas” do reformismo

    Imagem: Reuters/Amanda Perobelli De novo. Mais um desastre ambiental; mais uma tragédia anunciada, desta vez no Rio Grande do Sul. Mais uma vez viemos abordar o tema do colapso climático, que, no andar da caminhada, parece apontar para uma maior recorrência. Mais uma vez a mãe natureza é apontada como uma figura mística, incontrolável, que se volta contra a humanidade como uma figura revoltosa diante da forma como é tratada, mas conforme a recorrência das crises climáticas aumenta, mais difícil é sustentar uma narrativa de acaso, ou de má sorte, ou de qualquer sorte de argumento que exime a forma como o modo de produção capitalista guia a humanidade, em escala global, à sua própria destruição. Já vivemos o colapso, incontornável; o aquecimento global não mais é discurso científico que anuncia a iminência da convulsão climática, mas uma realidade que alcança, hoje, o cotidiano das pessoas. Ora, as enchentes no Rio Grande do Sul afetaram 478 dos 497 municípios do estado, ao menos até o momento. Mais de 2,3 milhões de pessoas sofrem as consequências da tragédia climática, com 420 mil desalojadas, além das 173 mortes e 38 pessoas desaparecidas, tornando-se um fenômeno sem precedentes na história do país. Não é mais possível negar a verdade inconveniente; em razão dos moldes como estruturamos nossa sociedade, incompatível com um planejamento a longo prazo, próprio da anarquia produtiva, as denúncias dos riscos climáticos ligados ao aquecimento global se concretizam, uma a uma – e se não é possível falar de um retorno aos padrões registrados no início do século XX, sequer se percebe uma freio no avanço do aumento da temperatura média global, que afeta severamente as dinâmicas climáticas terrestre, como o El Niño, que teve papel no aumento das chuvas no sul do país. Se por um lado, os eventos climáticos assumem contornos violentos, trazendo ao Rio Grande do Sul um índice de chuva que ultrapassou, em três dias, a média esperada para todo o mês, por outro, houve uma total negligência do Estado na manutenção de mecanismos de controle de enchentes. Ao mesmo tempo que se nega a realidade de colapso climático mundial, nega-se também, como consequência necessária, a demanda de criar estruturas para lidar com ele. O que se percebeu foi que o orçamento para combater desastres naturais no estado foi muito aquém daquele a ser destinado devidamente. Dos R$ 117 milhões anunciados, nem 10% foi devidamente destinado de fato, tendo sido gastos apenas R$ 640 mil. Esse é o gerenciamento da crise próprio do Estado que, ao assumir o papel mediador do processo de produção ampliada do capital, especialmente num momento de crise econômica e dificuldade de retomada das taxas de lucro, negligencia as necessidades da própria sociedade em defesa de um plano de austeridade que, no Rio Grande do Sul, refletiu na negligência quanto à demanda de manutenção dos diques que controlavam as cheias dos Guaíba. Perceba-se que há, aqui, dois aspectos a serem apontados: 1) a iminência do colapso climático em escala mundial que, com mais frequência e intensidade, violenta diversas comunidades ao redor do planeta, sendo o Rio Grande do Sul o exemplo mais próximo de nosso cotidiano; e 2) o papel do Estado enquanto garantidor do pleno funcionamento das leis do capital, mesmo que se voltem contra as próprias necessidades mais basilares da sociedade, assumindo a tarefa de gerenciar, e não solucionar, as crises sociais. Se as necessidades de produção ampliada do capital de mais curto prazo se sobrepõem às necessidades sociais de longo prazo, o que motiva a negligência em relação ao controle de crises, a conjuntura demonstrou que tanto as necessidades de retomada da taxa de lucro quanto a emergência climática são necessidades de curto prazo, diante da iminência do colapso ambiental. Todavia, o Estado prioriza a tentativa de retomada da taxa de lucro em detrimento da vida social, reforçando a emergência climática, ao invés de combatê-la. Já escrevemos aqui sobre como a ideologia do capital abraça um discurso falso de incontrolabilidade da natureza como forma de abdicar de se pensar na possibilidade – e necessidade – de construção de uma forma de produção social que seja capaz de antever crises e atuar em sua prevenção. Falso, mas um falso socialmente necessário. A ideologia opera mistificando, invertendo e ocultando as determinações da realidade social. Nesse caso, o desastre ambiental enquanto expressão de um sociometabolismo do capital que na sua incontrolabilidade faz com que o planeta terra seja dilapidado a ritmo voraz – ainda que cientistas bem intencionados advirtam as catastróficas consequências desse tipo de relação com a natureza – é visto a partir de duas costumeiras e encobridoras posições: A primeira posição, costumeira entre ambientalistas reformistas, atribuem o desastre climático à consciência dos indivíduos, que por ganância, ou por outro atributo moral, não se dão conta, ou ignoram voluntariamente os sinais e continuam em uma relação de devastação sem limites dos recursos naturais. Partindo dessa primeira posição, seria necessário conscientizar os indivíduos e, simultaneamente, remediar os estragos já feitos pela ação humana, normalmente pensada em abstrato, com medidas específicas para ecossistemas ou regiões específicas, enquanto o trabalho de conscientização não termina de ser feito. Resultando assim em uma postura consciencionista diante dos problemas ambientais. A segunda posição, que está no polo oposto da primeira mas é igualmente ideológica, assume a impossibilidade de reverter a catástrofe climática geral que se encontra a relação do ser humano com a natureza, restando apenas a resignação ao fim do mundo, no sentido de fim da humanidade ou da civilização, sendo o único refúgio possível, aquele da satisfação individual, puramente pessoal, “enquanto o mundo não acaba”. Essa é, portanto, uma posição catastrofista. Ambas as posições são ideológicas porque elas ocultam: 1) Os nexos reais e necessários entre a degradação ambiental e a acumulação de capital, sendo somente possível interromper o primeiro rompendo com o segundo, o que explica a inocuidade a médio-longo prazo de ações isoladas, pontuais e específicas. 2) A possibilidade ainda posta de modificarmos o futuro tendencial de destruição das bases ambientais que permitiram a vida humana na terra tal como a conhecemos, e trocarmos a distopia real, provavelmente mais brutal e desumana que qualquer ficção distópica, por um futuro de comunismo real, onde a relação do ser humano com a natureza seja mediada por outras necessidades – as necessidades autenticamente humanas – que não a necessidade do Capital de se auto reproduzir. Consciencionismo e catastrofismo são dois lados de uma mesma moeda: São dois polos que qualquer grupo político reformista oscila[1], seja o grupo autointitulado de esquerda ou de direita, diante do impasse que a catástrofe climática nos coloca: Ou mudamos radicalmente nossa forma de organização social, rompendo com a forma social capitalista e organizando a produção para a satisfação das necessidades humanas, ou impossibilitaremos a existência da vida humana na terra. Por isso, discutir desastres como o ocorrido no Rio Grande do Sul  é discutir, ao fim e ao cabo, os impactos sociais da dinâmica produtiva e destrutiva capitalista, e o papel social do Estado que, como um capitalista coletivo, assume o papel de garantir a acumulação de capital contra qualquer crise. E daí dá-lhe o Plano Marshall brasileiro, que enriquecerá os bolsos de uma parcela da burguesia às custas dos milhares de gaúchos desabrigados e dos milhões de afetados, mostrando como o Capital não cessa seu processo de acumulação nem mesmo diante de uma cidade debaixo d'água. Somente a classe trabalhadora organizada, em um processo que salte do momento em si da classe, rumo ao para si, pode evitar um futuro diferente ao fim da humanidade. Notas: [1] Sequer vamos citar as ideologias negacionistas aqui, pois consideramos que usar estas linhas para refutar ideologias que negam os fatos mais óbvios que confirmam a existência do colapso ambiental, é já entrar derrotado em uma batalha. Nossa preocupação maior é em relação aqueles que afirmativamente admitem a imanência do colapso, mas não conseguem ver seus nexos causais constitutivos com o modo de produção capitalista, e portanto, não enxergam a possibilidade objetiva de superação do estado de colapso atual através da superação do modo de produção capitalista.

  • Entes queridos

    Fumiko Hayashi 1977 Tradução: Helena Zica Cronista, poeta e escritora, Fumiko Hayashi, nascida em 1903, fez o que pode para viver da escrita. Mudou-se de Hiroshima para Tóquio em 1922 com intuito de se integrar ao meio literário, mas pobre e mulher teve de se contentar com a margem. Trabalhou como atendente de loja, babá, garçonete e empregada doméstica. Enquanto sustentava seu namorado homem, na sociedade japonesa em plena década de 30. Com o intuito de ser publicada em jornais e revistas da época, escreveu em grande quantidade e Entes queridos muito possivelmente é fruto desse empreendimento, publicado depois de sua morte, em 1951. Há nesse texto o que permeia toda sua obra, a pobreza, a derrota e a resiliência de uma comunidade à imposição cruel da fome. Fome causada. Pelo curso errôneo e patético do mundo e pelo curso patético da nação, guiada pelo facismo de uma classe dominante deplorável. Aqui, Fumiko retrata a classe dos derrotados lidando com a maior das derrotas, em 1945. Não à toa, abre-se o texto com as palavras de Sakutaro, “não há esperança, não há honra e não há futuro”, o que sobra será? Mesmo se eu ficar em um campo vertiginoso e assobiar, as garotas do eterno devaneio não virão. Vesti a calça suja de lágrimas e ando como um hiyojin.[1] Não há esperança, não há honra e não há futuro; E tudo que não consigo me livrar é do arrependimento, mas, eu fujo dele como um rato. O poeta Hagiwara Sakutaro[2] já não existe mais neste mundo, mas sua poesia permanece. Senzo virou a página do livro “Destino”, desse poeta, enquanto caminhava calmamente sob a fileira de ginkgo bilobas no interior da faculdade. Já se passaram dez minutos do horário combinado, mas Goro não está em lugar algum. As grossas árvores de ginkgo parecem formar um túnel verde. Os galhos cobrem uns aos outros, dos dois lados, e há uma brisa fresca e refrescante. De tão pouco que comia, nada sabia sobre a forma de seu estômago. A taxa de hospedagem está vencida. – Um, dois, três, também uns amigos cuja profissão foi atingida, todos de lá. “Desligamento”, consta no relatório. Além disso, assumiu Goro uma criança problemática como um pequeno barco abandonado na água. No entanto, dentro de um mundo como o de hoje, esses dois ou três amigos pensam apenas no que será de seus próprios corpos, despedaçam a vesícula, mas é o melhor que se pode fazer[3]. – Patrão! Senzo se afastou abruptamente. Porque um humano fedendo a suor veio se aconchegar. No campus da faculdade, que está de férias, durante o dia, por não haver tráfego de pedestres é silencioso. – Patrão! – Está falando comigo? – Quer um cigarro? Fechou apressado o botão do peito. Havia duas caixas com brilho laranja diante de seus olhos. Senzo ficou vermelho, “quanto custa?”, perguntou. – Treze ienes. – Não tenho dinheiro nem para uma caixa. – Que tal cinco picados? De repente, abriu a caixa. A unha do dedo mindinho do homem era ridiculamente longa. Ao alinhar as cabeças carecas como cascalho, Senzo era desagradavelmente baixo. Procurou o bolso, e, após Senzo juntar e entregar seis ienes e cinquenta centavos em notas gastas, cinco cigarros com brilho de giz de cera fofo, o homem foi andando pelo portão principal. O que estava deixando Goro hesitante? Olhou novamente para o relógio. Gotejou seiva de ginkgo no vidro sujo do relógio. Será que ele voltou a ficar deprimido? Ah, a dor de viver… Senzo pensou em sua barriga, que sempre chora agitada, como um sujeito irritante. – Senzo! Goro, correndo como um homem do riquixá, veio com ambas as mãos oscilantes. – O que foi? – Acabei de voltar. – É mesmo? O que trouxe? – Trouxe uma carta Tirou um envelope sujo de papel kraft áspero de debaixo do quepi. Como uvas, os olhos brilhantes do garoto moveram-se redondos. Ao cortar o selo, vieram cinco notas de dez ienes. – Bom, você não precisa mais vender esse livro, não acha? – Fica para próxima. – Por hora, peço que tire uma folga do ensino – Escrito brevemente na carta. – Você disse que estava doente? – É… falei. Ele sempre se preocupou comigo, não tinha como não falar. – Vamos em direção a mother[4]? – Sim “Idiota, idiota. Você é um tutor fraco”, pensou. Senzo levou a carta ao bolso que aliciava. – Vamos para Asakusa[5]? – Sim. – Consegue ir andando? – Sem problemas. Goro sorria abertamente e se exibiu levantando a perna bem alto. Senzo pegou um cigarro e o segurou com os lábios. Não tinha fósforos. – Incrível… – Acabei de comprar cinco cigarros aqui. – Vendem cigarros neste lugar? – Claro. Embora satisfeitos sem comer, a juventude dos dois, pelo menos um pouco dela, não almeja o luto. – Bridge Well Sanks… Nós estamos na classe alta. – É o que? Já não se imaginava dentro de um mundo impiedoso, afinal, pôs a mão em cinquenta ienes. Para uma pessoa pobre, é uma situação para sorrir. Senzo ficou bem num instante.Contudo, se dessa quantia ele pagar uma pequena parte do aluguel e comer algo em Asakusa… Quantia de cinquenta ienes, com uma quantia efêmera similar, não dá para fazer mais do que isso. Senzo ficou deprimido, pensando que isso era como um pãozinho cozido no vapor para um atendente. – Depois de virmos aqui, como esperado, vamos vender esse livro. – Por quê? – Você não precisa se preocupar. Até porque, você disse que o livro seria o próximo. Primeiro, os dois saíram pelo portão principal, e andaram para a frente de uma livraria numa fileira de casas. A música da rádio, que o lembra do fluxo das águas no interior da montanha, trouxe a cor das águas brilhantes como lembrança vívida. O interior da cabeça de Goro começou a doer de tanto andar. Além disso, ficou com sede por causa do calor. Entraram em uma pequena livraria, e trocaram o Destino de Sakutaro por algum dinheiro. Realmente, sentiu uma dor no peito quando deixou de segurar o livro, vendendo-o por alguma quantia que lhe parecia digna. – Senzo… – O que foi? – Eu… Meus olhos parecem paralisados. – Oi? Ei! Está tudo bem?! Senzo, apressado, segurou Goro nos braços e entrou numa tenda de gelo no beco da livraria. – Um copo de água, por favor! Uma moça vestindo kimono com padrões azul escuro veio carregando dois copos cheios de água até a borda. Inesperadamente gentil. Com o rosto azulado, Goro tomou essa água num instante. Quatro e meia já está acordada e abre a janela. O sul está soprando, visto que está ridiculamente quente. E ainda está ensolarado pelos arredores. Foi acender o gás e um sopro fedorento começou a apitar. A empresa de gás está reduzindo as despesas também essa manhã… Sadako colocou o antigo espelho de mão manchado de vermelho na janela treliçada pouco iluminada e arrumou o cabelo. “Agora, como estará o pequeno Goro? Me pergunto se Fujisaki está me amando.” – Tóquio é como um depósito de lixo humano – a avó de Sakata havia dito, mas Sadako, no fim das contas, tinha mais fé em Tóquio que no interior. Como Tóquio é um lugar onde as pessoas do interior podem se reunir, é possível relaxar livremente como em Xangai. Sadako nunca pensou que fosse doloroso vir para esta casa. Quando anoitece, os bêbados andam na entrada do beco da casa, uma casa estranha e há também pessoas à espreita. Essa cidade, movimentada o dia todo, de alguma forma é interessante para ela. – O chá ainda está fervendo? Voz da avó, vinda da cama. – O gás ainda não está saindo. –A pequena Sadako está com nariz entupido, então tente enfiar bem o nariz na saída do gás. – Já coloquei o nariz. Disse resmungando e a avó ficou em silêncio. Sadako levou a roupa que havia lavado na noite anterior para o varal no segundo andar. O varal, a briza do mar em todas as direções, as amplas ruínas se tornam campos com as ervas que crescem desenfreadas, a montanha de sucata, tudo e qualquer coisa, isso é, à sua maneira, serpenteia pela cidade. A vista ampla de Hinohara[6]. No meio disso, prédios de cor deprimida e uma floresta de chaminés sem fumaça.(Sempre que sobe ao varal, Sadako canta alguma música, A canção da maçã, o blues da chuva, e, por fim, uma música militar de Ineko que já não pode ser mais cantada.) Desceu apressada ao andar de baixo, a cozinha escura fedia muito a gás. Rapidamente acendeu o fogo e colocou a chaleira. Colocou o chá, levou para o quarto da avó e: – Às oito há distribuição da ração de farinha, você sabe, não é? Um pacote sete ienes e cinquenta centavos. – Sim, eu sei. – Você vai fazer suiton[7] hoje? – Sim, vou fazer. – Se parecer que o gás vai durar, seria bom já fazer a porção da tarde. Sem fermento, pão duro como mochi[8] é a realidade cotidiana. Ryokichi do Sr. Chikahito foi numa viagem a trabalho para Fukushima e estará ausente por apenas dois dias. Ao dar seis horas, fez-se o som de uma janela de chuva sendo aberta. Masako acordou. – Ontem à noite tive um sonho muito agradável. Estava lambendo as tetas de uma grande vaca sem pernas que vinham do céu. No meio da escada, Masako desceu enquanto dizia algo assim. – Meus olhos estão brilhantes, isso porque consegui dormir bem. Internamente, Masako devia estar muito confiante na beleza de seus próprios olhos. Eram oito horas quando sentou-se à mesa do café. Estava quente nos arredores, como se ela estivesse próxima de um desmaio. – Afinal, o que será que comem as pessoas da sociedade? – De repente, Masako disse isso. – Estou fazendo o que posso… Masako não gosta de suiton, então coloca a frigideira no fogão elétrico, e frita a farinha. – Sadako, o que sente mais falta do passado? – Do passado? Da minha mãe é claro, porque será que ela morreu? Sempre fico pensando nisso. – Não estou falando da mãe. Eu digo, onde morava, o que comia. Por exemplo, o sushi de Shintomi[9], as costeletas de porco empanadas de Shitaya[10]… “Ah não! De novo falando de comida logo de manhã. Rápido, coma sua comida, vá logo para Okubo* e pare de falar.” Como uma estudante, a velha enfiou as mangas de seu yukata sobre os ombros enquanto fumava um longo cachimbo. – Ei, Sadako, os bolinhos de gyoza em Xangai também são deliciosos. Eu também comi muitos bolinhos de gyoza fritos. Por que havia tantas coisas deliciosas em Xangai?... Eu deveria ter comido até me cansar... Ah, que tédio. Tédio não ter nada. Tive um amor não correspondido na China. Fico pensando, como será que ele está hoje em dia? Que tédio – Masako esticou as pernas sob a mesa, e abanou o leque desesperadamente. O gás ainda estava saindo, Sadako se levantou para esquentar a sopa da noite anterior mas, de repente, ficou com vontade de ver Mineko. As três irmãs estão separadas, agora estava solitária. Se tivesse um pouco de renda, gostaria de alugar mesmo que um quarto para as três e gostaria de viver, ainda que sem água… Masako ainda estava falando sobre algo na sala. – Sadako, hoje é que dia da semana? Você não iria para Okubo[11] comigo? É chato ir sozinha. – Em pouco tempo, o som do guarda-roupa. Sadako, agora, estava a um suspiro de chorar, então fez um bico e sussurrou a canção da maçã. – Sadako também pode ir. – veio a permissão da tia. Sadako se lembrava de Xangai, da pimenta e dos temperos que teriam na sopa. – Mãe me dê apenas cem ienes. – Você diz isso, mas ontem trouxe várias coisas da rua. Você não é normal. – É por lembrar de Xangai, nada demais. – Aqui é o Japão. – Sem dinheiro fico desamparada e não posso sair. – Seria bom se você trouxesse um pouco de Okubo Sadako se calou e encarou sua mãe. – Sadako, deixe isso para depois, vá logo se arrumar. – Masako disse, com voz gentil. Assim que a sopa começou a ferver, o gás parou abruptamente. Masako, que parecia estar se arrumando, usava um vestido de linho amarelo limpo e polia as unhas com flanela. – Quantos anos tem a irmã de Goro? – Dezoito. – É bonita? – É, sim – Isso é ótimo, qual o nome dela? Kunimune, estou começando a consultar o registro da família, que é um dos meus sete hábitos. Senzo foi ao mercado em Nakano para comprar alguns vegetais. No braseiro os miúdos estão fervendo na panela. Gradualmente, está começando a cheirar bem. – Xangai é um bom lugar? – É bom. A maioria dos livros nas prateleiras foi vendido, e havia uma fina camada de poeira sobre elas. Kunimune estava no último ano do ensino médio, senpai[12] de Fujisaki Senzo e, imediatamente após deixar a Escola de Política e Economia de Waseda, foi para o exército. Quando voltou depois de desmobilizada, descobriu que alguns de seus amigos já haviam morrido na guerra, alguns ainda não haviam retornado, outros haviam fugido do país e não tinham notícias de seu paradeiro. Depois da derrota na guerra, os assuntos pessoais eram realmente sombrios e, embora Kunimune conseguisse encontrar um emprego por conta própria, ela não tinha amigos além de Senzo Fujisaki para reclamar de sua solidão. Ah, está ficando tarde. Senzo voltou secando o suor. Cortou um pedaço de repolho em pedaços grandes com a faca da marinha, e colocou na panela. Adicionou sal e um pouco de margarina, e , “ah, com isso não há nada a temer”, limpou as mãos em plena satisfação. – Ei, tem alguma boa notícia. – Nenhuma. – Nenhuma forma de ganhar uma quantidade terrível de dinheiro? – Será que eu e kunimune nos tornaremos um casal? – Casal? Bom, isso não vai durar muito. A irmã mais velha de Goro é linda. – Ela ainda é uma adolescente.” – Adolescente que é bom. As adolescentes são a jóia desta geração. No mundo todo, os adolescentes e as adolescentes são o que há de melhor. Goro é um aluno da sexta série em uma escola nacional. Está morando com Senzo há um mês e tem sido uma vida muito mais alegre do que em Kagoshima. Dois anos atrás, perdeu seu pai em Xangai. Logo voltou para Kagoshima com a mãe, a irmã mais velha Sadako e a irmã mais nova Mineko. Mas sua mãe morreu de pneumonia logo depois da viagem. Imaturos, parece que os três possuíam alguma propriedade mas a avó de Sakata não larga dela. Sadako fugiu para Tóquio no final do ano passado com Goro. Contou com a casa de Masako, uma conhecida da época em que morava em Xangai. Os dois imaturos tiraram da paixão do desespero um amor genuíno pela terra de Tóquio. Flutuando na lua, por que as nuvens o mundo é impensável A destruição parece um sonho Assim que nos separamos, nos separamos. – Caligrafia habilmente desenhada na parte de trás do leque rasgado. – Não é você? – O que? – Essas palavras são de partir o coração, não importa como leia. Depois de colocar os ingredientes, de comer, jogar água quente e enrolar o pó da ração. Os três sentiram-se em paz como os pepinos do mar. Se pensar que os cigarros da faculdade foram três a um e trinta cada, não se deve fumar nem com mágoa nem com negligência. Kokumune enquanto também fumava com carinho, logo começou a praticar um dos sete hábitos. – Cigarros sendo vendidos às escuras, sem distribuição, é vantajoso para o governo. Não há nada de científico no que o governo está fazendo. O mesmo que visitar o santuário, é princípio cheirar como graça divina, mas se as pessoas se agitam, logo jogam inseticida sobre elas. Fique sem racionar a comida por alguns dias, vá a cidade e verá montanhas de batatas sendo vendidas. A humanidade deveria ser amada na natureza, mesmo assim, depois da derrota na guerra, as pessoas comuns não tiveram nenhum benefício. Kunimune descarta vigorosamente o kage benkei[13], dizendo que um bom negócio é apenas viver uma vida boa por cinquenta anos. – Não está dando certo – Vai dar, se você comprar um pouco de koodo – Ótimo, vamos comprar. Mas fermento em pó é caro. – Vou pegar com a irmã mais velha. – Ouvi dela que a família Natsukawa é sovina. – Afinal, eles tem fermento. – Quero comer alguma coisa doce.O que aconteceu com a existência de açúcar. Essa coisa chamada açúcar… Kunimune encostou as costas na janela da sacada, de repente começou a se lembrar de doces. Goro se lembrou da branquidão do açúcar na garrafa. Que roubaram para lamber, ele e mineko, o açúcar branco tão valioso, na casa da avó de Sakata. Não consegue se esquecer da doçura que se espalhou pela boca. A textura do torrão enrolado numa crosta grossa macia. Embrulhou um pouco em papel e provou na cama com Mineko. Visto sob a luz, o brilho intenso, pareciam pedaços de vidro. – Sem lugar para trabalhar, não importa o que fizermos, isso é melancólico. A terra natal também não é opção..." Senzo puxou seu cabelo como se estivesse fraco. – Não acredito que um estudante universitário possa abrir uma loja deixando cair a mochila na beira da estrada. – Sim. – Por que você não larga a escola e começa a procurar emprego com seriedade... – Viver é antes uma coisa difícil. – Se eu disse para você morrer, você não vai imediatamente... – Absolutamente. O mundo não se importa nem um pouco com estudantes como nós. Se você diz que há problemas demais, há mais do que isso. Não tenho quinhentos ienes e não posso estudar, de qualquer maneira. – Sei… – Quanto você recebe de salário, afinal? – Recebo como um antigo chefe de seção, provavelmente. – Então não é grande coisa. – Em primeiro lugar, não é isso. Uma vida sem comida perde resiliência, antes de tudo, e aquele que a vive perde seus sonhos.Você não consegue claramente discernir se é um jovem ou um velho. Uma década passa nebulosa e,se continuar assim, não será muito diferente da vida de um mendigo. É a mesma vida que viajar para o reino dos mortos ainda vivo. Por isso otimismo é otimismo.Sem ambição humana de ascensão e sucesso é muito fácil.Todo dia eu levo minha bolsa e trabalho, à noite eu compro berinjelas e tomates e vou para casa. Os livros são caros, por isso não os compro, mas fico com sono ao ler os anúncios do jornal da manhã. Quando acordo, pego minha bolsa novamente e vou para o trabalho. Não há nada de errado, nada que de contrário ao ser. Nesta vida ondulante como as persianas de uma barraca de gelo A Ferrovia Shosen atravessa os campos queimados. No estreito terreno baldio sob meus olhos há um monte de palha e espigas de milho.Segundo andar de quatro tatames e meio, mas ainda assim, um lugar paradisíaco.Embora os tatamis estejam avermelhados e o miolo esteja vazando, o aluguel é extremamente caro. Apenas dormir em tatames rasgados, vender todos os livros, as estantes estão sendo absorvidas pelo tatami, dia após dia. O fardo de um quarto em ruínas é estranho e frustrante para Senzo. O pobre destino, embora invisível a olho nu, soa baixinho ao vento como sinos de vento nos beirais. Assim, se não fosse por Goro, estaria caindo num abismo sem fundo. Ocasionalmente, como a via láctea, Goro e Sadako vinham vê-lo. – Desta forma, é muito solitário... – E se arranjasse uma esposa? – Eu não posso comer, Mulher que já desistiu do amor é patético. Kunimune sentou-se em atitude terrivelmente ameaçadora – Fujisaki, o racionamento. – O deus do andar debaixo está chamando. – O que é agora? – Senzo perguntou. – Konbu[14]* ralado – Que? Kunimune e Goro começam a rir com a resposta distraída de Senzo. Parece haver uma dúvida se Konbu ralado é importante. – Eu vou e volto." – Eu me pergunto se vai ser tão caro quanto no outro dia. Pergunte para o deus, se for muito caro, volte sem comprar. Não entendo porque as rações são tão caras, é estranho. “ – Já comeu uma farinha substituta baseada em farinha de konnyaku[15]? Dizem que custa oitenta ienes o kanme[16], como será que é… – Eu não estou com fome... Goro pegou a panela e desceu as escadas. [1] 日傭人 - Pessoa que vive de bicos (um trabalho diferente por dia) [2] Autor nascido em 1886 [3] 肝胆を砕いてゐるのがせいいつぱいである - no sentido de sobreviver mesmo que custe a humanidade do sujeito. [4] マザー - palavra em inglês. [5] 浅草 - bairro de Tóquio [6] 檜原村 - bairro de Tóquio [7] 水団 - bolinhos de farinha para comer na sopa [8] 餅 - bolinho ou massa de arroz batido no pilão [9] 下谷 - Bairro de Taito, cidade em Tóquio [10] 新富 - Cidade em Miyazaki [11] 大久保 - Bairro de Tóquio [12] 先輩 - aluno mais velho que serve de referência. [13] Ditame que prega a honra de ser forte enquanto ninguém está por perto, e de não se envergonhar quando há. [14] Alga marinha de mais difícil cozimento [15] 蒟蒻 - gelatinha a base de batata. [16] 貫目 - 3.75 kg

  • L. N. Tolstói

    por V. I. Lênin Imagem: Tolstói aos 80 anos de idade (Getty Images) O artigo que agora apresentamos foi por diversas vezes chamado de obituário de Tolstói, que havia morrido nove dias antes de sua publicação. Tal qual o texto que abriu a série sobre Tolstói, sua primeira tradução para a língua portuguesa foi feita por Eneida de Morais para compilação de textos e trechos (Trechos escolhidos sobre literatura e arte: Marx, Engels, Lenin e Stalin. Rio de Janeiro: Editorial Calvino, 1945) de Jean Fréville. Da mesma forma, uma segunda tradução foi feita pela Editora Avante! em Portugal (que parece ser a versão disponível em Lênin, V. I. Tolstoi, um grande artista, Portal Vermelho). Tendo por base fundamental as duas versões em português, a partir da comparação entre a versão do texto em espanhol (Lenin, V. I. Obras completas. Tomo XX, Moscou: Progreso, 1983, p. 19-24) e em inglês (Lenin, V. I. Collected Works. Vol. 16, Moscow: Progress Publishers, 1973, p. 321-327), realizamos consultas ao texto no original russo nas Obras Completas. Reforçamos aqui que nossa proficiência no idioma russo é ainda muito débil, sendo essa mais uma tradução provisória, preocupada centralmente em retomar o sentido de alguns elementos, como termos, palavras e ideias, perdidos pelas traduções disponíveis ao público lusófono. As palavras em destaque no texto de Lênin foram mantidas como no original. Revisão de tradução por Pedro Badô. Revisão textual por Wesley Sousa. Morreu Liev Tolstói. Sua importância mundial como artista, sua fama mundial como pensador e de pregador refletem, cada uma à sua maneira, a importância mundial da revolução russa. L. N. Tolstói surgiu como um grande artista ainda na época do regime de servidão. Numa série de obras geniais, escritas no decorrer de sua atividade literária de mais de meio século, ele retratou principalmente a velha Rússia pré-revolucionária, que permaneceu na semi-servidão depois de 1861 [1], a Rússia rural, a Rússia dos senhores proprietário de terra e do camponês. Desenhando esse período histórico da vida da Rússia, L. Tolstói soube apresentar tantas grandes questões em suas obras; soube elevar-se a uma força artística tão grande, que suas obras ocupam os primeiros lugares no romance moderno [2] mundial. A época dos preparativos da revolução num dos países oprimidos pelos senhores feudais destacou-se, graças à genial interpretação de Tolstói, como um passo à frente no desenvolvimento artístico de toda a humanidade. Tolstói, o artista, é conhecido por uma ínfima minoria, mesmo na Rússia. Para que suas grandes obras tornem-se verdadeiramente um patrimônio de todos, é necessário lutas e mais lutas contra a ordem social que condena milhões e dezenas de milhões à escuridão, ao medo, ao trabalho de condenado e à miséria, é necessário um golpe [3] socialista. Tolstói não só criou obras de arte que sempre serão apreciadas e lidas pelas massas, quando elas criarem para si condições humanas de vida, derrubando o jugo dos senhores proprietários de terras e dos capitalistas, – ele soube apresentar, com uma força notável, o estado de espírito [(humor); настроений, nastroyeniy] das grandes massas oprimidas pelo ordenamento atual [современным порядком, sovremennym poryadkom], descrever a posição, expressar o sentimento espontâneo de protesto e de indignação. Pertencendo principalmente à época dos anos 1861-1904, Tolstói corporificou em suas obras, com surpreendente relevo, – tanto como artista quanto como pensador e pregador – os traços históricos particulares de toda a primeira revolução russa, sua força e sua fraqueza. Um dos principais traços distintivos de nossa revolução consiste em ter sido uma revolução burguesa camponesa numa época de altíssimo desenvolvimento do capitalismo no mundo todo, e relativamente alto na Rússia. Foi uma revolução burguesa pois sua tarefa imediata era derrubar a autocracia tsarista, a monarquia tsarista e a destruição da propriedade senhorial da terra, e não a derrubada do domínio da burguesia. O campesinato em particular, não compreendia essa última tarefa, não compreendia a sua diferença em relação às tarefas mais próximas e mais imediatas da luta. E foi uma revolução burguesa camponesa pois as condições objetivas fizeram avançar para primeiro lugar a questão da alteração das condições fundamentais [коренных, korennykh] da vida do campesinato, da quebra da antiga propriedade medieval da terra, do “limpar terreno” para o capitalismo; as condições objetivas fizeram avançar para a arena da ação histórica, mais ou menos independente, as massas camponesas. As obras de Tolstói expressam tanto a força quanto a fraqueza, tanto a potência quanto a limitação, precisamente, do movimento de massa camponês. Seu protesto acalorado, apaixonado e, muitas vezes, impiedosamente cortante contra o Estado e a Igreja oficial- policialesca [полицейски-казенной церкви, politseyski-kazennoy tserkvi], expressa o estado de espírito da democracia primitiva camponesa [примитивной крестьянской демократии, primitivnoy krest'yanskoy demokratii], sobre a qual séculos de regime de servidão, de arbitrariedades do funcionalismo estatal e da pilhagem, do jesuitismo de igreja [4], de enganações e trapaças, acumularam-se montanhas de raiva e de ódio. Sua rejeição inflexível da propriedade privada da terra expressa a psicologia das massas camponesas nesse momento histórico em que a antiga propriedade medieval da terra, tanto do senhor proprietário quanto do “nadiel” estatal [5], tornou-se definitivamente um obstáculo intolerável ao avanço do desenvolvimento no país e em que esta antiga propriedade da terra estava, inevitavelmente, sujeita à mais drástica e mais implacável destruição. Sua denúncia incessante do capitalismo, cheia do mais profundo sentimento e da mais ardente indignação, expressa todo o horror do camponês patriarcal, sobre o qual um inimigo novo, invisível e incompreensível começou a se aproximar, vindo de algum lugar das cidades ou de algum lugar do estrangeiro, destruindo todos os “pilares” da vida rural aldeã, trazendo consigo uma devastação sem precedentes, a miséria, a inanição, o asselvagemento [одичание, odichaniye], a prostituição, a sífilis – todas as catástrofes da “época da acumulação originária” [6], agravados cem vezes pela transferência para o solo russo das técnicas mais modernas de pilhagem, desenvolvidos pelo senhor Kupon [7]. Mas o manifestante acalorado, o acusador apaixonado, o grande crítico, revelou em suas obras, ao mesmo tempo, uma tal incompreensão das causas e dos meios para sair da crise iminente na Rússia, o que só poderia ser típico de um camponês patriarcal e ingênuo, mas não de um escritor de educação europeia. A luta contra o Estado policial e defensor da servidão [8], contra a monarquia, transformou-se para ele em uma negação da política, o conduziu ao ensinamento da “não resistência ao mal”, o levou ao completo afastamento da luta revolucionária das massas em 1905-1907. A luta contra a Igreja oficial foi combinada com a pregação de uma religião nova e purificada, isto é, de um novo, purificado e refinado veneno para as massas oprimidas. A negação da propriedade privada da terra não levou à concentração de toda a luta contra o verdadeiro inimigo, contra a propriedade senhorial de terras e seu instrumento de dominação política, a monarquia, mas a suspiros sonhadores, vagos e impotentes. A denúncia do capitalismo e das calamidades que ele infligiu às massas foi combinada com uma atitude absolutamente apática em relação à luta mundial de libertação, travada pelo proletariado socialista internacional. As contradições da visão de Tolstói não são apenas contradições de seu pensamento pessoal, mas um reflexo [отражение, otrazheniye] daquelas condições, influências sociais e tradições históricas altamente complexas e contraditórias, que determinaram a psicologia das diversas classes e das diferentes camadas da sociedade russa na época pós-reforma, porém pré-revolucionária [9]. E, por isso, uma avaliação correta sobre Tolstói só é possível do ponto de vista da classe que, pelo seu papel político e pela sua luta durante o primeiro desenlace dessas contradições, durante a revolução, provou sua vocação para ser um guia na luta pela liberdade do povo e pela libertação das massas exploradas, – provou sua devoção abnegada à causa da democracia e sua capacidade de lutar contra a estreiteza e a inconsequência da democracia burguesa (inclusive a camponesa), – só é possível do ponto de vista do proletariado social-democrata. Veja a avaliação dos jornais do governo sobre Tolstói. Eles derramaram lágrimas de crocodilo, assegurando o seu respeito pelo “grande escritor”, mas, ao mesmo tempo, defendendo o “santíssimo” sínodo. E os santíssimos padres acabaram de cometer uma abominação particularmente repugnante ao enviar sacerdotes ao moribundo, para enganar o povo e dizer que Tolstói “se arrependeu”. O santíssimo sínodo excomungou Tolstói da igreja. Tanto melhor. Esta proeza será creditada a ele na hora da punição popular contra os funcionários de batina, os policiais em Cristo, os sombrios inquisidores que apoiaram os pogroms judeus [10] e outras façanhas da quadrilha tsarista dos centurionegristas [11]. Veja a avaliação dos jornais liberais sobre Tolstói. Eles se safam com suas frases vazias, oficial-liberais, professorais e banais sobre “a voz da humanidade civilizada”, sobre “a resposta unânime do mundo”, sobre “as ideias da verdade, da bondade”, etc., em razão das quais Tolstói fustigou – e fustigou corretamente – a ciência burguesa. Eles não podem manifestar direta e claramente sua avaliação sobre a visão de Tolstói em relação ao Estado, à Igreja, à propriedade privada da terra, ao capitalismo não porque a censura os impeça, – pelo contrário, a censura os ajuda a sair desse embaraço! –, mas porque cada posicionamento da crítica de Tolstói é uma tapa na cara do liberalismo burguês; porque o modo intrépido, aberto e impiedosamente cortante com que Tolstói expõe as questões mais sensíveis, mais desgraçadas de nosso tempo é um tapa na cara nessas frases prontas, nos subterfúgios batidos, nas mentiras evasivas e “civilizadas” de nossas publicações liberais (e liberal-narodniki). Os liberais defendem imensamente Tolstói, são imensamente contra o sínodo, e, ao mesmo tempo, estão com … os viekhistas [12], com os quais até “pode-se debater”, mas com os quais é “necessário” conviver num mesmo partido, “necessário” trabalhar em conjunto na literatura e na política. E os viekhistas são saudados com beijos por Antoni Volinski [13]. Os liberais trazem ao primeiro plano o fato de que Tolstói foi uma “grande consciência”. Esta não é uma frase vazia, repetida de mil modos pelo “Novoie Vremia” [14] e todos os seus semelhantes? Isso não é desviar das questões concretas da democracia e do socialismo expostas por Tolstói? Não é isso que traz ao primeiro plano aquilo o que em Tolstói expressa seus preconceitos e não sua razão, aquilo que nele pertence ao passado e não ao futuro, sua negação da política e sua pregação do autoaperfeiçoamento moral e não seu protesto impetuoso contra toda dominação de classe? Morreu Tolstói, e a Rússia pré-revolucionária ficou no passado, cuja fraqueza e apatia são expressas na filosofia e descritas nas obras do artista genial. Mas em sua herança há algo que não ficou no passado, que pertence ao futuro. Essa herança será apropriada e elevada, essa herança está sendo trabalhada pelo proletariado russo. Ele explicará às massas de trabalhadores e de explorados o significado da crítica tolstoiana ao Estado, à Igreja, à propriedade privada da terra – não para que as massas se limitem ao seu autoaperfeiçoamento e aos suspiros por uma vida divina, mas para que se levantem para desferir um novo golpe na monarquia tsarista e nos senhores proprietários de terras que, em 1905, foram apenas levemente danificados e que precisam ser exterminados. Ele explicará às massas a crítica tolstoiana ao capitalismo – não para que as massas se limitem a amaldiçoar o capital e o poder do dinheiro, mas para que elas aprendam a se apoiar, em cada passo de sua vida e de sua luta, sobre as conquistas técnicas e sociais do capitalismo, para que aprendam a unir num só exército de milhões de combatentes socialistas, que irão derrubar o capitalismo e fundar uma nova sociedade sem miséria do povo, sem exploração do homem pelo homem. Sotsial-Demokrat, nº 18, 16 (29, no calendário gregoriano) de novembro de 1910. Notas: [1] Lênin refere-se aqui à reforma do tsar Aleksandr II que, em 1861, aboliu legalmente o regime de servidão na Rússia. [2] O termo “художественной литературе” (“khudozhestvennoy literature”) pode ser traduzido livremente como “literatura artística”, no sentido de algo como “literatura ficcional”. No contexto em que Lênin emprega aqui, o termo parece denotar a forma moderna do romance europeu, em contraposição aos contos e narrativas da tradição popular sem autoria definida. [3] A expressão “переворот” (“perevorot”) costuma ter seu equivalente em nossa palavra “golpe”, como no caso de “golpe de Estado” (“государственный переворот”, “gosudarstvennyy perevorot”). No entanto, pode também significar algo próximo de uma “virada brusca”, um momento de virada no desenvolvimento e na história. [4] A expressão “jesuitismo” – “иезуитизма”, “iyezuitizma” – é normalmente compreendida em sentido pejorativo, designando algo de caráter dissimulado, hipócrita e evasivo. [5] O nadiel [надел, nadel] era uma forma específica de loteamento da terra e de exploração da força de trabalho dos camponeses. Também era muito recorrente que o nadiel fosse propriedade do Estado russo e que este, tal como um proprietário privado, explorasse o trabalho camponês. [6] Referência ao capítulo 24, “A assim chamada acumulação primitiva”, do Livro I d'O capital de Marx. (Cf. O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 785-834). [7] O senhor Kupon foi uma figura literária popular durante o fim do século XIX que representava o capital e os capitalistas. A figura foi originalmente utilizada pelo escritor russo Gleb Ivanovitch Uspenski nos ensaios Os pecados capitais [Грехи тяжкие, Grekhi tyazhkiye] em 1888. (Nota da edição em espanhol e inglês). [8] A expressão “крепостническим” (“krepostnicheskim”) já foi traduzida na presente edição como “defensor da servidão”, mas aqui cabe uma nota. Na versão brasileira da coletânea de Fréville, nesse trecho, a expressão é traduzida como “escravista”. De fato, em russo, a palavra é recorrentemente empregada para designar escravidão, como também pra designar a servidão feudal. Isso parece ter fundamento no próprio desenvolvimento da história da Rússia, na transição feita do escravismo para a servidão. Formas de contratos, consideradas por alguns estudiosos como uma espécie de escravidão legal, sobreviveram de modo residual até o século XIX. Além disso, traços da escravidão parecem ter sido incorporados ao feudalismo russo – como a possibilidade de aplicação de castigos físicos contra os servos –, criando um tipo de servidão muito particular e que, por isso, é até hoje objeto de grande debate e pesquisa histórica. [9] Lênin refere-se aqui ao período entre 1861, ano da reforma que aboliu legalmente a servidão, e 1905, ano em que a revolução democrática explodiu na Rússia. [10] Os pogroms – quem pode ser traduzido livremente como “causar estragos” ou “destruição violenta” – foram massacres feitos pela população em geral contra os judeus e outras minorias étnicas e religiosas nos territórios do Império russo e de outros países do leste europeu. Alguns dos pogroms mais conhecidos foram as grandes revoltas anti-semitas que aconteceram no atual território da Ucrânia e no sul da Rússia, entre 1881 e 1884, após o assassinato do tsar Aleksandr II. Os pogroms eram organizados muitas vezes com o incentivo das instituições tsristas, tal como a polícia secreta Okhrana, e por membros do clero ortodoxo. [11] Os centurionegrista – ou tchernossóteniets – eram membros do grupo paramilitar chamado Centúrias Negras – ou Cem Negros, Centenas Negras – fundado por volta de 1905, a partir de outros grupos existentes, para a defesa do tsarismo frente às ameaças da revolução democrática. Eram compostos e apoiados por intelectuais conservadores, funcionários do governo, membros do clero e proprietários de terras, sendo profundamente nacionalista e antissemita. [12] Os Viekhi – também conhecidos pelo título em inglês Landmarks ou Signposts – é uma coleção de ensaios publicada pela primeira vez em Moscou na primavera de 1909. Segundo o próprio Lênin, os Viekhi são uma “conhecida compilação feita pelos mais influentes ensaístas kadetes [constitucional-democratas]” – como Berdiaev, Bulgakov, Gershenzon, Izgoev, Kistiakovski, Struve e Frank –, que “foi recebida com entusiasmo por toda a imprensa reacionária e constitui um autêntico símbolo da época”. Os artigos tentavam colocar em questão as tradições democráticas revolucionárias do movimento popular russo, os pensadores como Belinski, Dobroliubov, Tchernishevski e Pisarev e o movimento revolucionário de 1905. Uma análise de Lênin sobre os Viekhi pode ser encontrada em Acerca de Veji, in: Obras completas. Tomo XVI, Madrid: Akal, 1977, p.119-127. [13] Antoni Volinski (Aleksei Pavlovitch Khrapovitski) foi um bispo da Igreja Ortodoxa russa, líder centurionegrista e chefe de extrema direita na Igreja, um dos líderes mais proeminentes da política reacionária do tsarismo. (Nota da edição em russo) [14] O Novoie Vremia (Novo Tempo) foi um jornal publicado entre 1868 e 1917 em São Petersburgo. Considerado um grande jornal de “tipo europeu”, publicava notícias estrangeiras bem detalhadas, anúncios de grandes empresas e obituários de figuras famosas. No entanto, com o passar do tempo, o Novoie Vremia ganhou reputação de um jornal servil, reacionário, sem escrúpulos e antissemita.

  • L. N. Tolstói e o contemporâneo movimento de trabalhadores

    por V. I. Lênin Imagem: Nikolai Ge, Retrato de Leo Tolstói. Este terceiro texto da série de escritos de Lênin sobre Tolstói teve, ao que tudo indica, uma única tradução para a língua portuguesa, feita pela brasileira Eneida de Morais (Trechos escolhidos sobre literatura e arte: Marx, Engels, Lenin e Stalin. Rio de Janeiro: Editorial Calvino, 1945). Aqui, da mesma forma que nos textos anteriores, nossa revisão de tradução se baseia nessa versão em português, na versão em espanhol (Lenin, V. I. Obras completas. Tomo XX, Moscou: Progreso, 1983, p. 39-42) e na versão em inglês (Lenin, V. I. Collected Works. Vol. 16, Moscow: Progress Publishers, 1973, p. 330-332), consultando também o texto no original russo nas Obras Completas. As palavras em destaque no texto de Lênin foram mantidas como no original. Revisão de tradução por Pedro Badô. Revisão textual por Wesley Sousa. Os trabalhadores russos, em quase todas as grandes cidades da Rússia, já reagiram à morte de L. N. Tolstói e expressaram, de uma forma ou de outra, sua atitude em relação ao escritor que forneceu uma série das mais admiráveis obras de arte, colocando-o entre os grandes escritores de todo o mundo, – ao pensador, que com enorme força, confiança e sinceridade, colocou toda uma série de questões relativas aos traços fundamentais do ordenamento político e social contemporâneo. De modo geral, essa atitude foi expressa num telegrama publicado nos jornais [1], enviado pelos deputados trabalhadores da III Duma [2]. L. Tolstói começou sua atividade literária durante a existência do regime de servidão, mas já num tempo em que esse vivia, evidentemente, seus últimos dias. A atividade principal de Tolstói compreende um período situado entre dois pontos de viragem da história russa, entre os anos 1861 e 1905 [3]. Durante esse período, os vestígios do regime de servidão [4], suas imediatas experiências vivenciadas [переживания, perezhivaniya], impregnaram-se por toda a vida econômica (especialmente nas áreas rurais) e política do país. E, ao mesmo tempo, precisamente esse período, foi um período de intenso crescimento do capitalismo a partir de baixo e sua implantação a partir de cima. Em que impactavam as experiências vivenciadas da servidão? Mais do que tudo e mais claramente que tudo, na Rússia, país preeminentemente agrícola, a agricultura, durante esse tempo, estava nas mãos de camponeses arruinados e empobrecidos, que geriam os meios produtivos [хозяйство, khozyaystvo] arcaicos e primitivos nos velhos nadiels [5] dos servos, retalhados em 1861 em benefício dos senhores proprietários. E, por outro lado, a agricultura que estava nas mãos dos senhores proprietários, que na Rússia central cultivavam as terras com o trabalho do camponês, com o arado de madeira camponês, com o cavalo camponês, em troca de “terras cortadas” [6], do local de ceifa, dos bebedouros, etc. Na realidade, estes eram os velhos meios de produzir do sistema de servidão. O regime político da Rússia, durante esse tempo, também estava completamente encharcado de servidão. Isso era visível tanto no arranjo estatal, antes dos primeiros ataques para modificá-lo em 1905, quanto na influência predominante dos nobres proprietários de terra nos assuntos estatais, e do poder ilimitado dos funcionários públicos, os quais eram a principal representação – especialmente os mais alto cargo – dos nobres proprietário de terra. Esta velha Rússia patriarcal, após 1861, começou a desmoronar-se rapidamente sob a influência do capitalismo mundial. Os camponeses morriam de fome, extinguiam-se, arruinavam-se, como nunca antes, e fugiram para as cidades, abandonando a terra. Estradas de ferro, fábricas e usinas eram rapidamente construídas graças ao “trabalho barato” dos camponeses arruinados. O grande capital financeiro, o grande comércio e a indústria desenvolveram-se na Rússia. É essa rápida, penosa e aguda quebra de todos os velhos “fundamentos” da velha Rússia que se refletiu nas obras do artista Tolstói e no modo de ver do pensador Tolstói. Tolstói conhecia magnificamente a Rússia rural, a vida do senhor proprietário de terras e do camponês. Em suas obras de arte ele deu tal representação desta vida, que se incluem entre as melhores obras da literatura mundial. A quebra aguda de todos os “velhos fundamentos” da Rússia rural aguçou sua atenção, aprofundou seu interesse pelo o que acontecia à sua volta, levou a uma virada em toda sua visão de mundo. Por seu nascimento e sua educação, Tolstói pertencia à mais alta fidalguia proprietária de terras da Rússia, – ele rompeu com todas as visões habituais desse ambiente e, em suas últimas obras, lançou uma crítica apaixonada contra a contemporânea ordem estatal, eclesiástica, social e econômica, fundadas na escravização das massas, na sua miséria, na ruína dos camponeses e dos pequenos patrões em geral, na violência e hipocrisia, que impregna de cima a baixo toda a vida contemporânea. A crítica de Tolstói não é nova. Ele nada disse que já não tivesse sido dito muito antes dele, tanto na literatura européia quanto russa, por quem que estava do lado dos trabalhadores. Mas a originalidade da crítica de Tolstói e sua importância histórica consiste em que ela expressa com uma tal força, que é peculiar apenas aos artistas geniais, a quebra do modo de ver das mais amplas massas populares da Rússia durante o período referido, e precisamente da Rússia rural, camponesa. Pois a crítica de Tolstói à ordem contemporânea difere-se da crítica a essa mesma ordem feita pelos representantes do contemporâneo movimento de trabalhadores, precisamente porque Tolstói situa-se do ponto de vista do camponês patriarcal, ingênuo, Tolstói transpõe essa psicologia para sua crítica, para seus ensinamentos. A crítica de Tolstói distingue-se, por isso, por uma tal força de sentimento, por uma tal paixão, uma persuasão, um frescor, uma sinceridade, um destemor no anseio de “chegar até à raízes”, de encontrar a presente causa da desgraça das massas, é que essa crítica reflete de fato uma quebra na visão de milhões de camponeses que acabavam de sair em liberdade do regime de servidão, e que viram que essa liberdade significa novos horrores da ruína, da morte pela fome, da vida sem abrigo entre os “khitrovstas” [7] da cidade, etc. Tolstói reflete esse estado de espírito deles tão fielmente que, ele mesmo, introduz em seus próprios ensinamentos a ingenuidade deles, a alienação política, o misticismo, o desejo de fugir do mundo, a “não resistência ao mal”, o impotente praguejar contra o capitalismo e o “poder do dinheiro”. O protesto de milhões de camponeses e seu desespero – eis o que se amalgamou nos ensinamentos de Tolstói. Os representantes do contemporâneo movimento de trabalhadores consideram que têm contra o que protestar, mas não porque se desesperarem. O desespero é próprio das classes que perecem, e a classe dos trabalhadores assalariados cresce, se desenvolve, se fortalece em toda a sociedade capitalista, inclusive na Rússia. O desespero é próprio de quem não compreendem os motivos dos males, que não vêem uma saída, que não são capazes de lutar. O proletariado industrial contemporâneo não pertence a tais classes. Nach Pout, nº 7, 28 de novembro (11 de dezembro, no calendário gregoriano) de 1910. Notas: [1] Estamos a falar de um telegrama enviado por deputados social-democratas da III Duma em Astapovo dirigido a V. G. Chertkov, amigo próximo e seguidor de L. N. Tolstói. Dizia: “A facção social-democrata da Duma de Estado, expressando os sentimentos do proletariado russo e de todo o proletariado internacional, lamenta profundamente a perda de um artista brilhante, um lutador irreconciliável e invicto contra o eclesismo oficial, um inimigo da arbitrariedade e da escravidão, que levantou ruidosamente a voz contra a pena de morte, um amigo perseguido.” (edição russa). [2] A Duma Estatal do Império da Rússia era um instituição legislativa convocada pelo tsar. A III Duma existiu entre 1907 e 1911. [3] Lênin refere-se aqui ao período entre o fim do regime de servidão (1861) e a revolução democrática de 1905. [4] Aqui a tradutora lusófona optou pela palavra “escravidão”, no entanto, no texto Lênin usou a palavra “крепостного права” (krepostnogo prava). Como já referimos em nota no texto anterior, servidão e escravidão, muitas vezes, são textos intercambiáveis no que se refere à realidade russa e tem um motivo histórico (Conferir nota 8 em L. N. Tolstói). No entanto, aqui estamos falando especificamente do regime de servidão, do direito/lei (права, prava) de servidão. [5] O nadiel [надел, nadel] era uma forma específica de loteamento da terra e de exploração da força de trabalho dos camponeses. [6] A expressão “terras cortadas” [отрезные земли] designava uma forma específica de expropriação feita pelos senhores proprietários de terra e pelo Estado russo após o fim da servidão em 1861, tornando recursos naturais importantes para a vida dos camponeses propriedade privada do senhor. “Quando da emancipação, cortaram dos camponeses terras que lhes eram necessárias, cortaram prados, pastagens, cortaram bosques, cortaram bebedouros para o gado”, explica Lênin em Aos pobres do campo. [7] O termo em russo, “хитровцев” (“khitrovtsev”), faz referência à Praça Khitrovskaia de Moscou, onde havia um mercado de carnes e verduras, chamado Khitrov, frequentado pelas classes populares. Na década de 1860, Khitrovka, como ficou conhecida a região moscovita, tornou-se um grande centro mercantil de força de trabalho não qualificada, atraindo camponeses desempregados que procuravam ganhar a vida na cidade grande. Os relatos dão conta de multidões de desempregados à espera de patrões que vinham de toda a Rússia para recrutá-los. Muitos deles não conseguiam encontrar trabalho, estabelecendo-se permanentemente naquela região degradada. A praça tornou-se um abrigo para condenados fugidos, indivíduos arruinados e outras pessoas em dificuldades. No entorno da praça surgiram pensões, bordéis e bares que, de alguma forma, abrigavam essa população. Há menções de uma ou duas gerações de pessoas que nasceram e cresceram na Praça Khitrovskaia. São esses camponeses pobres em busca de trabalho e habitantes dessa região que o termo pejorativo “khitrovstas” passou a designar.

  • Tolstói e a luta proletária

    por V. I. Lênin Imagem: Uma entrevista inédita com Liev Tolstói (blogletras.com) Assim como o texto que abriu a presente série de textos, a primeira tradução desse escrito para a língua portuguesa foi feita por Eneida de Morais para compilação de textos e trechos (Trechos escolhidos sobre literatura e arte: Marx, Engels, Lenin e Stalin. Rio de Janeiro: Editorial Calvino, 1945) de Jean Fréville. Tendo por base fundamental tal versão em português, a partir da comparação entre a versão do texto em espanhol (Lenin, V. I. Obras completas. Tomo XX, Moscou: Progreso, 1983, p. 73-74) e em inglês (Lenin, V. I. Collected Works. Vol. 16, Moscow: Progress Publishers, 1973, p. 353-354), realizamos consultas ao texto no original russo nas Obras Completas. Reforçamos aqui que nossa proficiência no idioma russo é ainda muito débil, sendo essa mais uma tradução provisória, preocupada centralmente em retomar o sentido de alguns elementos, como termos, palavras e ideias, perdidos pelas traduções disponíveis ao público lusófono. Revisão de tradução por Pedro Rocha. Revisão textual por Wesley Sousa. Tolstói fustigava com enorme força e sinceridade as classes dominantes, desmascarou com grande clareza a falsidade inerente a todas as instituições que ajudam a manter sociedade contemporânea: a Igreja, os tribunais, o militarismo, o casamento “legal”, a ciência burguesa. Mas seus ensinamentos revelaram-se em contradição completa com a vida, com o trabalho e com a luta do coveiro da ordem moderna, o proletariado. Qual o ponto de vista que se refletiu na pregação de Tolstói? Por meio de sua boca falava esta massa do povo russo, os milhões de homens que já detestam os senhores da vida moderna, mas que não tinham ainda atingido a luta consciente, consequente e implacável contra eles. A história e o resultado da grande revolução russa demonstraram que essa foi precisamente a massa que se encontrava entre o proletariado socialista consciente e os defensores resolutos do velho regime. Essa massa — principalmente o campesinato — demonstrou, durante a revolução, como era grande seu ódio contra o velho, como sentia vivamente todo o peso do regime moderno, quão grande é nela o desejo espontâneo de libertar-se dele e encontrar uma vida melhor. E, ao mesmo tempo, essa massa demonstrou durante a revolução que era insuficientemente consciente em seu ódio, inconsequente em sua luta, confinada por estreitos limites em sua busca por uma vida melhor. O grande mar do povo, agitado até às suas profundezas, com todas as suas fraquezas e toda sua força, encontrou o seu reflexo nos ensinamentos de Tolstói. Ao estudar as obras de arte de Liev Tolstói, a classe trabalhadora russa conhecerá melhor seus inimigos, e ao compreender os ensinamentos de Tolstói, todo o povo russo deverá compreender em que consistiu sua própria fraqueza, que não lhe permitiu levar até o fim a causa de sua libertação. Isso precisa ser compreendido para seguir em frente. Esse movimento para frente é impedido por todos aqueles que proclamam Tolstói como a “consciência geral”, como “mestre da vida”. É uma mentira espalhada conscientemente pelos liberais, desejosos por utilizar o lado antirrevolucionário dos ensinamentos de Tolstói. Essa mentira sobre Tolstói, como “mestre da vida”, é repetida por liberais e por alguns antigos social-democratas. Então, o povo russo só alcançará sua libertação quando entender que deve aprender a buscar por uma vida melhor não com Tolstói, mas com a classe cuja importância Tolstói não compreendia e que é a única capaz de destruir o velho mundo que Tolstói odiava — o proletariado. Rabotchaia Gazeta, nº 2, 18 (31, no calendário gregoriano) de dezembro de 1910.

  • Os heróis das “ressalvas”

    por V. I. Lênin Imagem: ITAR-TASS O presente texto é o penúltimo da série que se propôs a revisar e divulgar as traduções dos escritos de Lênin sobre Tolstói. Tal como os textos anteriores, sua primeira tradução para a língua portuguesa também foi feita por Eneida de Morais e está contida na compilação de textos e trechos organizada por Jean Fréville (Trechos escolhidos sobre literatura e arte: Marx, Engels, Lenin e Stalin. Rio de Janeiro: Editorial Calvino, 1945). Tendo por base fundamental tal versão em português, a partir da comparação entre a versão do texto em espanhol (Lenin, V. I. Obras completas. Tomo XX, Moscou: Progreso, 1983, p. 95-101) e em inglês (Lenin, V. I. Collected Works. Vol. 16, Moscow: Progress Publishers, 1973, p. 368-373), realizamos consultas ao texto no original russo nas Obras Completas. No caso específico deste texto, nossa revisão da tradução – com o cotejamento a partir do escrito original em russo –, o resultado foi um título relativamente diferente daquele pelo qual a primeira tradutora optou. Enquanto Eneida de Morais decidiu por Os heróis da “pequena resistência”, nos pareceu menos dúbio e menos polissêmico ao público brasileiro traduzir a palavra russa “оговорочность” por “ressalva”. Por fim, novamente reforçamos aqui que nossa proficiência no idioma russo é ainda muito débil, sendo essa mais uma tradução provisória, preocupada centralmente em retomar o sentido de alguns elementos, como termos, palavras e ideias, perdidos pelas traduções disponíveis ao público lusófono. Revisão de tradução por Pedro Badô. Revisão textual por Wesley Sousa. O décimo número da revista do sr. Potréssov e Cia., “Náchei Zarí”[1], que acabamos de receber, dá exemplos tão espantosos de descuido, ou melhor, de falta de princípios na apreciação sobre Liev Tolstói, que é necessário examiná-los agora, mesmo que brevemente. Tomemos o artigo do novo guerreiro do exército potréssoviano, V. Bazárov. Os editores não concordam com “certas afirmações” deste artigo, mas não indicam, é claro, quais são essas afirmações. É muito mais conveniente agir assim para encobrir a confusão! Quanto a nós, achamos difícil indicar afirmações deste artigo que não indignem uma pessoa que preze um pouco pelo marxismo. “Nossa intelligentsia – escreve V. Bazárov – despedaçada e molenga, transformada em um disforme lamaçal intelectual e moral, atingindo o último limite de decomposição espiritual, reconheceu unanimemente Tolstói – Tolstói como um todo – como sua consciência”. Isso é mentira. Isso é apenas uma frase. Nossa intelligentsia em geral, e a intelligentsia da “Náchei Zarí” em particular, se assemelha muito a pessoas “molengas”, mas ela não manifestou e não podia manifestar nenhuma “unanimidade” na apreciação de Tolstói, nunca fez e não poderia fazer uma apreciação correta sobre Tolstói como um todo. E é precisamente a ausência de unanimidade que é encoberta por uma frase de pura hipocrisia,  muito digna do “Nóvoie Vrêmia”[2], sobre a “consciência”. Bazárov não luta contra o “lamaçal”, mas estimula o lamaçal. Bazárov “gostaria de lembrar algumas injustiças (!!) em relação a Tolstói, de quem são culpados os intelectuais russos em geral, e nós, radicais de diferentes tipos, em particular”. A única verdade aqui é que Bazárov, Potréssov e Cia. são precisamente “radicais de diferentes tipos”, tão dependentes do “lamaçal” geral que, enquanto silenciam, da maneira mais imperdoável, as inconsistências e as fraquezas fundamentais da visão de mundo de Tolstói, correm como franguinhos [петушком; petushkom], como franguinhos atrás do “todo”, berrando sobre a “injustiça” feita a Tolstói. Eles não querem embriagar-se “com a droga muito difundida entre nós, que Tolstói chama de “a ira da discussão”[3], – é exatamente esse o discurso e a melodia necessária aos sujeitos medíocres[4] que, com um infinito desprezo, se afastam de toda discussão que tenha qualquer princípio defendido de maneira integral e coerente. “A força principal de Tolstói consiste justamente em que, tendo passado por todas as escalas da decomposição típica nas pessoas instruídas de hoje, soube encontrar sua síntese...”. Mentira. Foi exatamente uma síntese, seja nos fundamentos filosóficos de sua visão de mundo, seja em seus ensinamentos sociais-políticos, o que Tolstói não soube, ou melhor: não pôde encontrar. “Tolstói foi o primeiro (!) a objetivar, isto é, a criar não somente para si, mas também para os outros, essa religião puramente humana (os grifos são todos do próprio Bazárov), com a qual Comte, Feuerbach e outros representantes da moderna civilização só poderiam sonhar subjetivamente (!)”, etc., etc. Tal tipo de discurso é pior que a mediocridade habitual. É cobrir o “lamaçal” com flores artificiais, o que só pode enganar as pessoas. Há mais de meio século, Feuerbach, não sabendo “encontrar uma síntese” em sua visão de mundo, a qual representava sob vários aspectos a “última palavra” da filosofia clássica alemã, emaranhou-se nesses “sonhos subjetivos”, cujo significado negativo já havia sido apreciado há muito tempo pelos “representantes da moderna civilização” verdadeiramente avançados. Declarar agora que Tolstói “foi o primeiro a objetivar” esses “sonhos subjetivos” significa ingressar no campo daqueles que voltam para trás, significa lisonjear a mediocridade, significa cantar junto como viekhismo[5]. “É evidente que o movimento (!?) fundado por Tolstói deve sofrer mudanças profundas se estiver realmente destinado a desempenhar um grande papel histórico-mundial: a idealização da vida patriarcal-camponesa, a tendência para as maneiras de produção naturais e muitos outros traços utópicos do tolstoísmo que, no atual momento, estão se destacando (!) em primeiro plano e parecem ser os mais essenciais, são na realidade apenas os elementos subjetivos que não estão ligados por um vínculo necessário aos fundamentos da ‘religião’ tolstoiana.” Assim, pois, Tolstói “objetivou” os “sonhos subjetivos” de Feuerbach e o que Tolstói refletiu em sua genial obra artística e em seus ensinamentos cheios de contradições, as particularidades econômicas da Rússia do século passado notadas por Bazarov, são “apenas os elementos subjetivos” de seus ensinamentos. É o que se chama de alcançar o céu com o dedo[6]. Mas isso também quer dizer: para a “intelligentsia despedaçada e molenga” (etc., como citado acima), não há nada mais agradável, mais desejável, mais caro, nada que mais conivente com sua moleza que essa exaltação dos “sonhos subjetivos” de Feuerbach “objetivados” por Tolstói e isso é uma distração em relação às questões histórico- econômicas e políticas concretas que, “no atual momento, estão se destacando em primeiro plano”! É compreensível que Bazárov não goste especialmente da “crítica cortante” que o ensinamento da não resistência ao mal causa “por parte da intelligentsia radical”. Para Bazárov, “está claro que não há que se falar aqui de passividade e quietismo”. Explicando seu pensamento, Bazárov se refere ao conhecido conto “Ivan, o tolo” e propõe ao leitor “imaginar que não é o tsar das baratas[7] que envia os soldados contra os tolos, mas sim seu próprio inteligente soberano Ivan, que, com o auxílio desses soldados, recrutados pelos próprios tolos, e, portanto, próximo a eles em sua constituição mental, Ivan quer obrigar seus súditos a executar qualquer exigência injusta. É bastante óbvio que os tolos, quase desarmados e não conhecendo a arte militar, não podem sequer sonhar com a vitória física sobre as tropas de Ivan. Mesmo com a mais enérgica ‘resistência pela violência’, os tolos podem vencer Ivan não fisicamente, mas apenas pela influência moral, isto é, apenas pela chamada ‘desmoralização’ dos soldados das tropas de Ivan”... “A resistência dos tolos pela violência obtém o mesmo resultado (apenas pior e com mais vítimas) que a resistência sem violência”... “A não resistência ao mal pela violência, ou de maneira mais geral, a harmonia entre os meios e os fins (!!) não é, de modo algum, uma ideia exclusiva dos pregadores morais anti-sociais. Esta ideia constitui um componente necessário de toda visão de mundo integral”. Assim raciocina o novo guerreiro do exército potréssoviano. Não podemos aqui analisar seus raciocínios, mas talvez seja suficiente, pela primeira vez, reproduzir simplesmente o essencial e acrescentar três palavras: é puro viekhismo. Dos acordes finais da cantata sobre o tema de que as orelhas não ultrapassam a testa: “Não há necessidade de representar nossa fraqueza como força, como superioridade sobre o ‘quietismo’ e o ‘raciocínio limitado’ (e sobre a inconsequência dos raciocínios?) de Tolstói. Isso não deve ser dito não apenas porque contradiz a verdade, mas também porque isso nos impede de aprender com o maior homem de nosso tempo.” Muito bem. Muito bem. Não há porque ficar com raiva, senhores, e responder com bravatas e injúrias ridículas (como sr. Potréssov nos números 8-9 do “Náchei Zarí”) se vocês são abençoados, aplaudidos e beijados pelos Izgoiev[8]. Desses beijos, nem os antigos nem os novos guerreiros do exército potréssoviano podem ser purificados. O estado-maior desse exército acrescentou uma ressalva “diplomática” ao artigo de Bazárov. Mas o editorial do sr. Nevedomski, publicado sem nenhuma ressalva, não é muito melhor. “Tendo absorvido para si – escreve este orador da intelligentsia contemporânea – e incorporando de maneira completa as aspirações e as tendências basilares da grande época da queda da servidão na Rússia, Liev Tolstói revelou-se a mais pura e acabada encarnação do princípio ideológico humano-universal – o princípio da consciência”. Hum, hum, hum... Tendo absorvido para si e incorporando de maneira completa as formas basilares de declamação típica dos publicistas liberal-burgueses, M. Nevedomski revelou-se a mais pura e acabada encarnação do princípio ideológico humano-universal, – o princípio da conversa fiada. Ainda mais um relato, o derradeiro[9]: “Todos esses admiradores europeus de Tolstói, todos esses Anatole France de diversas denominações, e as Câmaras de Deputados que, recentemente, votaram em enorme maioria contra a abolição da pena de morte, e que agora homenagearam de pé o grande homem íntegro, tudo isso é o reino das intermediações, da indinferença, de ressalvas – que figura majestosa e poderosa que se levanta diante deles, fundido num só metal puro, a imagem desse Tolstói, dessa encarnação viva de um princípio único”. Ufa! Ele fala bem – mas tudo isto é falso. Não foi nem num único, nem num puro, nem em um metal que se forjou a figura de Tolstói. E “todos esses” admiradores burgueses “homenagearam de pé” sua memória não exatamente por sua “integralidade”, mas justamente pelo desvio da integralidade. O sr. Nevedomski deixou escapar apenas uma boa palavra. Essa palavra – ressalva – descreve tão bem aqueles senhores do “Náchei Zarí”, assim como a caracterização da intelligentsia de V. Bazarov acima mencionada. Temos diante de nós explicitamente os heróis da  “ressalva”. Potréssov faz uma ressalva de que não concorda com os machinistas[10] embora os defenda. Os editores fazem ressalvas de que não estão de acordo com “posições específicas” de Bazárov, embora seja claro para todos que não se trata de posições específicas. Potréssov faz a ressalva de que Izgoiev o caluniou. Mártov faz a ressalva de que não está inteiramente de acordo com Potréssov e Levitski, embora seja a estes a quem ele presta um serviço político fiel. Todos juntos fazem a ressalva de que não estão de acordo com Tcherevanim, embora aprovem muito mais seu segundo livro liquidacionista, que acentua o “espírito” de sua primeira criação. Tcherevanim faz ressalvas de que não está de acordo com Maslov. Maslov faz ressalvas de que não está de acordo com Kautsky. Todos juntos estão de acordo apenas de que não estão de acordo com Plekhânov e sobre o fato deste acusá-los caluniosamente de serem liquidacionistas, sendo ele próprio incapaz de explicar suas relações atuais com os adversários de ontem. Não há nada de mais simples do que a explicação dessa aproximação, incompreensível para as pessoas de ressalvas. Quando tínhamos uma locomotiva, estávamos em desacordo veemente sobre a questão de saber se a velocidade, digamos, de 25 ou 50 verstas por hora, correspondia à potência dessa locomotiva, ao estoque de combustível, etc. A discussão sobre esta questão, como sobre toda questão profundamente acalorada, era travada com ardor e algumas vezes com ira. Este debate – em todas as questões que se levantaram – está à vista de todos, aberto a todos, tudo está plenamente em acordo, não encoberto por nenhuma “ressalva”. E nenhum de nós pensa em retirar nada ou reclamar da “ira da discussão”. Mas, quando a locomotiva sofreu uma avaria, quando caiu num pântano cercada da intelligentsia com “ressalvas”, que zombam covardemente porque não há “nada a liquidar”, porque a locomotiva não mais existe, então nós, “discutidores irados” de ontem, unimo-nos por uma causa comum. Sem renunciar a nada, sem esquecer nada, sem fazer nenhuma promessa quanto ao desaparecimento das diferenças, servimos juntos a uma causa comum. Estamos direcionando toda nossa atenção e todos nossos esforços para reerguer a locomotiva, para concertá-la, para torná-la mais sólida, mais resistente, para colocá-la nos trilhos – teremos tempo para discutir quanto à velocidade e à mudança desta ou daquela agulha no devido momento. A tarefa atual desses nossos tempos difíceis é criar algo capaz de se opor às pessoas de “ressalvas” e à “intelligentsia despedaçada e molenga”, que estimulam direta e indiretamente o “lamaçal” reinante. A tarefa atual é, mesmo nas condições mais difíceis, escavar em busca do minério, extrair o ferro, fundir o aço da visão de mundo marxista e das superestruturas que correspondem a essa visão de mundo. Misl, nº 1, dezembro de 1910. Notas: [1] A Náchei Zarí foi uma revista dos chamados mencheviques liquidacionistas. Foi editada em São Petersburgo entre janeiro de 1910 e setembro de 1914. [2] O Nóvoie Vrêmia foi um jornal publicado entre 1868 e 1917 em São Petersburgo. Considerado um grande jornal de “tipo europeu”, publicava notícias estrangeiras bem detalhadas, anúncios de grandes empresas e obituários de figuras famosas. No entanto, com o passar do tempo, o Novoie Vremia ganhou reputação de um jornal servil, reacionário, sem escrúpulos e antissemita. [3] A expressão referida, “озлоблением спора” – que costuma também ser traduzida como “exasperação da discussão” –, foi utilizada por Tolstói no último parágrafo da seção XV de sua obra “Uma confissão”. [4] Lênin utiliza aqui a expressão “обывателями” (“obyvatelyami”), comumente traduzida como “filisteus” ou “pequeno-burgueses”. A palavra “обыватель” designava os residentes das pequenas cidades e aldeias no interior da Rússia e, por isso, passou a ter também um sentido pejorativo, próximo, em certa medida, do sentido negativo de “filisteu”, isto é, aquele indivíduo cujos interesses são mesquinhos e rasteiros, sendo um tanto desprovido de capacidades críticas ou de interesse pela arte e por outras áreas do pensamento que se afastem da imediaticidade do cotidiano. [5] Os Viekhi – também conhecidos pelo título em inglês Landmarks ou Signposts – é uma coleção de ensaios publicada pela primeira vez em Moscou na primavera de 1909. Segundo o próprio Lênin, os Viekhi são uma “conhecida compilação feita pelos mais influentes ensaístas kadetes [constitucional-democratas]” – como Berdiaev, Bulgakov, Gershenzon, Izgoev, Kistiakovski, Struve e Frank –, que “foi recebida com entusiasmo por toda a imprensa reacionária e constitui um autêntico símbolo da época”. Os artigos tentavam colocar em questão as tradições democráticas revolucionárias do movimento popular russo, os pensadores como Belinski, Dobroliubov, Tchernishevski e Pisarev e o movimento revolucionário de 1905. Uma análise de Lênin sobre os Viekhi pode ser encontrada em Acerca de Veji, in: Obras completas. Tomo XVI, Madrid: Akal, 1977, p.119-127. [6] Do original russo “попасть пальцем в небо”, trata-se de um expressão que designa o ato de dar uma resposta ou uma solução de forma inadequada, de explicar algo de maneira estranha ou estúpida. [7] O tsar das baratas (“тараканский царь”), também traduzido como “rei barata”, é um personagem do referido conto Ivan, o tolo. [8] Se trata de uma referência a Aleksandr Samoilovich Izgoiev, pseudônimo literário de Aron Solomonovich Lande, líder dos kadetes – os constitucional-democratas – e viekhista. [9] Verso célebre de Pushkin – no original russo, “Еще одно, последнее сказанье” – na obra Boris Godunov, que abre a cena em que o padre Pímen escreve sobre a história da Rússia. [10] Referência aos seguidores de Ernst Mach (1838-1916), influente físico austríaco e teórico ligado à tradição do empiriocriticismo.

  •  Notas sobre a formação da subjetividade na sociedade burguesa

    Imagem: 1975: ARTAUD AT RODEZ, part of Charles Marowit'z Theatre of Cruelty season at the Open Space Theatre, London Lucas Rodrigues Coelho. “Sem dúvida, ser negociado não é, para um sujeito humano, uma situação rara,  contrariamente à falação que diz respeito à dignidade humana, senão aos Direitos do Homem.  Qualquer um, a todo instante e em todos os níveis, é negociável, pois o que nos dá qualquer  apreensão um pouco mais séria da estrutura social é a troca. A troca de que se trata é a troca  de indivíduos, isto é, de suportes sociais, que são ademais o que chamamos de sujeitos, com o  que eles comportem de direitos sagrados, diz-se, à autonomia. Todos sabem que a política  consiste em negociar e, desta vez, por atacado, aos pacotes, os mesmos sujeitos, ditos cidadãos  por centenas de milhares” (Jacques Lacan- Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise,  1964). Mais de cem anos após a descoberta da divisão subjetiva em termos freudianos, e da  criação da Psicanálise, vivemos em um mundo devastado pelo capitalismo em crise estrutural  que, em seu processo de acumulação, engendra níveis de miséria material e psíquica sem  precedentes. À gigantesca massa de trabalhadores mundial se apresenta como necessidade  imediata, para sua sobrevivência, dois cotidianos e repetitivos atos: 1) A venda de sua força de trabalho. 2) A compra de mercadorias com seu salário, para a satisfação de suas necessidades,  compra esta que cumpre a função de realização do valor. Temos, a partir desses dois atos, o engendramento de uma relação na qual o indivíduo precisa se colocar como coisa, como mercadoria, para manter-se vivo. Os impactos para a subjetividade só podem ser o de identificação não só com a forma mercadoria, como também com o próprio capital. Tal processo identificatório parece ser decisivo para a constituição da subjetividade humana em nossa forma de organização social. Tendo em vista o processo de reprodução social, tal como Georg Lukács apresentou em sua monumental obra “Para a Ontologia do Ser Social” publicada em 1970, o processo de reprodução social garante a manutenção de uma forma de organização social específica através da reprodução de suas relações fundamentais: 1) As relações de produção da vida social que ocorrem através de formas de organização do trabalho e de distribuição dos produtos deste. 2) As relações de reprodução da vida social que garantem as condições para a  manutenção das relações de produção,incluindo o ordenamento jurídico no caso  da forma social capitalista. O processo de reprodução social representado por Lukács (1970/2018) é fundamental  para entendermos como ocorre a formação da subjetividade individual, uma vez que a  reprodução filogenética e ontogenética estão suprassumidos ao processo de reprodução social.  Lukács (1970/2018) Em A Ideologia Alemã (2007), Marx já teoriza acerca das relações de produção e  reprodução da vida social: “O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a   satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e   este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda   história, que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida  diariamente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos” (MARX; ENGELS, 2007). Portanto, se a dependencialidade da vida humana, tanto no nível filogenético quanto no  nível ontogenético, à uma dada forma de organização social historicamente estabelecida  constitui o ser humano enquanto ser social e a subjetividade humana vai se constituir enquanto  subjetivação do conjunto de objetivações possíveis e necessárias para a manutenção da vida  humana no interior daquela forma de organização social, como abordado detalhadamente por  Gilmaisa Macedo em Indivíduo e sociedade sobre a teoria de personalidade em Georg Lukács  de 2012, o processo de individuação de cada novo humano está marcada por uma identificação  primária e inconsciente com a forma de organização social vigente, pois a sua vida depende da  manutenção de certas relações ainda que o ser do indivíduo nunca se reduza completamente ao  ser de sua época. Essa irredutibilidade ocorre, pois, sendo o indivíduo exemplar do gênero  humano e diferenciado qualitativamente do restante da natureza pela socialidade humana, há  sempre nele a potencialidade de transformar o mundo segundo uma finalidade, um telos, para  satisfazer suas necessidades através de escolhas entre alternativas concretas, factíveis, como  aponta Lukács (2018). Portanto, ele se identifica com as ideias derivadas das relações sociais  fundamentais de sua época, porém nunca é idêntico a elas. No entanto, se a reprodução da vida humana enquanto espécie e a manutenção da vida individual, são subssumidos pela reprodução do modo de produção capitalista, a consequência desse processo objetivo na constituição subjetiva será uma identificação primária e inconsciente - inconsciente no sentido de imperceptível ao indivíduo identificado - do ser humano com o ser do capital, através da qual o indivíduo age, mesmo nas suas relações pessoais, - fora das relações sociais, de produção, nas quais ocorrem os processos de fetichização - como se ele fosse uma coisa abstrata, que precisa estar em constante processo de valoração da sua personalidade enquanto coisa em si, através de trocas interpessoais. Desse modo, a personalidade se forma de maneira reificada, onde o indivíduo vê a si como objeto, como coisa, às vezes como objeto para o outro, às vezes como coisa possuidora de outras pessoas coisificadas, mas a diferenciação entre essas duas posições gerais será assunto para outro texto[1]. O processo de formação do indivíduo ocorre sempre no interior de uma dada forma de organização social específica, tendo o complexo familiar como principal complexo mediador no processo de gênese e desenvolvimento individual. É no interior da família que o processo  orgânico-biológico de gestação da prole se dá. Aqui, temos mais uma vez um processo no qual a socialidade humana tem a dimensão biológica e orgânica subsumidos a primeira: As condições nas quais cada gestação ocorre - aparentemente um processo puramente natural e até, como alguns autores da Psicologia e da Psicanálise já equivocadamente abordaram, instintivo[2]- depende das condições dadas no interior da vida social, para cada camada da hierarquia social. A gestação de uma mulher das classe burguesa tende a ter condições nutricionais, emocionais e físicas muito distintas daquelas observadas entre as mulheres proletárias. Não é objetivo deste texto aprofundar nessas diferenças, mas sinalizar como a suprassunção do ser biológico pelo social, apontado por Lukács (2008), em especial no capítulo da Reprodução Social, se faz presente na vida de um indivíduo desde a sua concepção[3] A família enquanto complexo social mediador entre o indivíduo singular e a vida social geral visa a reprodução vital dos membros de um dado modo de organização social, de tal forma que os indivíduos possam manter um determinado modo de organização social simultaneamente à manutenção de suas próprias vidas individuais. No clássico A Origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884) Friedrich Engels apresenta com pormenores antropológicos a complexa e diversa inter-relação histórica entre os diversos modos de produção e os variados tipos de família. No entanto, no posfácio da primeira edição, o velho general faz a seguinte síntese: “ [...] o fator determinante, em última instância, na história é a produção e a reprodução da vida imediata que, no entanto, se apresentam sob duas formas. De um lado a produção dos meios de subsistência, de produtos alimentícios, habitação e instrumentos necessários para isso. De outro lado, a produção de mesmo homem, a reprodução da espécie. A ordem social em que vivem os homens de determinada época histórica e de determinado país está condicionada por esses dois tipos  de produção: de um lado, pelo grau de desenvolvimento do trabalho e, de outro, pela família. Quanto menos desenvolvido estiver o trabalho, quanto mais reduzida for a quantidade de seus produtos e, em decorrência, a riqueza da sociedade, tanto mais fortemente a ordem  social é determinada pelos laços de parentesco” (ENGELS;2017) Aqui cabe destacar que quaisquer visões a-históricas, romantizadas e sacralizadas de família estão descartadas como factíveis historicamente, sendo a família um complexo social que reflete em um microcosmos as relações de dominação vigentes de um dado tempo histórico. Assim, Engels (2017) citando Marx, se refere à família em sua obra clássica: “A família moderna contém em germe não apenas a escravidão (servitus) como também a servidão, pois desde o começo, está relacionada aos serviços da agricultura. Ela contém em si, em miniatura, todos os antagonismos que se desenvolverão mais tarde na sociedade e em seu Estado” (ENGELS, 2017) A obra engelsiana faz um enorme recorrido entre as diversas formas familiares históricas, com base em dados etnográficos de diversos autores, principalmente de Lewis Morgan (1818-1881) e de J.J Bachofen (1815-1887), até abordar a forma familiar atual, caracterizada pela submissão dos laços de parentesco à propriedade privada, submissão esta, mediada pelo Estado com o estabelecimento dos marcos jurídicos para a unidade familiar: “A velha sociedade, baseada nos laços de parentesco, é destruída em decorrência do choque entre as classes sociais recém-formadas. Em seu lugar surge uma nova sociedade, organizada em Estado, cujas unidades  inferiores já não são agrupamentos segmentados em laços de parentesco, mas unidades territoriais, uma sociedade em que o regime familiar está totalmente submetido às relações de propriedade e na qual se desenvolvem livremente as oposições de classe as lutas de classes que constituem o conteúdo de toda história escrita até os nossos dias.” (ENGELS; 2017) O trabalho de Engels foi estudado criticamente por diversas autoras, principalmente aquelas ligadas ao movimento feminista e de estudos de gênero, considerada a importância que a obra Engelsiana teve no debate em relação ao patriarcado, como podemos notar nessa passagem em que o autor  faz o seguinte balanço histórico: “ A derrocada do direito materno foi a derrota do sexo feminino na  história universal. O homem tomou posse também da direção da casa,  ao passo que a mulher foi degradada, convertida em servidora, em escrava do prazer do homem e em mero instrumento de reprodução. Esse rebaixamento da condição da mulher, tal como aparece abertamente sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos e mais ainda dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocado, dissimulado e, em alguns lugares, até revisado de formas mais suaves,  mas de modo algum eliminado” (ENGELS,2017). Autoras como Alexandra Kollontai (1872-1952) e mais recentemente Silvia Federici (1942-) e a brasileira Marília Moschkovich continuaram no Século XX e XXI a teorização de corte marxista acerca da família contemporânea para além do clássico de Engels. Por outro lado, o trabalho etnográfico de Eleanor Leacock (1922-1987) reunidos na esplêndida coletânea: Mitos da dominação masculina (1981) atualizaram, também, as formulações marxistas sobre as sociedades do chamado comunismo primitivo. Outra contribuição importante sobre o tema, desta vez focada na origem e desenvolvimento do amor sexuado individual, foi dada por Sérgio Lessa em Abaixo a família monogâmica (2012) e Amor em tempos de crise estrutural (2021). Todos os autores supracitados fizeram contribuições no sentido de desnaturalizar as relações familiares e sentimentos, dentre eles o suposto amor que permeia tais relações, sem perder de vista a articulação do complexo social familiar com a totalidade das relações do modo de produção capitalista[4]. Podemos dizer que, conscientemente ou não, a tradição teórica de estudos sobre o complexo social familiar que vai de Engels até Lessa (2012; 2021) contribui para o desvelamento ontológico do conjunto de relações no interior do complexo familiar e, assim, seus desdobramentos subjetivos, necessários para o funcionamento deste, que pressupõe a procriação dos membros adultos constituintes de núcleo familiar, formado a partir do matrimônio. Portanto, o processo de individuação e formação subjetiva se dá no interior da vida social que tem como base tal articulação: O indivíduo, que só pode nascer e se desenvolver no interior deste complexo familiar[5], vai necessariamente expressar no interior do seu desenvolvimento subjetivo as contradições que estão expressas no interior da família inevitavelmente, independentemente da vontade dos indivíduos envolvidos no processo. Portanto, todos os fenômenos subjetivos, mesmos aqueles aparentemente mais individuais, mais privativos, e mais únicos, só podem ser explicados corretamente enquanto expressão subjetiva de tais relações sociais, o que não exclui, obviamente, o fato de que tais fenômenos  tenham significação particular-singular para o próprio indivíduo que as vive[6]. Parece que ainda estamos longe de uma compreensão total do processo de determinação geral da subjetividade[7], mas algumas bases já podem ser apresentadas como alicerces para desenvolvimentos ulteriores: A família moderna, aqui chamada genericamente de família burguesa está assentada na submissão da mulher pelo homem[8], sendo a essência dessa submissão, por um lado, o trabalho doméstico[9], e por outro, a monogamia: que nada mais é do que a servidão sexual da  mulher ao marido, visto que o exercício da vida sexual masculina fora do casamento é moralmente tolerado desde a época do livro de Engels: “Surge, conforme foi demonstrado, da família pré-monogâmica, no período de transição entre a fase média e a fase superior da barbárie.Seu triunfo definitivo é uma das características da civilização nascente. Baseia-se no domínio do homem com a finalidade expressa de procriar filhos cuja paternidade fosse indiscutível e essa paternidade é exigida  porque os filhos deverão tomar posse dos bens paternos, na qualidade de herdeiros diretos. A família monogâmica se diferencia do casamento pré-monogâmico por uma solidez muito maior dos laços conjugais que  já não podem ser rompidos por vontade de qualquer uma das partes. Agora, como regra, só o homem pode rompê-lo e repudiar sua mulher.  Ao homem, igualmente, é concedido o direito à infidelidade conjugal, sancionado ao menos pelo costume (o código de Napoleão outorga-o expressamente ao homem, desde que ele não traga a concubina ao domicílio conjugal), e esse direito se exerce cada vez mais amplamente, à medida que se processa o desenvolvimento social. Quando a mulher, por acaso, recorda as antigas práticas sexuais e tenta renová-las, é  punida mais rigorosamente do que nunca.” (ENGELS; 2017). Em seu estudo, Lessa (2021) se valendo dos estudos de Leacock (2019) e do próprio  Engels (2010) sintetiza a relação necessária entre a família monogâmica, a propriedade privada - e consequentemente as sociedades de classes que subjazem desta - e a opressão de gênero: “[...] O que nos é decisivo é que a monogamia entrou na história da humanidade como relação essencialmente desigual, de opressão. Correspondente, sempre e em todos os lugares, à dominação da família pelo proprietário privado (o sexo do porpietário privado é pouco importante, ainda que na maior parte das vezes seja o homem o proprietário e a mulher a parte oprimida). Esse modo de organização  familiar não existia antes das sociedades de classe. Por outro lado, não há sociedade de classe que não tenha nesse modo de organização familiar um dos seus fundamentos mais importantes, ao lado do Estado e da propriedade privada.” (LESSA; 2021) Embora, Lessa (2021) diga que o sexo do proprietário seja pouco importante - afirmação da qual discordo[10]- algumas páginas seguintes, ao descrever a gênese histórica da família monogâmica na sua articulação com a propriedade privada, o próprio autor, recorrendo  a Engels (2010) e Leacock (2019), descreve o cenário de dominação no interior da família a  partir de seus atores sexuados: “Que por milênios e mesmo ainda hoje o dominante da família seja o homem, é apenas um indício de que a propriedade privada entrou na história como um atributo masculino. Este atributo masculino se funda no fato de que o número de mulheres é o que determina a taxa de natalidade das sociedades primitivas. A vida da mulher era mais  importante que a vida do homem, e por isso, coube a este exercer a  forma originária de violência sem a qual não há exploração do ser  humano pelo ser humano: a guerra. Os homens fazem a guerra, é por ela que originalmente se obtém a propriedade privada Mais cedo do que tarde, a propriedade privada passou a ser dos homens e as  mulheres, para terem lugar na sociedade, tiveram de aceitar, como esposas ou prostitutas, o novo poder econômico concentrado nos homens.” (LESSA;2021). A divisão sexual do trabalho, impôs aos indivíduos a partir daí, condições para a formação da personalidade mediada pela uma identidade de gênero determinada de acordo com  os papéis e ideais masculinos e femininos[11], com Lessa (2021) narra: “Ao longo de milênios, esta dominação moldou um padrão de masculinidade e de feminilidade que é, para todos nós, uma vivência  cotidiana. A mulher dócil, abnegada, dedicada à família, obediente e que se deixa conduzir. Na vida, bem como na cama. O homem é um conquistador, capaz de prover a família. Também, na vida como na cama. Deve estar claro: isso nada tem de biológico, é puramente social. Não é menos verdade é que, se a alienação do homem e da mulher é essencialmente a mesma, ela não é idêntica para o dominante e o dominado. O primeiro, por ser proprietário privado, precisa cuidar da propriedade privada familiar [...]. A mulher, ao contrário, serve à propriedade privada cumprindo tarefas locais e privadas: arrumar casa, cozinhar, cuidar dos filhos, arrumar-se para receber o dominante e assim por diante [...]. Esta situação de dominação abre aos homens um espaço de desenvolvimento pessoal muito mais amplo do que às mulheres, pois o polo dominante tem de se conectar cotidianamente à  totalidade social, enquanto o polo dominado vive uma vida cotidiana limitada ao lar e à reprodução da família, apartada da totalidade social”  (LESSA; 2021). As diferenças na formação da personalidade entre homens e mulheres serão melhor explicitadas em outro texto devido à complexidade do tema. Por hora basta dizer que é nesse  complexo familiar - sem descartar as variações particulares existentes entre culturas, nações e camadas sociais distintas - que a subjetividade individual se forma. Notem que tal estado objetivo e concreto de coisas, pressupõe que o indivíduo já nasce no interior de uma coletividade que tem como base a submissão da sexualidade humana à propriedade privada: O próprio ato de nascimento de um bebê, o próprio surgimento da prole, já ocorre tendo como seu pressuposto uma forma de alienação da sexualidade humana. É lícito dizer, com base em todo o cenário formulado pelos autores até agora, que tal alienação sexual é mais forte entre as  mulheres do que aos homens, mas ela parece estar generalizada à ambos os sexos na medida que as formas de exercício da sexualidade estão, necessariamente, mediadas pela propriedade privada através da família monogâmica. A submissão da sexualidade humana em geral à propriedade privada, e em nosso caso  particular à ordem do Capital, pode explicar a força que a sexualidade ganhou na formulação freudiana através de sua teoria da libido: a sexualidade no modo de produção capitalista aparece como uma força abstrata, ingovernável, incontrolável, que pode ser manejada com investimentos e contrainvestimentos, refletindo no interior da subjetividade, a incontrolabilidade do Capital no mundo externo. Daí vem a genialidade da formulação de Michael Schneider em Neurose e Classes Sociais: Uma Síntese Freudiano-Marxista (1977), ao afirmar que a Psicanálise desvelou a pseudonatureza humana, ainda que seus teóricos acreditaram, e ainda acreditam, que tenham desvelado a natureza humana em si. Mais importante do que o status da Psicanálise é o conjunto de implicações para o entendimento da subjetividade que a suprassunção da vida humana à reprodução do Capital  tem: se a vida individual depende da reprodução da ordem burguesa, isso leva a uma identificação primária e inconsciente, desde o nascimento, dos indivíduos ao próprio ser do capital, ainda que ela seja relativa e não absoluta, como ocorre na maior parte dos processos identificatórios. Tal identificação se dá porque, invariavelmente, no interior da família monogâmica patriarcal - que é a forma familiar necessária à sociedade burguesa - o indivíduo, ainda recém-nascido, é posicionado no interior das relações familiares como objeto para o outro, ainda que os cuidadores dessa criança o façam sem perceber, como ocorre na maioria  das vezes. Na constituição familiar própria da ordem social burguesa, toda criança é coisa, objeto, para a satisfação das necessidades afetivas de seus cuidadores, em especial das  necessidades afetivas dos pais. Essa posição, com que a criança é colocada no interior da  dinâmica familiar, já foi largamente demonstrada pela Psicanálise. Psicanalistas referentes em  clínica infantil como a pediatra francesa Françoise Dolto, no prefácio da obra de Maud  Mannoni: A Primeira Entrevista em Psicanálise (1923) sintetiza claramente tal posição: “Voltemos à situação trinitária pai-mãe-filho e ao seu papel determinante na evolução psicológica. Cada ser humano é marcado pela relação real que tem com seu pai e com sua mãe, do a priori  simbólico que herda no instante do seu nascimento, antes mesmo de ter aberto seus olhos. Dessa maneira, tal criança é esperada como devendo eliminar os sentimentos de inferioridade do pai, que permaneceu como menininho inconformado de não ter nascido num corpo de menina, produtor de algo que vive nela, tal como viveu em sua mãe. Tal filha é esperada como devendo ajudar sua mãe a reencontrar a situação geminada de dependência para com sua própria mãe, da qual ela se libertou com muitas dificuldades, e a eliminar a sensação de abandono que ela experimenta com um marido que lhe permanece alheio. Essa criança necessária a seu pai, necessária a sua mãe, já está encentada, se  me é lícita a expressão, do ponto de vista simbólico, na sua força de  desenvolvimento”. (DOLTO in: MANONNI; 1923-1980). Obviamente, psicanalistas como Dolto e Manonni se debruçaram no estudo das  situações mais graves, do ponto de vista desta alienação do desenvolvimento humano, já que  sua base de pesquisa eram os casos que lhes chegavam ao consultório ou em instituições. No  entanto, isso não impediu que essas autoras encontrassem no interior do sintoma infantil uma  dinâmica que reflete nas relações familiares às relações sociais reificadas, mais evidenciada  nos casos graves, como nos conta Monnoni: “A reflexão psicanalítica permite-nos esclarecer o significado dos  distúrbios espaço-temporais junto a certa categoria de crianças. (Esses  distúrbios acompanham em geral graves desordens no domínio da  leitura, da ortografia, do cálculo. Impõe-se então uma psicanálise, antes de qualquer forma de reeducação: a manutenção da criança no estabelecimento frequentado é pedida para evitar que se acentue, para ela, a face impressionante dos casos especiais que vivem entre eles.) 1) Os distúrbios acompanham uma dificuldade do sujeito em situar-se em  relação ao seus próprio corpo (esse corpo muitas vezes não lhe pertence, não lhe diz respeito, é de fato propriedade [grifo meu] da  mãe, trata-se de uma relacionamento muito particular com a mãe, como voltamos a encontrar em casos de debilidade mental e psicose)” (MANNONI; 1923-1980). No entanto, a maior parte dos psicanalistas, concebendo o complexo familiar burguês como a família em si, naturalizaram a formação triádica: Pai, mãe e filho[12].  Apesar de grandes nomes da Psicanálise terem apreendido os efeitos subjetivos da dinâmica familiar burguesa, como a maior parte deles não levavam em consideração a função do complexo familiar no interior da vida social burguesa, foram incapazes de perceber que os efeitos subjetivos verificáveis fenomenicamente em consultório são causados pela subsunção da reprodução filogenética à reprodução do capital. Tal dependencialidade leva a subjetivação dos filhos como se fossem propriedade dos pais. Isso implica em dizer que a posição coisificada do infante ante aos pais é necessária, nessa forma de organização social, tanto para a reprodução social em sua integralidade, quanto para a sobrevivência da criança. Ao longo da socialização do infante, os valores, as ideias da classe dominante, a  ideologia enquanto falsa consciência, estabelecem uma identificação inconsciente secundária  da criança com a vida espiritual da ordem burguesa, que substancializa, concretiza, a  identificação primária, abstrata, anteriormente estabelecida com o ser do capital. Mauro Iasi na conferência: Educação Consciência de Classe e Estratégia  Revolucionária - V EBEM, em 2011 (disponível no youtube) explica brilhantemente como a  Ideologia, falsa consciência, opera na consciência individual: "As ideias dominantes em cada época são as ideias da classe dominante; são as relações sociais dominantes expressa em ideias; as ideias de sua dominação. As ideias que expressam as relações que fazem dessa classe; a classe dominante. Veja que ai a dialética tomou conta do raciocínio de Marx. Não se trata apenas de um conjunto de ideias que se impõe como dominantes; elas são dominantes porque são da classe dominante; mas a classe só é dominante porque é a expressão de relações sociais de produção historicamente determinadas que as coloca em um papel de dominação[13]. (...) A consciência só pode se desenvolver como expressão dessas relações. (...) Marx analisou como fenômeno da alienação; na sua submissão à ideologia que são dois fenômenos diferentes mas profundamente associados. (...) A consciência imediata é a consciência do ser metido na divisão social do trabalho; quer um trabalho; quer viver; quer pagar as contas..." (lASl; 2011; 55 a 57 min). O que faz a mediação entre o indivíduo submetido a essa ordem  reificada e a sua consciência imediata é a ideologia. A ideologia tem uma incrível funcionalidade de manutenção da ordem; por quê? Porque ela não produz isso (esse é um equívoco comum); a ideologia não produz essa submissão, mas uma vez dada a inversão real da vida; da ordem da mercadoria; do estado; do capital; as pessoas subssumidas à essa ordem procuram compreender essa ordem e isso expressa uma certa subjetividade; uma formulação ideal dessa realidade. A expressão dessas relações na sua forma ideal. Nesse ponto que a ideologia como mediação funciona e funciona bem: lnvertendo o real; obscurecendo  suas determinações; naturalizando esse real; apresentando o interesse particular como se fosse universal e essa funcionalidade da ideologia se explica por uma cisão muito mais profunda que é aquela que se expressa no capital; interesses de classe. A ideologia tem a incrível funcionalidade de apresentar o particular interesse de classe como se fosse universal; daí sua força; sua eficiência.” (lasi; 2013; dos 37 a 39 min). Portanto, a consciência do indivíduo que nasce e se desenvolve no interior das relações de dominação que explicitamos até agora - tanto as relações de produção quanto as de reprodução da vida social - só pode expressar o conteúdo dessa dominação na forma de ideias. É dessa consciência que vai, necessariamente, derivar nossa organização subjetiva: tanto no sentido das funções mentais[14], quanto no sentido da formação de uma personalidade. Esse indivíduo, dotado de uma consciência, precisará exercer na vida cotidiana uma série de tarefas para satisfazer suas necessidades gerais, das mais básicas às mais elevadas. Ele vai usar dos elementos de sua organização mental e personal - no sentido de sua personalidade - para agir sob a cotidianidade com fim de suprir as necessidades postas contingêncialmente. É daí que surge sua consciência imediata, ou seja: sua percepção imediata da realidade. Tal percepção imediata, que tem sua organização perceptual baseada na ideologia, entra em choque constante  com as vivências da realidade social contraditória, na qual os indivíduos fazem parte. Portanto, o próprio conjunto de ideias que constituem as diversas ideologias - se estamos falando de ideologia estamos falando de ideias falsas, necessariamente - são mobilizadas pela consciência imediata dos indivíduos, através dos signos[15] que a compõe. Assim temos um conflito entre a vivência real, contraditória, e a idealidade presente na consciência que funciona mediada pela  ideologia. É provável que esse conflito tenha uma determinação predominante na constituição cognitivo-afetiva: As ideologias são mobilizadas, cognitivamente mobilizadas ainda que não voluntariamente mobilizadas, para recobrir as contradições da realidade, e nesse processo, os afetos - que são expressão do conflito entre os ideais da classe dominante postos na consciência  e realidade- são escamoteados da percepção imediata dos indivíduos. Desde os trabalhos da Psicologia da Gestalt de Max Wertheimer, Wolfgang Köhler e Kurt Koffka[16], sabemos que a percepção humana funciona apreendendo totalidades organizadas, que se autonomizam em relação aos dados sensoriais mais básicos que constituem o objeto percebido[17]. Muito se modificou no campo da teoria da percepção, e principalmente  na relação entre percepção-cognição-crença desde os pioneiros Gestaltistas. Uma boa síntese  das principais querelas em torno da percepção humana pode ser encontrada no excelente artigo  de Plínio Junqueira Smith: A percepção como uma relação: uma análise do conceito comum  de percepção (2014). Nele, o autor contrapõe várias posições em torno do que é e de como se  forma a percepção. A maior parte das querelas, apresentadas no artigo, giram em torno da  relação entre percepção e objeto percebido, entre percepção e sensação, e entre evento externo  e causalidade perceptiva. Podemos abstrair como síntese do artigo (que em si já é uma síntese  do vasto campo teórico dos últimos anos sobre o assunto) que nossa percepção da realidade é  mediada por nossas crenças, mas que dependem dos objetos percebidos (externos a nossa  subjetividade) para se concretizar como tal. Dessa forma, uma determinada crença pode definir  a qualidade do objeto percebido no interior da relação que se estabelece com dado objeto, mas  para que haja a percepção autêntica, verdadeira, de tal objeto, este precisa estar presente em  nosso campo perceptivo;ou seja, o objeto precisa nos impor a qualidade de sua presença[18] . O valioso trabalho de Smith (2014), ao se centrar na noção comum de percepção,  apreende como a percepção humana, enquanto atividade cognitiva relacional com o mundo,  funciona na cotidianidade da vida social do indivíduo comum[19], em uma complexidade mister  que rompe os tecidos das camisas-de-força das teorias gnosiológicas modernas. Consciente de  que trabalhos posteriores sobre o tema precisarão ser desenvolvidos para explicar os meandros  de tal processo, podemos afirmar que há uma série de relações que vão desde a ideologia mais  socialmente difundida, expressa em formas concretas de práticas humanas como o trabalho, a  arte, a religião, etc, até o fenômeno perceptual mais cotidiano: Por exemplo, uma criança branca que entre uma boneca de pele branca e a outra de pele negra qualifica a primeira como bonita, e a segunda como feia[20] No exemplo acima, onde o racismo opera na percepção imediata que uma criança tem  da sua realidade cotidiana, a dimensão perceptual e cognitiva (já que a qualificação feita por  uma criança exige um trabalho de apreensão do dado sensível e de uma elaboração deste com  base em ideias pré-existentes oriundas de uma dada história de vida), produzem um certo tipo  de relação afetiva com o objeto percebido, relação essa que vai interagir com o conjunto de  afetos sentidos por aquela criança, determinando uma certa vida afetiva, que só pode ser bem  entendida na sua relação de unidade sem identidade com sua vida cognitiva[21]. No campo afetivo, as ideologias, na forma individual de pressupostos inconscientes - aquilo que a psicanálise denominou fantasia - , operam papel decisivo no reconhecimento (ou  déficit dele) dos afetos que incidem sobre os indivíduos. Para além do reconhecimento em si  de determinado afeto, a prática clínica nos permite observar que a relação que se estabelece  entre as fantasias e crenças de um indivíduo e suas vivências cotidianas estão na própria gênese e, diferenciação qualitativa, de cada afeto. Podemos chamar os afetos que são produto da contradição entre a consciência imediata - moldada pela ideologia - e a realidade contraditória  - experimentada pelo indivíduo através de determinadas vivências - , de afetos aviltadores, na  medida em que eles constrangem o desenvolvimento da personalidade humana já que são expressão de relações sociais alienadas que aviltam o gênero humano e sua potencialidade de  um desenvolvimento omnilateral. Portanto, pode-se dizer que as formas particulares de adoecimento subjetivo são  expressão do conflito mais geral entre gênero humano humano e sociabilidade alienada, onde  afetos comuns a outras épocas históricas como medo, raiva, vergonha, tristeza, etc, assumem  formas específicas na sociedade burguesa, sendo talvez, a forma clinicamente mais comum, a  da angústia, que é reflexo afetivo da divisão subjetiva que nos é constitutiva a partir de formas de organização social onde a vida espiritual e a vida material estão marcadas pelo antagonismo de classe. Assim podemos dizer que, na imediaticidade da vida cotidiana, o indivíduo inserido  nas relações sociais de dominação burguesas, age como uma unidade: Ele precisa responder às  demandas sociais, na busca pela satisfação de suas necessidades, de maneira unificada,  inequívoca -ainda que isso custe o rebaixamento de sua humanidade - e para isso ele age com  a mediação de sua consciência imediata, ou seja, com a mediação de sua falsa consciência. No  entanto, para além da imediaticidade cotidiana, no conjunto de sua vida, esse indivíduo se  encontra cindido, dividido, uma vez que para satisfazer suas necessidades ele precisa se  submeter à uma vida social que tem por base a cisão da produção material e espiritual[22], como  na página 47, de A Ideologia Alemã, afirma Marx: “As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias  dominantes, isto é, a classe dominante que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe  também dos meios de produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são a expressão das relações que fazem de uma classe dominante, são as ideias de sua dominação. Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem entre outras coisas, também consciência, e por isso pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles os fazem também como pensadores, como produtores de ideias que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época”(MARX, ENGELS; 2007). No trecho, podemos ver como Marx apreendeu como as ideias da classe dominante  dominam a cabeça, a vida espiritual da classe dominada: o indivíduo, da classe trabalhadora  tem sua vida espiritual identificada com as ideias da classe antagônica dela, formando assim  uma cisão interna entre sua vida concreta, material e sua vida espiritual que se desdobra, por  sua vez, em uma contradição entre suas necessidades materiais e suas necessidades espirituais, marcando uma série de antagonismos subjetivos na qual a constituição de uma personalidade cumpre a função de dar coerência, unidade, e integralidade à subjetividade. Processo parecido  ocorre com a formação subjetiva dos membros da classe dominante, pois sua vida material ainda depende das relações sociais que na totalidade social ainda a ligam a classe trabalhadora, mas com a diferença significativa, de que por ser a classe dominante, a detentora tanto da força  material quanto da força espiritual de sua época, o indivíduo desta classe terá um conjunto de alternativas concretas para o desenvolvimento da sua personalidade muito mais amplo do que os membros da classe trabalhadora. Assim, tendencialmente, os membros da classe dominante teriam muito mais possibilidades de organizar seus antagonismos subjetivos através de uma personalidade mais rica, que consegue se realizar através da satisfação das necessidades espirituais do indivíduo, do que os membros da classe proletária, mas de forma alguma eles conseguem escapar dos antagonismos subjetivos, dos quais o adoecimento subjetivo é  expressão. Ou seja, sob o domínio de formas de organização social submetida à propriedade  privada, o indivíduo tem a sua subjetividade cindida, dividida, clivada: Suas necessidades  espirituais e materiais expressam o antagonismo de classe externo, ainda que esse antagonismo apareça como interno na relação cotidiana que o indivíduo tem consigo mesmo. Um indivíduo dividido é um indivíduo que não pode reconhecer por um ato de vontade a real natureza da sua divisão subjetiva, muito menos dominar o conflito que está posto no interior de sua subjetividade, sendo sua dinâmica cognitivo-afetiva, bem como seus processos identificatórios, imperceptíveis para em seu cotidiano. Ao contrário, o mundo antagônico e coisificado, dominado pela propriedade privada e pelo capital, parece natural à vida cotidiana, até que vivências específicas entram em choque com tal naturalidade. A Psicanálise e algumas outras teorizações no campo da Psicologia cognitivista e da  aprendizagem já apreenderam a fenomenologia cotidiana destes processos, embora tenham  sido poucos, proporcionalmente à quantidade de pesquisadores que tais tradições teóricas  produzem, os que buscaram os nexos causais constitutivos entre as relações de produção e  reprodução da vida material, seu conteúdo ideal - tais relações na forma de idéia - e os fenômenos psicológicos mais recorrentes na interior desta mesma sociedade, como esse texto  se propõe agora a iniciar. Erich Fromm (1971)[23] e Michel Schneider (1977) já demonstraram em belíssimos  trabalhos, como os psicanalistas, em especial o próprio Freud, não se deram conta do  significado histórico de suas descobertas acerca da subjetividade humana: A maior parte dos  psicanalistas e psicólogos, como bons teóricos burgueses, foram ideólogos que obliteraram o  caráter histórico-relativo de suas descobertas porque acreditavam na universalidade abstrata de  suas teorizações. Tanto Fromm (1971), quanto Schneider (1977) criticaram Reich e a Escola  de Frankfurt pela combinação eclética entre Psicanálise e Marxismo. Schneider (1977),  especificamente, demonstra estar consciente da tarefa de suprassumir a Psicanálise. Por outro lado, Eduardo Mourão em seu: Karl Marx e a subjetividade Humana (2014),  dividido em três tomos, demonstrou, de maneira muito mais minuciosa do que o também  importante trabalho de Fromm (1971), como as apreensões que Marx fez acerca da  subjetividade humana, em muitos sentidos adiantaram “descobertas” que seriam feitas  posteriormente pela Psicanálise, e, arriscaria a dizer, pela psicologia como um todo. Resta  agora reunir as teorizações mais coerentes com a realidade concreta para uma explicatio mundi, que dê conta de suprassumir as diversas tradições teóricas do campo Psi, superando  aquilo que Vigotsky em seu tão esquecido ensaio: O significado histórico da crise na  Psicologia [tradução livre] (1927) chamou de crise da Psicologia! Referências Bibliográficas BAKHTIN, Mikhail; VOLOCHÍNOV, Valentin N. 2006. Marxismo e Filosofia da Linguagem.  São Paulo: Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 12. ed. Hucitec.  ENGELS; Friederich. 2017. 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[2] Com destaque para o instintivismo materno que permeia toda a obra de um dos Psicanalistas mais  importantes: o inglês Donald Winnicott (1896-1971). Outros autores e tendências do campo Psi também reproduziram em maior ou menor grau a visão ideologizada das relações familiares presentes, por exemplo, na obra de Winnicott. No entanto, a menção nominal se deve tanto pelo impacto da obra deste autor, quanto pela pertinência de uma série de formulações do autor sobre a vida afetiva da prole no interior das famílias patriarcais burguesas. Ainda que, na maior parte do tempo, o pediatra e psicanalista pensasse estar desvelando o processo de desenvolvimento e maturação afetiva da criança em si, - e por isso ele atribui vários estados afetivos dos membros familiares à uma suposta instintualidade-,  ele desvela, sem saber, o desenvolvimento afetivo possível no interior da contraditória família burguesa. Sua teorização terá lacunas - no que tange à relação entre o processo de individuação e a constituição familiar - que  serão aproveitadas pela tradição psicanalítica francesa de corte estruturalista, na qual Jacques Lacan  (1901-1981) seria seu maior expoente. O institualisto natural de Winnicott e o estruturalismo linguístico de Lacan vão constituir na tradição Psicanalítica pós-Freud os dois lados de uma só moeda, que só poderão ter seus problemas teórico-práticos superados - principalmente os observados no âmbito clínico  - com o uso da lógica dialética. Tarefa essa que exige outro texto, visto que mestres como Winnicott e  Lacan produziram formulações riquíssimas, por mais que tenham sido vítimas, e por vezes cúmplices,  da decadência ideológica burguesa que arrebatou o Século XX. No caso de Lacan, ele parece ter também  sido vítima do marxismo vulgar e mecanicista de Louis Althusser (1918-1990), com o seu chamado marxismo estrutural. [3] Ainda que a socialidade humana possa parecer algo óbvio, autores importantes do campo Psi como  Sigmund Freud (1856-1939) e B.F Skinner (1904-1990) não tinham claro em suas formulações tal  dimensão do ser, sendo a relação entre a vida social, o fenômenos Psíquicos/comportamentais, e o que  esses autores entendiam como sendo a dimensão natural e filogenética do ser humano, um ponto de  tensão constante na obra deles. É possível que muitas revisões e considerações feitas por psicanalistas  e behavioristas posteriores, no sentido de dar à concepção de ser humano dessas tradições uma caráter  mais social, seja resultado direto ou indireto da incidência de críticas feitas por autores marxistas à essas  tradições. Um cenário ligeiramente diferente encontramos em relação às psicologias chamadas  Humanistas, talvez pela influência de um grande autor que, se não pode ser considerado marxista,  parece ter sido um leitor importante de Marx: Jean Paul Sartre (1905-1980). [4]O destaque para o amor enquanto sentimento e, ao mesmo tempo, ideologia que justifica os vínculos familiares como necessários e naturais é importante já que ele será decisivo na vida afetiva daqueles sujeitos que organizam sua subjetividade a partir de uma certa lógica chamada de neurótica pela  tradição psicoanalítica. [5]  Mesmo indivíduos que nascem e se desenvolvem em grupos que não são necessariamente  correspondentes ao da família hegemônica, tem a noção de família presente na sua consciência como ideal de referência, ainda que seja uma referência na qual o indivíduo, na sua vida cotidiana, se contraponha. Evidência disso é o uso cotidiano e ampliado do termo família para se referir a um grupo de pessoas pelas quais o indivíduo nutre algum tipo de estima que ele sente como recíproca. Cotidianamente podemos escutar de alguns indivíduos: “Família é quem cuida” em uma tentativa de dissociar a noção de família aos genitores. No entanto, o uso histórico do termo - que etimologicamente, segundo Cirne-lima (2016) é derivado da família patriarcal greco-latina - sendo associado ao complexo social em questão, revela o modelo de família historicamente hegemônica como referência, ainda que  negativada pelo uso que um indivíduo pode tentar fazer dela. [6] É na maneira como o indivíduo reconhece e narra a sua própria história de desenvolvimento no interior  de certas relações que, cotidianamente, podem ter a aparência de relações puramente pessoais mas, como estamos vendo, na realidade são sociais - no sentido de que elas cumprem um papel na reprodução da vida social sob pena de ruína dos indivíduos envolvidos que passam, portanto, a ter tais relações como necessárias para sua sobrevivência passando, portanto, a sentir tais relações como necessidades  pessoais - que vai se dar a posição subjetiva do indivíduo diante de sua própria história. [7] Aqui é válido aclarar que a compreensão total do processo de determinação geral da subjetividade não implica de maneira alguma em um esgotamento das variadas formas de expressão particular singular que um indivíduo pode desenvolver ao longo de sua vida, como pode pensar o lacaniano  progressista e bem intencionado. Antes, na realidade, se trata de entender corretamente as determinações universais para distinguir como os momentos singulares se articulam na universalidade:  Sem universalidade concreta, toda e qualquer singularidade se torna abstrata na cabeça do psicólogo ou  do psicanalista clínico, ainda que este esteja bem intencionado em prover uma boa condução para os  tratamentos dos quais se encarrega! [8] Os casos de famílias homoafetivas precisam ser posteriormente estudados. Entendemos aqui, que a  família hegemôncia, e necessária ao capital, é a familia heteronormativa. Ainda que seja possível a  adequação do modo de produção capitalista às conquistas históricas da classe trabalhadora LGBT, as  famílias homoafetivas ainda são, infelizmente, exceção à regra. [9]  Por mais que as mulheres de camadas médias possam afastar o trabalho doméstico do seu cotidiano  imediato através da contratação de empregadas domésticas - que são mulheres da classe trabalhadora,  e em sociedades como a brasileira, majoritariamente mulheres negras - para a maior parte das mulheres  proletárias o trabalho doméstico enquanto responsabilidade implícita ao casamento e a relação  genitores-filhos é uma realidade. [10] Em um texto futuro sobre a formação da personalidade poderá ser explicado devidamente como  divisão sexual do trabalho subjetiva a própria identidade de gênero em uma articulação integral com a  lógica pela qual se orienta o processo de formação da personalidade individual. [11] A ausência da compreensão da opressão patriarcal na base do complexo social familiar pode ter sido  um dos motivos pelos quais, desde Freud, as noções de feminilidade enquanto passividade, e  masculinidade enquanto atividade, foram assimiladas como dado elementar no processo de formação  da subjetividade para a Psicanálise, ou seja, no processo chamado de sexuação. De tal forma que um  campo de pesquisa se abre ao nos indagarmos: Quais são os impactos dessa noção reificada da divisão  sexual do trabalho, no interior da teoria psicanalítica, para a condução clínica dos tratamentos de nossos  analisandos? [12] Naturalização esta que ocorre mesmo na Psicanálise de influência estruturalista onde os papéis sociais  de pai e mãe, empiricamente dados, deixam de coincidir com as funções estruturais para a constituição  subjetiva, e passamos a ter: função paterna e função materna. Veja que mesmo nesta última versão, a  referência a pater e a mater continuam postos enquanto elementos operadores do processo de  constituição do sujeito. Inicialmente, os teóricos burgueses da psicanálise, acreditando ser a formação  familiar monogâmica patriarcal uma formação genérica, natural e universal - via complexo de édipo - só podiam explicar o conjunto de alienações que ocorrem no interior do complexo familiar burguês  através de um realismo ingênuo, extremamente dependente da contingência relacional entre os membros  da unidade familiar e de cenas empiricamente localizáveis para a justificação das experiências  traumáticas verificadas posteriormente no relato clínico. Tal postura, levou de um lado, à culpabilização  da conduta dos pais, principalmente das mães, pela gênese dos adoecimentos infantis, e de outro, ao  completo ceticismo em relação à realidade factual de relatos de violências parentais quando estes  ultrapassavam o limite daquilo que o psicanalista considerava razoável: basta ver a hesitação de Freud  em atribuir o caráter de realidade factual aos relatos de suas pacientes histéricas sobre abusos ocorridos  no interior da vida familiar ( no contexto de abandono da teoria da sedução). Esse quadro histórico foi  ligeiramente modificado com o projeto lacaniano. Todavia, a não coincidência entre a família empírica  e as funções estruturais familiares conservou a naturalização da família burguesa no interior da teoria  Psicanalítica na medida em que a formação triádica se tornou estrutural e a-histórica, sendo ela -a  formação triádica - uma conformação evidentemente histórica. [13] As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força  material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. (...). As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal (a) das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação. (a) ideológica (Marx;Engels;  1932-2007; p. 47 ) [14] O soviético Alexander Luria (1902-1977) foi pioneiro neste campo. No entanto, os psicólogos  alemães que desenvolveram a tradição da Gestalt, munidos de um contexto filosófico que valoriza o  momento da totalidade, tem contribuição mister no sentido de sustentar a tese que a percepção - elemento básico da consciência psicológica - se organiza através de totalidades que não podem ser  reduzidas a soma mecânica das partes. (Koffka; 1935) [15] Um debate mais detalhado sobre a relação entre o signo e a consciência pode ser encontrado em Marxismo e Teoria da Linguagem (1927) de Bakhtin/Volóchinov, com a advertência de que, tal como ocorre com Lukács (2012), a noção de ideologia enquanto falsa consciência não está clara, ao contrário do que pretendemos neste presente texto. [16] Aqui vale a menção dos clássicos: The mentality of the apes (1917) e Princípios da Psicologia da Gestalt (1935) de Kohler e Koffka, respectivamente. [17]  De tal forma que temos fortes razões para hipotetizar que nossas crenças modelam nossa percepção,  organizando processos perceptuais onde alguns elementos são figura, outros são fundo. Se tal hipótese  estiver correta, estamos perto de explicar como as ideologias sociais organizam o funcionamento mental  dos indivíduos. [18] É de suma importância ressaltar que o artigo resgata as distinções e gradações entre o que seria uma  percepção verdadeira e uma percepção falsa, como no caso das alucinações, por exemplo. [19] Tal coisa só é possível - ainda que Smith não saiba - pois o sujeito gnosiológico e o sujeito psicológico  são o mesmo: O ser humano enquanto sujeito ontologicamente existente. [20]  A relação da Ideologia com o campo da Estética é nítida, embora não seja o foco do presente texto. [21] A relação da Ideologia com o campo da Estética é nítida, embora não seja o foco do presente texto. Vale mencionar as contribuições, no conjunto da obra, de Henri Wallon e Lev Vigotsky para o tema  da unidade sem identidade entre cognição e afeto, mas não somente: Sem a sofisticação da dialética  apreendida por Wallon, Sigmund Freud e Donald Winnicott fizeram importantes contribuições nesse  sentido, sendo muitas delas de ordem prática, tornando a clínica psicanalítica uma clínica eficiente para  a cura de sofrimentos psíquicos, como a necessidade indicada por Freud em vários de seus escritos  clínicos, bem reunidos pela editora Autêntica em: Fundamentos da clínica Psicanalítica (2017), de  fazer aparecer no relato de seus pacientes moções afetivas anteriormente recalcadas para que  determinado sintoma compulsivo (que diante do recalque ganhara função de substituição da experiência  traumática) perdesse força. Há aqui, implicitamente, o entendimento de que a expressão afetiva através  da fala (expressão do afeto suprassumida pela cognição) permite uma modificação na vida afetiva do  doente de tamanha ordem que modifica a função de determinados atos repetitivos, ininterruptos de outra  forma. [22] Ora, se para satisfazer suas necessidades imediatas, o indivíduo precisa rebaixar sua humanidade,  suas necessidades imediatas estão desprovidas de qualidade humana. Assim, podemos dizer que a cisão que denunciamos no interior da subjetividade também ocorre no conjunto total de necessidades de um  indivíduo: Temos portanto, necessidades autênticas e falsas. O que deriva daí é também uma outra  divisão entre a persona (personalidade) autêntica: que reconhece e busca suprir necessidades autênticas  e persona (personalidade) falsa: que toma para si necessidades que não são suas, no sentido de que não  fazem parte do processo de reconhecimento do indivíduo singular-abstrato de sua genericidade humana. [23] Me refiro à importantíssima obra: A Crise da Psicanálise: ensaios sobre Freud, Marx e psicologia  social de 1971.

  • Planejamento socialista após o colapso da União Soviética

    por Allin Cottrell e W. Paul Cockshott Imagem: Ian Whadcock/The Economist O presente texto foi originalmente publicado n’O Minhocário, que, gentilmente, nos autorizou republicá-lo. Se trata de um trabalho preparado para a conferência sobre The socialist calculation debate after the upheavals in Eastern Europe (O debate do cálculo socialista após os tumultos no Leste Europeu), Centre d’études interdisciplinaires Walras–Pareto, Universidade de Lausanne, 11–12 de dezembro de 1992. Publicado em Revue Européenne des Sciences Sociales, tomo XXXI, n. 96, 1993, p. 167–185. Tradução: Everton Lourenço Para muitas pessoas, deve parecer que o colapso da União Soviética (e das economias planificadas do Leste Europeu) teria efetivamente encerrado o debate do cálculo socialista, com um veredito decisivo em favor do mercado. Argumentamos aqui que essa conclusão não se justifica. O socialismo soviético apresentava uma forma específica de planejamento com deficiências próprias, e seu colapso não exclui mecanismos alternativos de planejamento socialista. Neste artigo apontamos algumas das limitações específicas do modelo soviético e oferecemos algumas justificativas para a visão de que existem métodos alternativos de planejamento que são tecnicamente viáveis e potencialmente eficientes e justos. 1. Introdução O estado atual do debate sobre o cálculo socialista parece teoricamente insatisfatório. Após um período bastante longo em que o debate permaneceu adormecido, por assim dizer, uma série de contribuições importantes foram feitas em meados da década de 1980. Nessas contribuições, a sabedoria convencional do início do período pós-guerra — segundo a qual Lange e outros teriam demonstrado efetivamente como uma economia socialista poderia imitar a alocação de recursos de um sistema de mercado competitivo — foi desafiada de maneira aguda. Lavoie (1985), em particular, defendeu longamente que a argumentação austríaca pela impossibilidade do cálculo econômico racional no socialismo teria sido mal compreendida e, portanto, não teria sido abordada de verdade pelos autores neoclássicos responsáveis ​​por aquela avaliação anterior. [1] A partir de um ângulo um tanto diferente, Economics of feasible socialism (“A economia do socialismo viável”, 1983), de Nove, apresentou uma argumentação mais pragmática pela impossibilidade de um planejamento central eficaz. Embora o argumento de Nove não se baseasse em Mises ou Hayek – e, ao contrário dos austríacos, ele defendesse uma variante de socialismo de mercado –, não obstante, suas críticas ao planejamento central e as dos neo-austríacos se reforçavam mutuamente. E então, é claro, não muito tempo depois desses argumentos terem sido apresentados, testemunhamos o abandono do planejamento central na antiga União Soviética e na Europa Oriental. Hoje em dia parece ser amplamente aceito como dado o fato de que esses últimos eventos teriam validado os argumentos antiplanejamento que os precederam. Mas isso é uma falácia próxima do post hoc ergo propter hoc [“ocorreu depois, logo, foi causado por”]: é como se, após o desastre de Hindenburg, alguém tivesse dito: “veja, eu lhe disse que é impossível construir uma máquina segura para transportar um grande número de pessoas pelo ar.” Pode ser que, no caso do planejamento central, o argumento da impossibilidade esteja correto (embora apresentemos argumentos no sentido contrário), mas isso precisa ser estabelecido em bases teóricas – e, desse ponto de vista, sugerimos que os argumentos anti-planejamento ainda não foram devidamente testados no debate. Não é de surpreender que os economistas neoclássicos se contentem em seguir a marcha da História como ela se apresenta hoje – isto é, que eles tenham perdido todo o interesse no debate do cálculo socialista como tal, e que tenham voltado sua atenção para os problemas de transição para um sistema de mercado nos antigos Estados socialistas. Contudo, seria de se esperar que os economistas socialistas desejassem defender o planejamento que esteve por muito tempo no centro de seus argumentos, ou que pelo menos investigassem mais profundamente os argumentos dos críticos do socialismo antes de admitir a derrota. No entanto, tem havido pouquíssimos trabalhos nesse sentido: parece até que se seguiu nessa direção no automático. Examinando as edições dos últimos anos de periódicos como Socialist Review, Rethinking Marxism, Socialism and Democracy, New Left Review, Economy and Society e Socialist Register, descobrimos que o único autor que oferece uma defesa do planejamento socialista – além dos presentes autores (Cockshott e Cottrell, 1989) – é Ernest Mandel, em suas réplicas (1986, 1988) a Alec Nove e em seu artigo (1991) sobre a União Soviética. Neste último, Mandel argumenta, como nós, que a queda do planejamento soviético não indica o fracasso do planejamento socialista em geral. No entanto, a fundamentação dele é bem diferente da nossa. Em particular, não nos sentimos confortáveis ​​com as afirmações dele de que “o socialismo nunca existiu na URSS” (1991: 194); e que “as formas específicas de planejamento central soviético tinham [a extensão das dimensões, poder e privilégios da burocracia stalinista] como seu principal propósito social” (197). Tais alegações parecem preservar a virgindade teórica do socialismo, por assim dizer, ao custo de separar as ideias socialistas da realidade histórica. É melhor, em nossa visão, admitir que a URSS foi socialista, mas argumentar que ela não representava o único modelo possível de socialismo. Não só tem havido bem poucas tentativas de defender o planejamento nos periódicos socialistas ultimamente, como tem havido pouquíssima discussão substantiva sobre o planejamento econômico em si. As raras observações que se encontram praticamente não passam de repetição acrítica das conclusões de Nove e dos neo-austríacos, juntamente do ocasional comentário melancólico sobre o “planejamento democrático”. Kenworthy (1990), por exemplo, ao discutir o “socialismo burocrático de planejamento centralizado” segue a moda padrão ao falar sobre “a impossibilidade para aqueles no centro de coletar da base informações precisas e atualizadas suficientes para projetar um plano bem coordenado que faça a alocação de recursos de maneira eficiente” (p. 110). Ele então deixa um parágrafo sobre o “socialismo democrático de planejamento centralizado”, que diz ser “o modelo mais comumente defendido pelos marxistas”, mas não oferece nenhum comentário sobre como o elemento democrático poderia superar a questão informacional levantada em relação ao planejamento burocrático. O mesmo vale para livros recentes que defendem o socialismo; na maioria das vezes, ou o planejamento econômico não é sequer mencionado (por exemplo, Bronner, 1990), ou é rapidamente ignorado com um contra-argumento superficial (Levine, 1984). Uma exceção é Devine (1988), que tenta traçar um caminho intermediário entre o socialismo de mercado (sobre o qual ele produz uma crítica pertinente) e o planejamento central, por meio de seu conceito de “coordenação negociada”. Os argumentos de Devine são interessantes, mas nos parece que sua coordenação negociada, embora aplicável a algumas questões, é engessada demais para a regulação da economia em geral. Przeworski (1989) comentou que “os partidos políticos na sociedade capitalista que carregam o rótulo socialista abandonaram até mesmo a aparência de uma alternativa”: isso parece ser verdade não apenas para partidos políticos organizados, mas também, com pouquíssimas exceções, para intelectuais socialistas. [2] Nosso objetivo neste artigo é suprir essa falta, que envolve apresentar duas linhas de argumentação. Primeiro, esboçamos os contornos de um sistema de planejamento adequado e examinamos sua viabilidade técnica, dada a moderna tecnologia de computação. Em segundo lugar, oferecemos uma análise de por que o planejamento soviético “fracassou”, em termos dos fatores ideológicos, sociais e técnicos específicos que impediram os soviéticos de desenvolver o tipo de sistema que defendemos. [3] 2. Elementos da nossa proposta Em primeiro lugar, será útil estabelecer as condições gerais necessárias para operar um sistema eficaz de planejamento econômico central, deixando de lado por um momento a questão de saber se elas podem de fato ser realizadas em qualquer sistema viável. Adotando uma perspectiva da economia com base em [tabelas de] insumos-produtos, [3b] o planejamento central efetivo requer os seguintes três elementos básicos: 1. Um sistema para se chegar (e periodicamente revisar) um conjunto de metas para os produtos finais, que incorpore informações tanto sobre as preferências dos consumidores quanto sobre os custos relativos de se produzir bens alternativos (deixando em aberto num primeiro momento a métrica apropriada para esses custos). 2. Um método de cálculo das implicações de qualquer conjunto de produtos finais sobre os números brutos necessários de cada material. Neste estágio também deve haver um meio de verificar a viabilidade do conjunto resultante de metas de produção bruta, à luz das restrições impostas pela oferta de mão de obra e pelos estoques existentes de meios de produção fixos, antes que essas metas sejam encaminhadas às unidades produtivas. 3. Um sistema de monitoramento, recompensas e sanções que garanta que as unidades produtivas dispersas cumpram o plano em sua maior parte. A provisão desses elementos envolve uma série de pré-condições, notadamente um sistema adequado de coleta e processamento de informações econômicas dispersas e uma métrica racional de custos de produção. Devemos também observar de imediato o ponto importante e inteiramente válido enfatizado por Nove (1977 e 1983): para um planejamento central eficaz, é necessário que os planejadores sejam capazes de realizar os tipos de cálculos indicados acima em detalhes desagregados por completo. Na ausência de vínculos de mercado horizontais entre as empresas, a administração no nível da empresa “não tem como saber de que a sociedade precisa a menos que o centro a informe” (Nove, 1977: 86). [4] Por conseguinte, se o centro não for capaz de especificar um plano coerente em um nível suficiente de detalhes, o fato do plano poder estar “equilibrado” em termos agregados é de pouca utilidade. Mesmo com a melhor boa vontade do mundo por parte de todos os envolvidos, não há garantia de que as decisões de produção específicas tomadas no nível de cada empresa irão se encaixar de maneira adequada. Esse ponto geral é confirmado por Yun (1988: 55), que afirma que, em meados da década de 1980, a Gosplan conseguia estabelecer balanços materiais para apenas 2.000 bens em seus planos anuais. Quando os cálculos da Gossnab e dos ministérios industriais são incluídos, o número de produtos rastreados sobe para cerca de 200.000, ainda muito aquém dos 24 milhões de itens produzidos na economia soviética na época. Esta discrepância significava que era “possível que as empresas cumprissem os seus planos no que diz respeito à nomenclatura dos artigos que haviam sido direcionados a produzir, e ao mesmo tempo falhassem em criar produtos imediatamente necessários a usuários específicos”. Nossa argumentação abaixo envolve lidar com esse emaranhado específicamente: embora concordemos que “em um modelo basicamente não mercantil, o centro precisa descobrir o que precisa ser feito” (novembro de 1977: 86), e aceitemos o relato de Yun sobre o fracasso da Gosplan em fazê-lo, contestamos a afirmação de Nove de que “o centro não tem como fazer isso em micro detalhes” (ibid.). Nossas propostas básicas podem ser apresentadas de forma bem simples, embora peçamos ao leitor que tenha em mente que não temos espaço aqui para os refinamentos, qualificações e elaborações necessários (esses são desenvolvidos detalhadamente em Cockshott e Cottrell, 1993). Em uma forma esquemática, as propostas são as seguintes. 2.1. O tempo de trabalho como unidade social básica de contabilidade e métrica de custos A alocação de recursos para as diversas esferas da atividade produtiva toma a forma de um orçamento social de mão de obra. Ao mesmo tempo, o princípio da minimização do tempo de trabalho é adotado como critério básico de eficiência. Ou seja, estamos de acordo com Mises (1935: 116) sobre como o cálculo socialista racional exige “uma unidade de valor objetivamente reconhecível, o que permitiria o cálculo econômico em uma economia onde nem o dinheiro nem trocas estivessem presentes. Somente o trabalho poderia ser concebivelmente considerado como tal.” Discordamos, é claro, da afirmação subsequente de Mises de que mesmo o tempo de trabalho não poderia, no fim das contas, desempenhar o papel de “unidade objetiva de valor”. Rebatemos seus dois argumentos nesse sentido – a saber, que o cálculo do tempo de trabalho levaria necessariamente à subvalorização de recursos naturais não reproduzíveis e que não haveria maneira racional (a não ser por meio de um sistema de taxas de salários determinadas pelo mercado) de reduzir a mão de obra de diferentes níveis de habilidade a um denominador comum – em outra publicação (Cottrell e Cockshott, 1993a). 2.2. Sistema de distribuição baseado em cupons de trabalho De Marx tomamos a ideia do pagamento do trabalho em ”cupons de trabalho” (ou “tokens”, “fichas” de trabalho) e a noção de que os consumidores possam retirar do fundo social bens que tenham um conteúdo de trabalho equivalente à sua contribuição de trabalho (após a dedução de impostos para compensar os usos comunais do tempo de trabalho: acumulação de meios de produção, bens e serviços públicos, apoio aos que não podem trabalhar). Prevemos um sistema de remuneração basicamente igualitário; mas, na medida em que este se afasta do igualitarismo (ou seja, alguns tipos de trabalho seriam recompensados com mais de um cupom por hora, e alguns com menos que isso), a conquista do equilíbrio macroeconômico exige, entretanto, que a emissão total de cupons de trabalho seja equivalente ao total de trabalho realizado em cada momento. Também sugerimos que o sistema de tributação mais adequado em tal contexto seria um imposto fixo por trabalhador – uma taxa uniforme de adesão à sociedade socialista, por assim dizer. Este imposto (líquido com relação às transferências para os não trabalhadores) deveria, de fato, “cancelar” o suficiente da atual emissão de cupons de trabalho para deixar os consumidores com cupons disponíveis ​​suficientes para comprar a produção de bens de consumo no seu valor imediato. (Este ponto será desenvolvido mais adiante.) 2.3. Decisões democráticas sobre as principais questões de alocação A alocação do trabalho social às amplas categorias de uso final (acumulação de meios de produção, consumo coletivo, consumo pessoal) é um material adequado para a tomada democrática de decisões. Isso pode assumir várias formas: votação direta em categorias específicas de despesas em intervalos adequados (por exemplo, sobre aumentar, reduzir ou manter a proporção de trabalho social dedicada ao sistema de saúde); votação entre diversas variantes de planos pré-equilibrados; ou competição eleitoral entre “partidos” com plataformas distintas no que diz respeito às prioridades de planejamento. 2.4. Algoritmo dos bens de consumo Nossa proposta nesse sentido pode ser descrita como “Lange mais Strumilin”. De Lange, tomamos uma versão modificada do processo de “tentativa e erro”, pelo qual os preços de mercado dos bens de consumo são usados ​​para guiar a realocação do trabalho social entre os diversos bens de consumo; de Strumilin tomamos a ideia de que no equilíbrio socialista o valor de uso criado em cada linha de produção deve estar em uma proporção comum ao tempo de trabalho social gasto. [5] A ideia central é esta: o plano solicita a produção de algum vetor específico de bens de consumo final, e esses bens são marcados com seu conteúdo de trabalho social. Se a oferta planejada e as demandas dos consumidores pelos bens individuais coincidirem quando os bens forem precificados de acordo com seus valores de trabalho, o sistema já está em equilíbrio. Em uma economia dinâmica, no entanto, isso é improvável. Se a oferta e a demanda forem desiguais, a “autoridade de mercado” para os bens de consumo é encarregada de ajustar os preços, com o objetivo de alcançar um equilíbrio (aproximado) de curto prazo, ou seja, os preços dos bens em falta recebem um aumento enquanto os preços são reduzidos em caso de excedentes. [6] Na próxima etapa do processo, os planejadores examinam as relações entre o preço de equilíbrio no mercado e o valor de trabalho nos vários bens de consumo. (Observe que ambas as magnitudes são denominadas em horas de trabalho; o conteúdo de trabalho no último caso e os cupons de trabalho no primeiro). Seguindo a concepção de Strumilin, essas razões devem ser equivalentes (e iguais à unidade) no equilíbrio de longo prazo. O plano de bens de consumo para o próximo período deve, portanto, exigir a expansão da produção daqueles bens com relação preço/valor acima da média e redução da produção daqueles com essa relação abaixo da média. [7] Em cada período, o plano deve ser balanceado, usando métodos de insumos-produtos ou um algoritmo de balanceamento alternativo. [8] Ou seja, as quantidades brutas de produção necessárias para sustentar o vetor alvo dos produtos finais devem ser calculadas antecipadamente. Isso contrasta com o sistema de Lange (1938), no qual a própria coerência do plano – e não apenas sua otimização – parece ser deixada para “tentativa e erro”. Nosso esquema, entretanto, não impõe a exigência irracional de que o padrão de demanda dos consumidores seja perfeitamente antecipado ex ante [antecipadamente]; o ajuste a esse respeito é deixado para um processo iterativo que ocorre em tempo histórico. [9] O esquema proposto como um todo é apresentado em forma sinótica na Figura 1. Esse esquema atende à objeção de Nove (1983), que argumenta que os valores-trabalho não poderiam fornecer uma base para o planejamento, mesmo que forneçam uma medida válida do custo de produção. O ponto de Nove é que o conteúdo de mão de obra por si só não nos diz nada sobre o valor de uso de diferentes bens. Claro que isso é verdade, [10] mas isso significa apenas que precisamos de uma medida independente para as avaliações dos consumidores – e o preço, em cupons de trabalho, que equilibra aproximadamente a oferta planejada e a demanda dos consumidores, fornece justamente essa medida. Da mesma maneira, podemos responder a uma observação feita por Mises em sua discussão sobre os problemas enfrentados pelo socialismo sob condições dinâmicas (1951: 196ff). Um dos fatores dinâmicos que ele considera é a mudança na demanda dos consumidores, a propósito de que ele escreve: “se o cálculo econômico e, com ele, uma apuração aproximada dos custos de produção fossem possíveis, então, dentro dos limites das unidades de consumo totais atribuídas a ele, cada cidadão individual poderia ter a permissão de demandar aquilo que quisesse […]” Mas, continua ele, “uma vez que, no socialismo, tais cálculos não são possíveis, todas essas questões de demanda precisam necessariamente ser deixadas para o governo”. Nossa proposta permite precisamente as escolhas dos consumidores que Mises afirma não estarem disponíveis. 3. Viabilidade do cálculo [Nota do Minhocário: O trecho abaixo faz várias referências à tecnologia informática disponível em 1992/1993, a época em que o artigo foi escrito e publicado. Incluímos cálculos próprios nas notas [11], [13] e [14], que extrapolam o tempo de execução desses algoritmos para a tecnologia informática disponível em 2018, época em que traduzimos outros artigos clássicos de Cockshott e Cottrell onde esses números apareciam.] 3.1. Cálculo de valores-trabalho As propostas acima partem do pressuposto de que seja possível calcular o conteúdo de trabalho de cada produto na economia. Em princípio o problema admite solução, uma vez que se tem n valores-trabalho desconhecidos e relacionados entre si por um conjunto de n funções de produção lineares [e, na Matemática, em sistemas de equações lineares, um sistema possui solução quando o número de equações é igual ou maior que o número de incógnitas]. A dificuldade não está no princípio, mas na escala: quando o número de produtos chega aos milhões, o cálculo envolvido não é trivial. Se representarmos o problema em termos matriciais clássicos, como uma matriz n por (n + 1), onde as linhas representam os produtos e as colunas representam os insumos (também produzidos) mais a mão de obra direta, a solução analítica das equações usando a eliminação Gaussiana nos coloca um problema que exige n3 operações de multiplicação e um número ligeiramente maior de adições e subtrações. A Tabela 1 fornece os requisitos computacionais para este cálculo, assumindo diferentes tamanhos para a economia. Assumimos que o uniprocessador é capaz de 106 multiplicações por segundo e que o multiprocessador pode realizar 109 multiplicações por segundo. Tabela 1: Solução Gaussiana para os valores-trabalho [com tecnologia de 1993] Pode-se ver que, considerando apenas o tempo de computação, mesmo o multiprocessador [de 1993] levaria 1012 segundos, ou mais de trinta mil anos, para produzir uma solução para uma economia de 10 milhões de produtos. [11] Como se isso não bastasse, a situação seria ainda mais complicada graças à memória necessária para armazenar essa matriz, que cresce na proporção de n2. Como as maiores memórias viáveis [em 1993] são da ordem de 1010 palavras, isso estabeleceria um limite para o tamanho do problema que poderia ser tratado em cerca de 100.000 produtos. Se, no entanto, levarmos em conta o quanto a matriz tende a ser esparsa (ou seja, a enorme proporção de entradas zeradas, quando a matriz é especificada em detalhamento completo), o problema se torna mais tratável. Suponhamos que o número de diferentes tipos de componentes que entram diretamente na produção de um único produto seja de nk insumos, onde 0 < k < 1. Se assumirmos um valor de 0,4 para k, um número que nos parece ser bem conservador, [12] descobrimos que os requisitos de memória agora crescem na proporção de n(1=k) = n1,4. Se pudermos simplificar o problema ainda mais utilizando técnicas numéricas iterativas (Gauss-Seidel ou Jacobi) para obter soluções aproximadas, obteremos uma função de complexidade computacional da ordem de An1.4 , onde A é uma pequena constante determinada pela precisão que exigirmos para a resposta. [13] Isso reduz o problema para um nível nitidamente dentro do escopo da tecnologia informática atual [já em 1993], conforme demonstrado na Tabela 2. O requisito mais exigente continua sendo a memória, mas está dentro da faixa das máquinas disponíveis. Tabela 2: solução iterativa para os valores-trabalho (assumindo A = 10) [com tecnologia de 1993] Disso concluímos que o cálculo dos valores-trabalho é eminentemente viável. [14] 3.2. Alocação de recursos Se assumirmos que o mix de artigos finais solicitados pelo plano está especificado, bem como as tecnologias disponíveis [para os processos de produção] e os estoques de meios de produção, quão difícil seria computar um plano viável? Por “viável” queremos dizer um plano que seja capaz de, utilizando os recursos disponíveis, produzir no mínimo a produção solicitada. Partindo disso, será que conseguimos determinar se o mix planejado de produtos é inviável, dados os recursos [disponíveis]? A abordagem clássica para isso é utilizar a Programação Linear [também conhecida como Otimização Matemática], cujos requisitos computacionais infelizmente são proibitivos para uma economia com milhões de produtos. Contudo, se estivermos dispostos a relaxar um pouco nossos requisitos e nos contentar com uma solução “boa” ao invés de uma solução otimizada/ideal, podemos realizar uma simplificação semelhante àquela descrita para os cálculos de valores-trabalho. Uma abordagem seria começar a partir da lista alvo de produtos finais e trabalhar de maneira inversa, para se chegar às produções brutas necessárias que correspondam à lista alvo original (por meio do mesmo tipo de métodos de solução iterativa estabelecidos para os valores de mão-de-obra e explorando o aspecto esparso da matriz de insumos-produtos da mesma maneira). Dado o vetor de produção bruta [de cada produto], fica então simples determinar as necessidades gerais de mão-de-obra e de meios de produção fixos de vários tipos [incluindo os bens intermediários, que nessa etapa já estarão incluídos nos vetores de produção bruta de cada produto]. Se estes requisitos puderem ser atendidos, muito bem; e se não for o caso, então corta-se a lista alvo de produtos finais e tenta-se novamente. Essas etapas são mostradas na forma de um loop no canto inferior esquerdo da Figura 1. Embora seja computacionalmente viável, esse método possui as desvantagens de exigir um ajuste ”manual” do vetor alvo de produção a cada ciclo do loop e de não garantir que todos os recursos sejam utilizados ​​da forma mais completa possível. Uma técnica alternativa preferível, que se baseia em ideias da literatura sobre Redes Neurais, é apresentada em Cockshott (1990). A complexidade dessa abordagem é de An(1+k), assim como na solução iterativa dos valores de mão de obra. Os requisitos computacionais são, portanto, essencialmente os mesmos. Em que sentido a solução produzida por esse último método [com base em ideias de Redes Neurais] seria uma “boa” solução? O procedimento envolve a definição de uma métrica para o grau de adequação entre o conjunto alvo de produtos finais e o conjunto viável calculado, conforme as restrições dos estoques existentes de meios de produção de vários tipos e pelo tempo de trabalho disponível. O algoritmo então realiza uma busca no espaço [de estados] de planos viáveis, visando maximizar este grau de ajuste. A natureza do algoritmo de busca é tal que ele pode parar em um máximo local em vez de continuar buscando o máximo global – esse é o preço que se paga pela tratabilidade computacional. Não obstante, o fato da solução não ser o plano ótimo ou ideal, mas apenas um bom plano viável, não se trata de um problema sério quando se compara o planejamento com o mercado, pois nenhum mercado real jamais atinge uma estrutura otimizada ou ideal de produção. 3.3. Comparação com a tecnologia computacional existente Já estabelecemos a escala de recursos computacionais necessários para calcular os valores de mão de obra ou para calcular um plano viável para toda a economia. A partir da Tabela 3 (ver Bell, 1992), podemos ver que a memória e o poder de processamento necessários estão dentro das capacidades das máquinas disponíveis [já em 1993]. Acima, assumimos um multiprocessador capaz de 109 multiplicações por segundo; as taxas de processamento das máquinas mostradas na Tabela 3 variam de 1,6 × 1010 a 3 × 1011 multiplicações por segundo. [Em 2018, o IBM Summit já era capaz de 1.22 x 1017 multiplicações por segundo] Deve-se permitir alguma redução nas taxas de processamento antes de se chegar a um desempenho sustentável para um computador, mas nossa meta de desempenho é claramente realista. Os requisitos de memória também estão dentro do alcance dos produtos atuais. Com computadores modernos, podemos vislumbrar a computação diária de uma lista atualizada de valores-trabalho e a preparação de um novo plano de perspectivas semanalmente. Trata-se de uma reação [consideravelmente] mais rápida do que a maneira como uma economia de mercado é capaz de reagir. Tabela 3: Características de supercomputadores de 1992 [Nota do Minhocário: Apenas à título de curiosidade (e para ilustrar o quanto já avançamos em relação ao paradigma disponível para Cockshott e Cottrell em seus cálculos de 1992/1993), incluímos abaixo os dados equivalentes referentes ao IBM Summit, o supercomputador mais rápido do mundo entre 2018 e meados de 2020] 4. O modelo soviético de planejamento e seus problemas Nosso argumento é que os soviéticos, por razões tanto ideológicas como técnicas, não chegaram perto de construir os tipos de sistemas que identificamos como essenciais. É claro que o sistema de planejamento soviético foi bastante eficaz no início. Os soviéticos foram capazes de construir uma base industrial pesada, e em particular uma indústria de armamentos capaz de derrotar a máquina de guerra nazista, em um tempo muito mais curto do que qualquer economia capitalista, embora a um custo muito alto. Naquele estágio de desenvolvimento, métodos de planejamento rudimentares eram adequados: a economia era, naturalmente, muito menos tecnologicamente complexa do que no presente, e os planos especificavam relativamente poucas metas-chave. Mesmo assim, há muitos contos sobre desajustes grosseiros entre oferta e demanda durante o período dos primeiros planos quinquenais; uma enorme expansão dos insumos de mão-de-obra e de materiais significava que os principais objetivos poderiam ser atingidos apesar desses desequilíbrios. Deve-se notar que os primeiros planos soviéticos não foram elaborados de acordo com o esquema descrito anteriormente. Trabalhar de maneira reversa a partir de uma lista de metas para os produtos finais para se chegar na lista exigida de produção bruta, de forma consistente e em detalhes, estava muito além da capacidade da Gosplan. [15] Muitas vezes, em vez disso, os planejadores começavam a partir de metas que eram, elas mesmas, estabelecidas em termos de produção bruta: tantas toneladas de aço em 1930, tantas toneladas de carvão em 1935, e assim por diante. Esta experiência inicial teve, sem dúvida, um efeito deletério sobre o mecanismo econômico nos anos posteriores. Ela deu origem a uma espécie de “produtivismo”, na qual a geração de resultados generosos de produtos industriais intermediários essenciais passou a ser vista como um fim em si mesmo. [16] De fato, a partir de um ponto de vista com base em insumos-e-produtos, na verdade se deseja economizar os bens intermediários tanto quanto for possível. O objetivo deveria ser a produção de quantidades mínimas de carvão, aço, cimento, etc., que fossem consistentes com o volume desejado de produtos finais. De qualquer forma, tornou-se cada vez mais evidente, após o período de reconstrução do pós-guerra, que o tipo do sistema de planejamento herdado do início da industrialização era incapaz de desenvolver uma economia dinâmica e tecnologicamente progressiva que satisfizesse as demandas dos consumidores. Certos setores prioritários, como a exploração espacial, apresentaram sucessos impressionantes, mas parecia ser uma característica inerente ao sistema o fato de que tais sucessos não podiam ser generalizados; com efeito, o outro lado da prioridade dada aos setores privilegiados era o rebaixamento da produção de bens de consumo ao papel de demandante residual de recursos. Ao longo das décadas de 1960 e 70, repetidas tentativas de reforma de um tipo ou de outro foram basicamente um fracasso, levando à notória “estagnação” (“zastoi”) dos últimos anos Brejnev [que governou entre 1964 e 1982]. Por que esse resultado? À luz dos argumentos apresentados acima, um ponto que se sugere de imediato é o estado das instalações de computação e telecomunicações soviéticas na época. Ou seja, enquanto argumentamos que um planejamento eficaz e detalhado é possível usando a tecnologia de computação ocidental atual [em 1993], a tecnologia disponível para os planejadores soviéticos na década de 1970 era muito primitiva, em comparação. Este ponto é importante, e voltaremos a ele, mas é apenas parte da história, e algumas outras considerações merecem ênfase. 4.1. Resistência Ideológica a métodos de planejamento racional É bem conhecido que a adesão oficial soviética à ortodoxia “marxista” colocava obstáculos no caminho da adoção de métodos de planejamento racionais. Novas abordagens para o planejamento eram geralmente vistas com desconfiança, mesmo aquelas que não tinham nada a ver com a introdução de relações de mercado. No que se refere ao método de insumos-e-produtos, Augustinovics (1975: 137) apontou a dupla ironia segundo a qual este método “era acusado de contrabandear o mal do planejamento comunista para dentro da economia democrática livre [com seu uso no ocidente] e o mal da ideologia burguesa para dentro da economia socialista”. Treml (1967: 104) também sugere que a própria ideia de iniciar o processo de planejamento a partir de metas de produção final era vista pelos guardiões oficiais da ortodoxia como sendo orientada para o consumo e, portanto, de alguma forma, uma ideia “burguesa”. De maneira similar, o trabalho pioneiro de Kantorovich sobre programação linear foi por muito tempo rejeitado. Parece que o pior desse tipo de rejeição ideológica à inovação teórica já havia sido superado por volta de 1959. Tretyakova e Birman (1976: 161) citam 1959 como o ano em que o método de insumos-e-produtos tornou-se oficialmente respeitável; esse foi também o ano em que “Best utilization of economic resources” [Melhor utilização de recursos econômicos’] de Kantorovich, escrito em 1943, finalmente foi publicado. No entanto, mesmo depois de Kantorovich receber o prêmio Lenin em 1965 (junto de Nemchinov e Novozhilov) suas ideias ainda atraíam críticas desinformadas dos ortodoxos. [17] E embora o insumos-e-produtos e a programação linear eventualmente tenham recebido algum grau de bênção oficial, essas técnicas permaneceram marginais no que diz respeito aos verdadeiros procedimentos de planejamento soviéticos. Isto se devia em parte aos problemas computacionais referidos acima, o que significava que os métodos de insumos-e-produtos não tinham como substituir os cálculos muito mais rudimentares do “balanço material” para toda a gama de bens cobertos por este último (que eram, eles mesmos, apenas um subconjunto relativamente pequeno da lista completa de bens produzidos). [18] Observamos algumas outras razões a seguir. 4.2. Desconexão entre “planejamento prático” e pesquisa acadêmica Nos referimos aqui à bifurcação entre as atividades rotineiras da Gosplan e da Gossnab [19] (desprovidas de uma base teórica adequada e impulsionadas por pressões políticas ad hoc vindas do Politburo [20]) e a hipertrofia da teorização altamente matemática sobre o planejamento nos institutos de pesquisa. Esta disjunção tinha dois lados: por um lado, os “planejadores práticos” parecem ter sido resistentes à inovação mesmo quando sua resistência não era racionalizada em termos ideológicos. Kushnirsky (1982) observa que, embora trabalhos sobre insumos e produtos fossem feitos em dois institutos de pesquisa da Gosplan – o “Instituto de Pesquisa Científica Econômica” e o “Centro Principal de Computação” – a participação neste trabalho pelos verdadeiros departamentos da Gosplan era “mínima”. Uma das razões que ele oferece para isso é que “os planejadores pensam que a determinação dos componentes da demanda final é ainda mais difícil do que a determinação da produção bruta” (p.118). Passar para um sistema de planejamento de produtos finais em primeira instância, como já observamos, marcaria uma mudança substancial em relação ao padrão soviético tradicional – uma mudança que a Gosplan aparentemente relutava em fazer. Como observa Kushnirsky, “uma vez que a demanda por bens e serviços na economia soviética é substituída pela ‘demanda satisfeita’, derivada do nível de produção, os planejadores acreditam serem capazes de determinar os planos de produção com mais precisão do que poderiam fazer com os componentes da demanda final. “(Ibid.). Novamente, a introdução do Sistema Automatizado de Cálculos de Planejamento (ASPR) no final dos anos 1960 é vista por Kushnirsky como tendo pouco impacto nos procedimentos reais da Gosplan. Ele aponta que “o projeto ASPR não criou novos problemas para os planejadores, uma vez que seu envolvimento foi mínimo” (p.119), e explica que “não há muito espaço para mudanças nas técnicas de planejamento através da ASPR, mesmo que seus desenvolvedores possuíssem as habilidades necessárias para isso. A ASPR precisa seguir a metodologia de planejamento existente e elaborar apenas as alterações aprovadas pela Gosplan. Caso contrário, as técnicas sugeridas não poderiam ser aplicadas, e a Gosplan não pagaria por elas” (p.123). Resumindo, ele observa que a “Gosplan não é o lugar para experimentos” (ibid.). O segundo aspecto da desconexão reside na natureza abstrata de pelo menos parte do trabalho realizado nos institutos de pesquisa. Estes últimos produziram algumas boas idéias para o planejamento no nível micro (por exemplo, a programação linear de Kantorovich), mas grande parte do trabalho feito sobre o “planejamento otimizado” do sistema como um todo era irremediavelmente abstrato, na medida em que exigia uma especificação prévia de algum tipo de “função de bem-estar social” ou uma medida geral de “utilidade social”. [21] Embora tenham feito pouco progresso nessa tarefa quixotesca, [ver nota 9] os teóricos do “planejamento ótimo” contribuíram para o “esfriamento do interesse” nos métodos de insumos-e-produtos, como descrito por Tretyakova e Birman (1976: 179): “Somente aqueles modelos e métodos que levassem a resultados otimizados/ideais mereciam atenção. Na medida em que se tornou claro quase imediatamente que um modelo ótimo não poderia ser construído com base nos métodos de insumos-e-produtos, muitos simplesmente perderam o interesse por este último”. Nesse contexto, é interessante notar que S. Shatalin – autor do brevemente celebrado, mas absurdamente impraticável “plano de 500 dias” para a introdução do capitalismo na URSS em 1990 – foi, em uma encarnação anterior, o autor de uma noção igualmente impraticável para otimizar o plano. (Ver o relato de Ellman, 1971, p.11, onde Shatalin é citado como discutindo tanto o insumos-e-produtos quanto o “planejamento ótimo”, e alegando que somente este último seria “realmente científico”). Em contraste, nossas próprias propostas – embora certamente dependam de sofisticados sistemas informatizados – são relativamente robustas e diretas. Não há nenhuma tentativa de definir a priori um critério de utilidade social ou otimalidade; a “utilidade social” é revelada (a) através de uma escolha democrática sobre a alocação ampla de recursos para os setores, e (b) através do padrão de razões dos preços de compensação de mercado em relação aos valores-trabalho para os bens de consumo. 4.3 A ideia de que técnicas melhoradas evitariam a necessidade de reformas fundamentais Uma outra razão para o fracasso da tentativa de reforma do sistema soviético de planejamento no período dos anos 1960 ao início dos anos 80 era a idéia – aparentemente mantida pela liderança do PCUS em várias ocasiões – de que a aplicação de novos métodos matemáticos ou computacionais oferecia um meio “indolor” para melhorar o funcionamento da economia, um meio que não perturbaria os fundamentos do sistema existente (ao contrário, digamos, da introdução generalizada de relações de mercado). De fato, métodos técnicos avançados só poderiam trazer dividendos reais no contexto de uma revisão do conjunto do sistema econômico como um todo – o que envolveria, a saber, um reexame e um esclarecimento dos objetivos e da lógica do planejamento, bem como a reorganização dos sistemas de avaliações e recompensas para o desempenho das empresas. Goodman e McHenry (1986: 332) deixam claro que os Sistemas Automatizados de Gestão (ASUPs [na sigla original]) introduzidos a partir do final da década de 1960 foram em grande parte rejeitados como esndo um implante alienígena, cujos propósitos estavam em desacordo com os propósitos reais das empresas sob o sistema existente. Por exemplo, o objetivo idealizado da ASUP de “níveis mínimos e ideais de inventário” entrava em conflito direto com o objetivo tradicional das empresas de reunir “o máximo de suprimentos possível”, e o objetivo da ASUP de “avaliar realisticamente as capacidades”, contrariava o objetivo das empresas de “subestimar a capacidade”. Claramente, teria sido necessária uma reforma audaciosa e abrangente do sistema para tornar os objetivos da ASUP eficazes. Considere o tipo de esquema de planejamento que descrevemos acima na seção 2, em que a produção é expandida para aqueles produtos que apresentam uma razão acima da média entre o preço de mercado (expresso em cupons de trabalho) em relação ao seu conteúdo em valor-trabalho; e reduzida para aqueles produtos com uma relação abaixo da média. Tal sistema efetivamente recompensa (com uma maior alocação de mão-de-obra e de meios de produção) as empresas que fazem uso particularmente eficaz do trabalho social; portanto, as empresas deveriam ter um incentivo para empregar quaisquer métodos que lhes permitissem economizar em insumos de mão-de-obra (direta e indireta) por unidade de produção. [22] Um tal esquema seria necessário para romper com o padrão soviético tradicional, pelo qual as empresas miravam meramente na garantia de cotas de produção dos planos que fossem facilmente atingíveis, e não tinham interesse em melhorar sua própria eficiência. 4.4. Incapacidade de empregar contabilização do tempo de trabalho Derivado do ponto acima, devemos considerar por que a ideia socialista clássica de usar o tempo de trabalho como uma unidade de contabilidade foi abandonada – um passo que, defendemos, tornava viciado qualquer cálculo econômico racional em nível micro. Demonstramos (Cottrell e Cockshott 1993a) que a ideia de usar a contabilidade do tempo de trabalho já havia sido abandonada pela influente Social-Democracia Alemã antes da Revolução Russa. Todavia, a ideia estava por aí para ser redescoberta por qualquer um que estivesse familiarizado com Marx ou Ricardo. O fato de que ele não tenha sido adotado seriamente na URSS, pensamos, deve refletir os interesses econômicos daqueles com poder e influência naquela sociedade. Suas implicações radicalmente igualitárias não teriam sido bem recebidas por funcionários cujos diferenciais de renda ficariam ameaçados. Uma vez que não foi adotado o cálculo de tempo de trabalho, as pressões da classe trabalhadora por medidas igualitárias eram compradas por meio de subsídios em bens essenciais. Os subsídios eram a má consciência da desigualdade socialista. Uma de suas consequências era a depreciação dos salários abaixo do nível do tempo de trabalho necessário. Sob o capitalismo, [uma situação em que] empregadores pagarem por apenas uma parte do trabalho de seus empregados, ao passo em que paguem integralmente por todos os bens de capital, introduz um viés sistemático contra a introdução de tecnologias de economia de trabalho, que variam inversamente com o nível dos salários. Baixos salários incentivam o desperdício de força de trabalho com tecnologias como as sweatshops. Os efeitos na URSS foram semelhantes. Com a força de trabalho barata, era racional para as empresas acumular mão-de-obra e prestar pouca atenção aos níveis de pessoal. O uso de valores-trabalho marxianos para pagamento e cálculo econômico, pelo contrário, teria introduzido uma forte pressão para se economizar no uso de mão de obra. Uma fábrica que tivesse que cumprir suas metas de produção dentro de um orçamento pré-determinado em força de trabalho, segundo o qual uma hora de vida ou uma hora de trabalho incorporado fossem custeadas de maneira equivalente, tenderia a estar alerta à possibilidade de substituir o trabalho por maquinário. [23] 4.5. O estado da informática e das tecnologias de telecomunicações Como observamos acima, argumentamos pela viabilidade de nossas propostas de planejamento por referência à última geração de supercomputadores ocidentais [em 1993], e não há dúvida de que em comparação a tecnologia computacional disponível para os soviéticos era primitiva. Goodman e McHenry (1986: 329) descrevem o estado do setor de informática soviética em meados da década de 1980, observando que o atraso substancial em relação ao Ocidente era em parte o resultado do isolamento dessa indústria: “nenhuma comunidade de computação, incluindo a dos Estados Unidos, seria capaz de se mover no seu ritmo atual se tivesse seus contatos com o resto do mundo severamente restringidos”. No entanto, embora tenhamos achado conveniente adotar os supercomputadores atuais [de 1993] como referência em nossos cálculos, argumentamos em outro lugar (Cockshott e Cottrell, 1989, apêndice) que o mesmo objetivo poderia ser alcançado – mais lentamente, mas ainda em uma escala de tempo útil para fins de planejamento prático – por meio de uma rede distribuída de computadores pessoais no nível empresarial, em comunicação com um computador central relativamente modesto. [24] Sob esta perspectiva, talvez a mais séria limitação técnica no caso soviético fosse o atraso do sistema de telecomunicações. Goodman e McHenry (1986) chamam atenção para a lentidão e falta de confiabilidade do sistema telefônico soviético, e os problemas para se encontrar links que fossem bons o suficiente para a transmissão de dados. Eles também citam a impressionante estatística de que mesmo em 1985, apenas 23% das famílias urbanas possuíam telefones. Mais uma vez, entretanto, não queremos enfatizar demais a tecnologia. Os sistemas de informação econômica desenvolvidos por Stafford Beer no Chile de Allende (descritos em Beer, 1975) demonstram o que poderia ser realizado com recursos modestos, dada a vontade política e clareza teórica sobre os objetivos do sistema. Se os soviéticos tivessem sido igualmente claros quanto ao que esperavam conseguir através da informatização do planejamento, então mesmo que fosse impossível implementar tudo o que esperavam a princípio, teriam estado em posição para explorar os novos desenvolvimentos em tecnologias de informática e comunicações conforme eles fossem aparecendo. Na verdade, é claro, parece que os economistas soviéticos – ou pelo menos aqueles que eram ouvidos pela liderança política sob Gorbachev – estavam pouco interessados ​​em desenvolver os tipos de algoritmos e sistemas computadorizados que discutimos. Em meados da década de 1980, eles aparentemente já haviam perdido sua crença no potencial de um planejamento eficiente e muitos já haviam pulado no trem da moda ressurgente da economia de livre-mercado, representada pelas administrações de Reagan e Thatcher. 5. Conclusão Uma pergunta pode surgir ao leitor dos argumentos acima: será que não estamos sendo extremamente arrogantes em supor que teríamos conseguido criar um esquema adequado para o planejamento central onde as “melhores mentes” da URSS falharam durante um período de, digamos, 25 anos? (Ou seja, a partir de 1960, mais ou menos, quando surgiu a questão da reforma do sistema de planejamento, até o final dos anos 1980, quando toda essa concepção foi abandonada em favor de uma transição para o mercado.) Nossa resposta é que, na verdade, não: a questão não é que nos consideramos mais inteligentes do que os economistas soviéticos, mas que não estamos operando sob as mesmas restrições. As duas principais contribuições intelectuais em nosso esquema são (a) um marxismo crítico e não dogmático e (b) a Ciência da Computação moderna. Seria muito difícil combiná-las na antiga URSS, onde o “marxismo” tantas vezes desempenhava uma função obscurantista e anticientífica. Nossos pontos de vista provavelmente teriam sido considerados desvios pelos guardiões da ortodoxia – e, ao mesmo tempo, ingenuamente socialistas por aqueles cuja visão do socialismo foi formada nos cínicos anos de Brejnev, e para quem o marxismo era, portanto, nada além de um dogma fossilizado. Um outro ponto merece pelo menos uma breve menção em conclusão. O material da seção 3 acima refere-se apenas à viabilidade técnica de nossas propostas de planejamento; nas condições atuais, a viabilidade política é uma questão completamente diferente. Não obstante, temos duas observações a fazer sobre isso. Em primeiro lugar, embora careça de uma articulação política clara no momento, permanece uma reserva de apoio popular a alguma forma de socialismo na Rússia, de acordo com a pesquisa citada em Kotz (1992). [25] Em segundo lugar, gostaríamos de salientar que, embora nossas propostas estejam mais distantes da sabedoria convencional atual do que as propostas dos socialistas de mercado, no que tange à viabilidade de implementação, os socialistas de mercado estão essencialmente no mesmo barco que nós: se os principais meios de produção são privatizados, o socialismo de qualquer espécie está fora da agenda, e provavelmente por um longo período histórico. Quaisquer que sejam, no futuro visível, as perspectivas para a implementação do tipo de esquema de planejamento que delineamos, esperamos que esses argumentos provoquem uma nova reconsideração do debate sobre o cálculo socialista. Esperamos ter demonstrado que o colapso do sistema soviético não pode por si só ser tomado como prova da validade da argumentação austríaca, ou de qualquer outra, em nome da impossibilidade geral de um planejamento socialista efetivo. Notas [1] Ver também Murrell (1983), Temkin (1989). [2] Tem havido algumas argumentações recentes em favor do socialismo de mercado (e.g. Miller, 1989; Bardhan e Roemer, 1992), mas na medida em que tais argumentos admitem os argumentos contra o planejamento central, eles não representam exemplos contrários aqui. Não temos espaço para considerar esses escritos de maneira extensa neste artigo, mas nos parece que o “socialismo de mercado” se trata de um efeito colateral da desintegração das economias socialistas, com um prazo de vida potencialmente bem curto. [No original, “com uma meia vida que pode ser medida em meses”] A instabilidade do socialismo de mercado é debatida com bases teóricas por Scott Arnold (1987). [3] Um terceiro tipo de argumentação também é relevante – uma réplica de ponto por ponto contra os argumentos anti-planejamento dos austríacos. Oferecemos isso em outra obra, em Cottrell e Cockshott (1993a). [3b] Método utilizado na administração da produção, também conhecido como “entrada-e-saída”, “entradas-e-saídas” e “input-output”, ou “matriz de Leontief” (segundo o nome de um dos principais desenvolvedores desse método, Wassily Leontief) e que se baseia em tabelas com as quantidades necessárias dos insumos utilizados no processo de produção de cada bem produzido em uma economia. (N. do M.) [4] Com uma reserva: se, digamos, o plano central solicitar que a empresa A forneça o bem intermediário x para a empresa B, onde esse bem será usado na produção de algum outro bem y, e se os planejadores informarem as empresas A e B desse fato, não há escopo para a discussão “horizontal” entre as duas empresas sobre a especificação precisa do projeto de x? (Ou seja, mesmo na ausência de relações de mercado entre A e B.) [5] Esse ponto – um tema básico da obra de Strumilin atravessando praticamente meio século – está expresso de maneira particularmente clara em (Strumilin, 1977: 136–7) [6] Com preços de equilíbrio que “limpem” o mercado, evidentemente, os bens irão para aquelas pessoas que estiverem dispostas a pagar mais por eles. Dada uma distribuição de renda igualitária, não vemos objeção a isso. [7] Naturalmente, um elemento de previsão de demanda também se faz necessário neste ponto: as proporções atuais fornecem um guia útil, ao invés de uma regra completamente mecânica. [N. do M.: E para esse elemento de previsão de demanda (que evidentemente não se pode pretender ser completamente preciso) as técnicas e mecanismos mais recentes com base em avaliações e retroalimentação de dados, principalmente com o avanço na utilização de big data e aprendizado de máquina (machine learning) podem oferecer muitas possibilidades, como indicado por Evgeny Morozov em seu artigo recente (2019) na New Left Review]. [8] Um algoritmo alternativo que leva em consideração os estoques de meios de produção específicos é apresentado em Cockshott (1990). [9] Em suas reflexões posteriores sobre o debate do cálculo socialista, Lange (1967) parece sugerir que um plano otimizado poderia ser pré-calculado por computador, sem a necessidade do processo de tentativa e erro em tempo real que ele imaginou em 1938. Na medida em que isso exigiria que todas as funções de demanda dos consumidores fossem conhecidas antecipadamente, [a visão de Lange de calculo computadorizado de um plano otimizado no sentido do equilíbrio Walrasiano] nos parece implausível. [N. do M.: em um artigo posterior, Cockshott e Cottrell citam o trabalho de Deng e Huang (2006, “On the complexity of market equilibria with maximum social welfare” – “Sobre a complexidade do equilíbrio de mercado com bem-estar social máximo”, Information Processing Letters 97(1), 4–11.) que, nos marcos da Teoria da Complexidade Computacional, demonstraram que o equilíbrio, nos termos neoclássicos do equilíbrio walrasiano, como imaginado por Lange, é um problema “NP-difícil”, o que, para um problema que envolve milhões de entradas, se torna na prática inviável de solução. Cockshott e Cottrell comentam: “Mas essa faca corta dos dois lados: Por um lado, isso demonstra que nenhum computador de planejamento poderia resolver o problema neoclássico do equilíbrio econômico. Por outro lado, também demonstra que nenhum conjunto de milhões de indivíduos interagindo através do mercado poderia resolvê-lo, tampouco. Para a teoria econômica neoclássica, o número de restrições sobre o equilíbrio será proporcional, entre outras coisas, ao número de atores econômicos n. O recurso computacional constituído pelos atores será proporcional a n, mas se o problema é NP-difícil, então o custo computacional crescerá como en – os recursos computacionais crescem de maneira linear, os custos computacionais crescem de maneira exponencial. Isso significa que uma economia de mercado [considerada como um grande e único computador para realizar o cálculo econômico] nunca poderia ter recursos computacionais suficientes para encontrar seu próprio equilíbrio mecânico. Disso segue-se que o problema de encontrar o equilíbrio neoclássico é uma miragem. Nenhum sistema de planejamento seria capaz de descobri-lo, mas o mercado também não o seria. O problema neoclássico do equilíbrio geral representa de maneira deturpada o que as economias capitalistas realmente fazem e também estabelece um objetivo impossível para o planejamento socialista.” Contra a noção de “equilíbrio mecânico” utilizada pelos neoclássicos para descrever a Economia desde Walras (e reproduzida por Lange), Cockshott e Cottrell passam a defender uma visão baseada no “equilíbrio estatístico”/”equilíbrio estocástico” da Economia, como exposto por Ian Wright.] [10] Como foi claramente entendido por Marx: “Em uma dada base de produtividade do trabalho, a produção de uma certa quantidade de artigos em cada esfera particular de produção requer uma quantidade definida de tempo de trabalho social; embora essa proporção varie entre as diferentes esferas de produção e não tenha relação interna com a utilidade desses artigos ou com a natureza especial de seus valores de uso”. (1972: 186-7) [11] No ano de 2018 o supercomputador mais poderoso do mundo naquele momento, o IBM Summit, era capaz de alcançar a velocidade de 122 PetaFlops, ou seja, realizar 122 quadrilhões de operações de ponto flutuante por segundo( 1.22 x 1017). Isso significa que a tarefa de inversão da “matriz de Leontief” por força bruta via eliminação Gaussiana para 107 produtos, que para a tecnologia disponível para Cockshott e Cottrell em 1993 ainda demoraria 1.5 milhões de anos (para um computador de mesa) ou mais de 30.000 anos (para um supercomputador), com a tecnologia disponível em 2018, poderia ser realizada em 8 x 105 segundos, ou seja, pouco mais de 9 dias de processamento. Isso significa que em 2018, do ponto de vista do processamento básico, se quiséssemos, nem precisaríamos buscar técnicas mais avançadas do que a força bruta computacional, como precisaram fazer Cockshott e Cottrell no artigo, para possibilitar a solução da inversa da matriz de insumos-produtos (que revela os valores-trabalho ou valores de mão de obra verticalmente integrados para cada bem produzido na economia). Mas, é claro, não seria necessário usarmos essa abordagem, pois com as técnicas usadas por Cockshott e Cottrell, como veremos mais à frente, a tarefa computacional hoje seria praticamente trivial mesmo para computadores de mesa. [N. do M.] [12] Isso significa, por exemplo, que em uma economia com 10 milhões de produtos se assume que cada produto tenha em média 631 insumos diretos. [13] Novamente, consideremos a tecnologia disponível em 2018, com o super-computador IBM Summit sendo o máximo de desempenho possível, como indicado na nota anterior. Nesse caso, apenas a aplicação dos métodos de Gauss-Seidel ou de Jacobi seria o suficiente para baixar o tempo de execução da inversão da matriz de Leontief para uma economia de 107 produtos para 0.16 segundos, claramente uma tarefa não apenas viável, mas trivial – e nem precisaríamos de buscar outras técnicas, como fizeram Cockshott e Cottrell em 1993. Claro que para um computador de mesa equipado com um processador Intel Core i7 7500U, capaz de lidar com apenas 49 milhões de instruções por segundo, esta ainda seria uma tarefa completamente inviável – estaríamos falando de algo como 5 x 108 segundos, ou seja, em torno de 15 anos. Para o cálculo em computadores domésticos, ainda precisaríamos avançar para a utilização de outras técnicas, como fizeram Cockshott e Cottrell. [N. do M.] [14] Em outro artigo posterior, Cockshott e Cottrell apresentam uma terceira abordagem, onde o processo iterativo roda sobre uma representação da matriz de insumos e produtos na forma de uma estrutura de dados do tipo lista encadeada, com a qual reduzem ainda mais o tempo de execução, para nmr, onde n é o número de produtos, m é o número médio de insumos diretos para cada produto e r é o número de iterações necessárias para produzir uma aproximação satisfatória. Utilizando essa técnica, novamente com a tecnologia de 2018, temos um tempo de execução do processamento ridiculamente pequeno no IBM Summit para o procedimento iterativo de inversão da matriz (agora na forma de listas encadeadas): 0.000006 segundos para o cálculo dos valores-trabalho de todos os produtos para uma economia de 10 milhões de produtos. Se utilizarmos um computador de mesa como aquele indicado nas notas acima, e utilizarmos esta mesma técnica, a tarefa de cálculo dos valores-trabalho para todos os 10 milhões de produtos, do exemplo da União Soviética, temos um processamento em 5 x 103 segundos, ou seja, em torno de 1 hora e 15 minutos de processamento. Se acima os autores mostravam que esse processamento já era uma tarefa viável para os super-computadores da sua época, aqui podemos ver que hoje ela é viável para qualquer computador doméstico atual (e, em breve, para qualquer celular). [N. do M.] [15] Sigla em russo para “Comitê Estatal de Planejamento”, era o departamento responsável por estabelecer os planos quinquenais para o desenvolvimento da economia soviética. [N. do M.] [16] Vale ressaltar que Stalin (1952) se sentiu obrigado a contestar a ideia de que o objetivo básico da atividade econômica no socialismo seria a própria produção (ver suas críticas ao camarada Yaroshenko). Tal como acontece com a sua crítica aos “excessos” da coletivização forçada na agricultura em “Atordoados com o sucesso” (“Dizzy with success”, 1930, reimpresso em Stalin, 1955), este pode ser um caso de Stalin atacando tardiamente uma visão ou prática que havia encorajado anteriormente. [17] Como discutido na introdução de Smolinski (1977); ver também Nove (1977, capítulo 12). [18] Para as limitações no tamanho dos sistemas de insumos-e-produtos com os quais os planejadores se consideravam capazes de lidar em vários momentos, ver Treml (1967), Ellman (1971), Yun (1988), Treml (1989). [19] Sigla em russo para “Suprimentos Estatais da URSS”, cuidava da alocação de muitos recursos que a Gosplan não administrava, mas em um nível diferente de administração da produção (muitas vezes com técnicas diferentes). [N. do M.] [20] Abreviação consagrada internacionalmente para “Burô Político”, o comitê central do Partido Comunista. [N. do M.] [21] Além desse tipo de problema, Kushnirsky aponta a má qualidade dos estudos da tecnologia de planejamento existente realizados nos institutos de pesquisa no contexto do projeto ASPR. Ele descobriu que as explicações produzidas nos institutos não eram passíveis de apresentação algorítmica e “era difícil determinar o propósito desses materiais” (1982: 124). [22] é importante ressaltar que um tal sistema de incentivos favoreceria a automação de mão de obra, e a diminuição do tempo social necessário para a produção dos itens necessários à sociedade, trabalhando, assim, na direção de uma sociedade que poderia funcionar com semanas de trabalho mais curtas, liberando mais horas de tempo livre à sua população, trabalhando para realizar as promessas do socialismo – ver textos como ‘Lingerie Egípcia e o Futuro Robô‘, ‘Precisamos Dominá-la‘, ‘Quatro Futuros‘, ‘Tecnologia e Ecologia Como Apocalipse e Utopia‘, ‘Comunismo Como Futuro Automatizado de Igualdade e Abundância‘, de Peter Frase; ‘Tecnologia e Estratégia Socialista‘, de Paul Heideman; ‘Robôs e Inteligência Artificial: Utopia ou Distopia?‘, de Michael Roberts; ‘Os Robôs Vão Tomar Seu Emprego?‘ de Nick Srnicek & Alex Williams; ‘Rumo a Uma Sociedade Pós-Trabalho‘, de David Frayne; ‘Robôs, Crescimento e Desigualdade‘, de Andrew Berg, Edward F. Buffie, e Luis-Felipe Zanna; ‘Automação e o “Fim do Trabalho” na Mídia Internacional Dominante‘;. [N. do M.] [23] Ver (Marx,1867 [1976]: 515–7), e para mais discussão sobre esse ponto, Cockshott and Cottrell (1993). [24] Comparar com as tecnologias de comunicações disponíveis atualmente (2022) é até risível. Vivemos em um mundo de serviços digitais e bancos de dados gigantescos, acessíveis de qualquer lugar com uma conexão de internet. Exemplos de sistemas distribuídos em escala global interligados através dessa infraestrutura de comunicações, e que envolvem estruturas de processamento desse tipo não faltam: o Google, um mecanismo de busca centralizado capaz de reunir e indexar cada página na internet e disponibilizar tudo isso para todo o mundo segundo os mais diversos critérios de busca; operadoras de cartão de crédito como Visa e MasterCard, capazes de utilizar cartões magnéticos e registros digitalizados para oferecer os serviços de compra e venda à crédito em praticamente qualquer loja física ou virtual no planeta; o mastodonte das lojas virtuais Amazon, cuja logística global garante uma agilidade gigantesca no despacho dos materiais e no gerenciamento de seus armazéns de estoque; o Uber, capaz de usar a localização por satélite dos celulares para calcular as melhores rotas, custos, tempo de corrida e os motoristas mais próximos para realizá-las; as cadeias logísticas globais dos sistemas de produção just-in-time, que estabelecem uma coordenação muito mais interconectada entre os processos dos vários nós na cadeia produtiva (mesmo que sejam representados por empresas específicas e sem conexão de propriedade entre si), eliminando a necessidade de estoques e transformando as antigas fábricas em unidades que na verdade se espalham por diversas empresas e fornecedores diferentes; o planejamento global centralizado de qualquer empresa transnacional; os centros monolíticos de processamento e de armazenamento de dados dos Googles e Facebooks da vida; para não falar nos sistemas de vigilância generalizada por agências como a NSA dos EUA. Perto dos sistemas globais que conhecemos hoje, a humilde proposta de rede necessária para o processamento da alocação dos recursos produtivos como proposto por Cockshott e Cottrell parece quase uma brincadeira infantil. [N. do M.] [25] Em maio de 1991, uma pesquisa realizada na Rússia mostrava 12% dos entrevistados a favor de “uma sociedade socialista nos moldes que tínhamos no passado”, mais 43% a favor de “um tipo mais democrático de socialismo”. Apenas 20% eram a favor de “uma forma de capitalismo de livre-mercado, como a encontrada nos EUA ou na Alemanha”. Referências bibliográficas Arnold, N. S. 1987. “Marx and disequilibrium in market socialist relations of production” (Marx e desequilíbrio em relações de produção socialistas de mercado), Economics and Philosophy, vol. 3, no. 1, abril. Augustinovics, Maria 1975. “Integration of mathematical and traditional methods of planning” (Integração de métodos matemáticos e tradicionais de planejamento), em Bornstein, M. (ed.) 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  • O 8 de janeiro e o jardim da democracia 

    por Lígia Cerqueira Fernandes, Ayrton Otoni e Pedro Badô Imagem: José cruz - Agência Brasil Os sites de notícias e os canais de televisão inundam o dia de ontem de referências ao ocorrido em 8 de janeiro de 2023. Tenta-se criar uma atmosfera de que a data tornou-se um marco histórico, como se, coletivamente, estivéssemos diante de uma “marca indelével na história da democracia constitucional do país”, como dito pela ex-ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber. Entretanto, estamos diante de um marco histórico oficialista, sintético. Grandes nomes da institucionalidade frequentaram cerimônias feitas em salões dos lindíssimos palácios de Brasília numa tentativa de divulgar a emulação de um marco efetivo, coletivo e de impacto na vida das amplas massas populares. Abrir um franco embate contra o falso universalismo da democracia burguesa é uma questão essencial, principalmente em tempos onde a forma democrática é tomada como um fim em si. Em nossos dias, muito mais que no passado, a democracia toma um conteúdo profundamente manipulatório e figura falsamente como a etapa final da história humana, a qual – segundo seus apologetas – precisa apenas de alguns ajustes para atingir a perfeição. Para alguns leitores, pode parecer nítida a ideia que a democracia representa somente uma forma específica de gestão da luta de classes, entretanto, como aponta Lênin: “trata-se exatamente de que não devemos encarar como superado para a classe, como superado para as massas, aquilo que está superado para nós”. A burguesia, com seu poder ideológico, se esforça cada vez mais para tentar tornar universal seus interesses particulares. Se olharmos para os entusiastas dos eventos de ontem, veremos que eles são os mesmos que abriram espaço para a consolidação do golpe militar no Brasil de 1964, são os mesmos que, em nome da democracia, apoiam massacres de povos inteiros, tal como aquele que ocorre hoje em Gaza. Eles encontram na democracia a sua redenção, enxergam nela um suporte ideológico mais confortável para dominação, ainda que estejam sempre dispostos a abrir mão de tais princípios vazios para alcançar seus interesses materiais. Todos aqueles jornalões e comentadores políticos que, nas últimas décadas, vinham insuflando os sentimentos mais conservadores entre a opinião pública – principalmente através do pânico moral disfarçado de cruzada anticorrupção –, se assustaram em 2018 com o monstrengo reacionário que ajudaram a criar. É precisamente essa gente que agora quer usar a data para limpar sua reputação. É essa gente que mais repercute a máxima oficialista: “8/1, a salvação da democracia brasileira!”. Porém, não há liga, não há um corpo que sustente essas comemorações insossas. Não há uma ligação fática ou qualquer proximidade entre as festividades e a realidade da vida dos brasileiros. Controlado o levante do brasileirinhos patriotas no dia 8 de janeiro, o que se preservou foram os prédios frios e estéreis do poder político. E as obras de arte, recuperadas depois do quebra-quebra bolsonarista, permanecem enclausuradas nas redomas de vidro dos palácios modernistas do Plano Piloto de Brasília. Os vasos chineses, as esculturas e quadros continuam distantes da massa de pessoas desse país. Continuam a gerar um certo tipo de desprezo popularesco porque permanecem sendo itens vinculados diretamente à vida suntuosa de quem habita a capital da República. Devemos notar como, nos últimos anos, os ministros do Supremo Tribunal Federal suspenderam suas intrigas pessoais para que, unidos, pudessem se defender dos ataques bolsonaristas. E agora, eles colhem os louros por terem sido o mais eficaz freio à destrutividade de Bolsonaro. O STF, principalmente na figura de Alexandre de Moraes, chafurda em prestígio porque soube aproveitar a oportunidade de se lançar como herói no momento em que o Congresso Nacional, hipnotizado pelo tamanho do orçamento que abocanhava, era absolutamente conivente com as ações do governo. É por isso que em um dos eventos de ontem, em tom professoral, Rosa Weber, convidada a discursar no plenário do STF, citou Voltaire, com seu impecável sotaque, “qu'il faut cultiver notre jardin”, emendando logo depois: “é preciso cultivar o jardim da democracia”. O Congresso Nacional, por sua vez, manifestou-se protocolarmente. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, em evento oficial, fez mais um de seus discursos empolados em defesa da democracia. O presidente da Câmara de Deputados, Arthur Lira, criou um pretexto para não ter que comparecer à solenidade e não ter que se desgastar com sua base de apoio bolsonarista. Mas a verdade é que toda essa conversinha democrática importa menos ainda para eles do que para os juristas do STF. O que move verdadeiramente os parlamentares é manter, a todo custo, a quota robusta de poder conquistada sob o governo anterior. O seu ridículo servilismo diante de Bolsonaro era o preço pago por controlarem ainda mais o orçamento. E não restam dúvidas de que, diante da opinião pública, o Legislativo permanece sendo o mais medíocre, mesquinho e acanalhado dos poderes da República. Seus métodos chantagistas sempre ficam mais expostos aos olhos da nação. Na verdade, o único princípio mais sólido defendido por Arthur Lira e Rodrigo Pacheco é a implantação do modelo semipresidencialista de governo, o que, mais uma vez, só expressa a voracidade do Congresso Nacional em tomar definitivamente as rédeas do poder republicano. Enquanto isso, o presidente da República segue convicto em sua covardia política. Até agora, finge não ter ouvido os gritos de “sem anistia!” no evento de sua posse em 1 de janeiro de 2023. Na verdade, Lula nomeou José Múcio, um sabujo dos militares, como seu ministro porque tem medo da caserna. A questão é que, mais do que nunca, temos diante de nós a oportunidade de enquadrar as forças de repressão do Estado, a reserva moral e material da autocracia brasileira. A covardia de Lula está deixando passar a única chance que tivemos nas últimas décadas de meter a mão no bolso dos gorilões das Forças Armadas, de arrancarmos deles todos os privilégios que as altas patentes sempre tiveram nesse país, de por fim no desperdício de dinheiro que sustenta um grupo de indivíduos que só têm duas funções: conspirar e trucidar. Além disso, Lula está deixando escapar entre os dedos a melhor oportunidade que temos de extirpar a polícia militar – esta vanguarda do genocídio negro –, já que tais forças estiveram metidas até o pescoço com o bolsonarismo em todas as unidades da Federação. Aqueles que prometeram vencer Bolsonaro e salvar a democracia, não parecem tão preocupados com o conteúdo material dessa democracia. Dia após dia, cedendo pouco a pouco às chantagens mais mesquinhas das forças do capital, a chamada vitória da democracia se parece cada vez mais com uma mera administração – menos brutal, é verdade – da tragédia brasileira. Diante de tudo isso, até agora, não pudemos saber exatamente a que tipo de jardim Rosa Weber se referia em seu palavrório democratista. Mas certamente, a ministra deve estar bem acostumada aos gramados amplos, áridos, sem sombras e esturricados pelo sol que se estendem diante da Praça dos Três Poderes. Mas isso é apenas especulação nossa.

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